Diálogos marxistas sobre a prostituição: as contribuições de Alexandra Kolontai e Clara Zetkin e o caso do jornal Der Pranger

Por Isadora Serra Netto 

Introdução

Tratar sobre as questões sexuais e a questão da mulher à luz da experiência soviética pressupõe adentrar um debate que compreende elementos e propostas que ultrapassam a esfera teórica e concretizam-se na prática, de maneira controversa e impremeditada. A Revolução Russa trouxe, de fato, grandes avanços no que diz respeito à garantia dos direitos femininos, provocando um verdadeiro reposicionamento da mulher enquanto sujeito social na estrutura vigente. Ainda assim, as discussões e movimentações em função de temas relacionados às mulheres esteve presente desde, pelo menos, o século XVIII (PARADIS, 2018), embora tenham se acentuado significativamente no decorrer dos acontecimentos que marcaram a história Russa. A eclosão da Revolução Bolchevique marcou um processo de reorientação da situação da mulher que submetia-se à uma enraizada estrutura patriarcal que manifestava-se, no campo – diante das relações familiares definidas por uma herança das sociedades-pré capitalistas – e nas cidades – diante do processo de industrialização que as introduziu, como operárias, nas fábricas, enquanto eram obrigadas a manter suas responsabilidades pelas tarefas domésticas (SEVERI, 2017). Principalmente através das profundas alterações no código legislativo, a União Soviética assumiu a posição pioneira em direção ao ideal de emancipação da mulher, que permeava os ferventes debates feministas – e marxistas – internacionalmente.

Ainda assim, as tempestuosas discussões e debates teóricos a respeito da questão feminina e do próprio rumo que tomava o projeto político dos bolcheviques, revelam o percurso permeado por contradições que marcou a experiência soviética, principalmente no que diz respeito às políticas femininas. A partir da década de 20 e 30, a União Soviética inicia um período de grandes retrocessos diante de um crescente interesse na reabilitação da família nuclear legalmente constituída, como resposta à incapacidade do Estado em desempenhar as suas tarefas coletivistas e de socialização (SEVERI, 2017). As medidas regressistas do Estado soviético acompanharam um movimento de “moralização” contra-revolucionário, principalmente no que diz respeito às questões sexuais, movimentando os debates a respeito das pautas femininas para além do território soviético. Nesse contexto, o movimento internacional de mulheres, historicamente orientado pela tradição marxista, dispôs de grandes figuras em sua militância política, responsáveis pela elaboração teórica e crítica de novas perspectivas sobre a questão da mulher. Nota-se especialmente as contribuições de Alexandra Kolontai (1872-1945), na União Soviética, e Clara Zetkin (1857-1933), na Alemanha, ambas dirigentes femininas do movimento comunista.

O presente ensaio tem como intenção discutir notadamente o tema da prostituição no contexto soviético a partir das contribuições teóricas de Alexandra Kolontai e Clara Zetkin, dois nomes imprescindíveis para se pensar a questão da mulher sob a perspectiva marxista. À vista disso, parte-se da noção de que a prostituição é uma das instituições que revela as relações de poder entre homens e mulheres e a moral sexual de cada período histórico (PARADIS, 2018), tornando-se um eixo de debate significativo para tratar da experiência da mulher soviética. Nesse sentido, pretende-se realizar também um estudo de fonte, a partir do relato escrito por Clara Zetkin em seu diário, sobre um encontro que teria tido com Lênin em 1920, no qual os dois entraram em uma polêmica envolvendo, dentre outros temas ligados à questão sexual e o movimento internacional de mulheres, a prostituição. Para que se chegue, de fato, a discussão da temática da prostituição, é necessário pontuar algumas questões específicas no que diz respeito a tratativa da questão das mulheres na Rússia.

O processo revolucionário soviético e a questão da mulher

Ainda que os debates e reivindicações a respeito da questão feminina só tenham de fato ganhado centralidade a partir da Revolução Bolchevique, a tradição histórica do movimento de mulheres na Rússia remonta ao século anterior, essencialmente com as manifestações pelo direito à educação feminina. Já na virada do século XIX ao XX, observa-se uma crescente organização da categoria feminina com a adesão a novas formas organizativas como órgãos associativos femininos e partidos – entre eles, a Liga da Igualdade de Direito das Mulheres. No decorrer dos anos, provou-se a intensa militância e produção teórica feminista de diversas vertentes, conduzindo a elaboração de estratégias de ação política e condições para auto-organização feminina (SEVERI, 2017). Dentre a produção feminina desse período, as teóricas marxistas – soviéticas ou não – afirmaram-se diante das tendências políticas do movimento feminista mundial, sustentando que somente o socialismo seria capaz de conduzir à emancipação das mulheres.

À medida em que consolidava-se o capitalismo industrial na Rússia, a contradição entre as demandas do trabalho e as necessidades da família – já anunciada pela tradição marxista desde os escritos de Marx, Engels e Bebel – tornava-se cada vez mais perceptível e incontestável às mulheres russas. O processo forçado de ingresso das mulheres no sistema produtivo capitalista a partir da industrialização revelou um conflito entre demandas de produção e de reprodução (GOLDMAN, 2014), na medida em que as mulheres eram obrigadas a trabalhar em função de um salário, ao mesmo tempo que mantinham suas responsabilidades domésticas absolutamente intactas. Essa dinâmica insustentável produziu um cenário caótico de aumento da mortalidade infantil, negligência de crianças, desenvolvimento de problemas crônicos de saúde e desestruturação de lares (GOLDMAN, 2014) impedir que as mulheres participassem da esfera pública e da política.

Nesse contexto, a perspectiva marxista ganha espaço também entre as mulheres, principalmente por defender que o capitalismo nunca seria capaz de fornecer uma solução sistemática para a situação feminina. Além disso, pregava o papel fundamental da família como unidade econômica do capitalismo, submetendo a possibilidade de emancipação feminina à abolição da propriedade privada e consequente construção de um novo tipo de organização familiar a partir da plena transferência do trabalho doméstico para a esfera pública. (GOLDMAN, 2014). Nesse sentido, previam o definhamento da família enquanto instituição, na medida em que o casamento perderia sentido e gradualmente seria substituído pela união livre diante da ausência de necessidade de interferência por parte do Estado na união entre as pessoas (SEVERI, 2017). Em certa medida, a teoria marxista a respeito da mulher na sociedade de classes atrelava-se à questão da mulher à questão operária, através da defesa do fim do sistema capitalista e dissolução da família patriarcal. Como expressão desse processo, recorda-se a manifestação da Marcha de Mulheres de 8 de março de 1917, organizada pela Liga da Igualdade de Direito das Mulheres, que tornou-se um marco da Revolução Russa após aglutinar milhares de operárias em greve pelo sufrágio feminino e contra o tsarismo (SCHNEIDER, 2017 apud SEVERI, 2017).

O fervor dos debates acerca da questão da mulher evidente no contexto pré-revolucionário e no próprio processo revolucionário bolchevique manifestou-se, logo nos primeiros meses após o triunfo da Revolução, na aprovação imediata de uma série de decretos que implementaram princípios legislativos marcantes no que diz respeito às mulheres soviéticas. Em pleno contexto revolucionário, as alterações propostas relativas à legislação sobre família e casamento buscavam facilitar a criação das condições necessárias à participação das mulheres na esfera política, ou seja, criavam uma série de equipamentos voltados para a socialização de tarefas domésticas e de cuidado (SEVERI, 2017). Assim, a ação política dos bolcheviques em função da questão feminina baseava-se, essencialmente, em quatro preceitos: união livre, emancipação das mulheres através do trabalho assalariado, socialização do trabalho doméstico e definhamento da família (GOLDMAN, 2014). A centralidade da família e do matrimônio na política bolchevique explicava-se a partir da tradição marxista, que compreendia a opressão do sexo feminino pelo masculino como a primeira opressão de classe da história, simultânea ao desenvolvimento do casamento conjugal enquanto antagonismo essencial entre homem e mulher e, logo, forma célula da sociedade civilizada, quando estreita vinculações com a propriedade privada (SAFFIOTI, 2011). O casamento deveria, portanto, junto ao Estado e à família, definhar durante o processo de construção do socialismo para atingir, no comunismo, a plena emancipação da mulher, que estaria atrelada à união livre como nova forma de relacionar-se.

Esta orientação política dos bolcheviques em relação à questão da mulher revelou-se nas formulações legislativas adotadas nos primeiros meses da Revolução, notadamente preocupadas com a condição da mulher. Embora já fossem formuladas com a intenção de serem transitórias, na medida em que seriam substituídas pela própria consciência revolucionária, as leis estabeleciam mudanças profundas na estrutura social vigente, provocando um processo imediato de alteração na ordem social. Os dois decretos promulgados em 1917, direcionados à facilitação do divórcio e simplificação do casamento civil, tiveram suas medidas ampliadas com a aprovação no ano seguinte do Código das Leis sobre Casamento, Família e Tutela (SEVERI, 2017) – além da descriminalização da homossexualidade, em 1917, e a legalização do aborto, em 1919 – captando, em lei, a visão revolucionária das relações sociais (GOLDMAN, 2014) e o esforço em articular a questão da mulher à questão operária (SEVERI, 2017). Ainda que nos primeiros anos da revolução a União Soviética tenha avançado significativamente em relação à política feminina, há de se notar que as numerosas diferenças acerca da família e das relações sociais persistiram, fomentando debates calorosos a respeito das políticas femininas e especialmente, da questão sexual, alterando os rumos da experiência da mulher soviética.

A prostituição e a teoria marxista

A temática da prostituição esteve presente nas teoria marxista muito antes da experiência soviética, além das elaborações e debates travados pelos socialistas utópicos desde o início do século XIX – sem mencionar a teoria anarquista do final do século. A partir do século XVIII, o socialismo assumiu o papel teórico de analisar as consequências da incorporação massiva das mulheres no sistema fabril, em função da estruturação do sistema capitalista. (PARADIS, 2018). A concepção elaborada por Marx e Engels pensava a opressão das mulheres como produto das formações sociais e o casamento como uma de suas maiores expressões no capitalismo. Em Manuscritos Econômicos-filosóficos, escrito em 1844, Marx pontua a respeito da principal diferença entre o casamento e a prostituição: o primeiro, entendido como uma forma de propriedade privada exclusiva, e o segundo, como um estado em que as mulheres tornariam-se propriedade comum de todos (MARX; ENGELS, 2008. apud PARADIS, 2018). A chamada comunidade das mulheres, conceito cunhado por Marx, seria uma relação própia dasociedade burguesa, podendo ser pública – na forma de prostituição – ou privada – na forma de casamento. A teoria de Marx previa que a abolição do sistema de produção capitalista causaria o desaparecimento da comunidade de mulheres a ele inerente, ou seja, a prostituição pública e particular (MARX; ENGELS, 2008. apud PARADIS, 2018).

[…] com a transformação dos meios de produção em propriedade social desaparecem o trabalho assalariado, o proletariado, e, consequentemente, a necessidade de se prostituírem algumas mulheres, em número estatisticamente calculável. Desaparece a prostituição e, em lugar de decair, a monogamia chega enfim a ser uma realidade – também para os homens. (ENGELS, 1984, p. 82 apud PARADIS, 2018)

Conforme consolida-se o capitalismo industrial, as contradições cada vez mais evidentes entre o trabalho e a família, recaídas quase integralmente sob as mulheres, resultam em uma maior percepção e formulação política por parte dos marxistas. Por formarem um grupo majoritariamente pertencente à classe trabalhadora, as prostitutas tornaram-se foco dos debates do movimento de mulheres socialistas, principalmente em função das condições precárias do aumento do comércio sexual nas sociedades industriais. No contexto soviético, a instituição da NEP (Nova Política Econômica) tornou a prostituição uma ilustração clara do contraste entre o ideal socialista de união livre e as condições reais de pobreza, fome e desemprego. (GOLDMAN, 2014). Junto de demais questões sexuais, o debate da prostituição travado dentro do movimento marxista mundial, principalmente a partir da experiência socialista soviética, tornou-se tema de grandes polêmicas políticas.

A prostituição representava o destino mais doloroso, mas não o mais improvável, das mulheres sem marido sob a NEP. Era uma ridicularização da ideia de que as mulheres eram indivíduos livres e independentes, que podiam entrar em uma união baseada na livre escolha. Sem um salário independente, as mulheres eram forçadas ao menos livre dos atos: ganhar um pouco do salário dos homens vendendo sua sexualidade a quem a quisesse. Muitas mulheres expressavam um desejo desesperado de deixar a prostituição. Outras se sentiam profundamente envergonhadas por sua situação. Para a maioria, era o último recurso antes da fome. (GOLDMAN, 2014)

No mesmo ano em que institui-se a NEP, o Estado inaugura uma campanha contra a prostituição, a qual produz as Teses da luta contra prostituição, elaboradas pelo Comissariado do Povo para Assuntos de Bem Estar Social, afirmando que: (1) A prostituição é interligada com a economia capitalista e o trabalho explorado; (2) Sem o estabelecimento de bases comunistas na economia e na convivência social é impossível a eliminação da prostituição. O comunismo é a sepultura da prostituição. (3) A luta contra a prostituição é a luta contra aquilo que a produz: o capital, a propriedade privada e a divisão da sociedade em classes. (4) Na República Soviética dos Operários e Camponeses a prostituição é uma herança incômoda do regime capitalista (citado por PANIN, 1944. apud SAHNO, 2017). Ainda que a legislação soviética do início da década de 20 não criminalizasse a prostituição, o Código Penal de 22 passa a considerar crime o comércio sexual e posteriormente retrocede com a promulgação do Código Penal de 26, que passa a considerar crime apenas o lenocídio. Segundo as Teses da luta contra prostituição, devia ser concedido o direito de ressocialização às prostitutas, vítimas da ordem social capitalista.

Em vez de isolar as prostitutas do coletivo, precisamos ressocializá-las, introduzi-las no sistema de trabalho feminino. Uma mulher escolarizada e preparada politicamente, além do fato de que antes passou pelo “caminho torto”, agora vai encontrar dentro de si a motivação de voltar ao coletivo de trabalhadores e construir o comunismo com entusiasmo, lutar pelos ideais da Revolução e ao mesmo tempo, a sociedade vai de fazer tudo para eliminar as condições que poderiam fazer ela voltar para a profissão do passado. (KOLONTAI, 1921, apud SAHNO, 2017)

Alexandra Kolontai: a prostituição a partir da nova moral sexual

Diante dos rumos controversos da política de mulheres no decorrer dos primeiros anos da Revolução, Alexandra Kolontai destacou-se por suas críticas como importante articuladora do movimento de mulheres trabalhadoras em seu trabalho como dirigente do Partido Comunista Russo – embora tenha sido escanteada do cenário político após 1918. Responsável pela teorização de uma nova moral sexual, partia do pressuposto de que a revolução dos modos de produção deveria acompanhar uma revolução da vida privada, nas relações sexuais, afetivas e morais, ou seja, também no aspecto psicológico da mulher (KOLONTAI, 2007 apud PARADIS, 2018). Seu maior ponto teórico de diferenciação diante dos marxistas desse período, entretanto, era a defesa da ideia de que não bastaria o fim do capitalismo para acabar com a opressão das mulheres, sendo necessária a politização do mundo privado (PARADIS, 2018).

[…] é imperdoável nossa atitude de indiferença diante de uma das tarefas essenciais da classe trabalhadora. É inexplicável e injustificável que o vital problema sexual seja relegado, hipocritamente, ao arquivo das questões puramente privadas. Por que negamos a este problema o auxílio da energia e da atenção da coletividade? As relações entre os sexos e a elaboração de um código sexual que regulamente estas relações aparecem na história da humanidade, de maneira invariável, como um dos fatores da luta social (KOLONTAI, 2007 apud PARADIS, 2018).

Como parte da elaboração teórica da nova moral sexual, Kolontai também formulou a respeito da nova mulher que estaria surgindo no seio da classe operária em pleno processo revolucionário, capaz de constituir uma individualidade que a permitisse protestar contra qualquer opressão e exercer de fato a nova moral sexual (PARADIS, 2018). Segundo Kolontai, “as mulheres do novo tipo, ao criar os valores morais e sexuais, destroem os velhos princípios na alma das mulheres que ainda não se aventuraram a empreender a marcha pelo novo caminho. São estas mulheres do novo tipo que rompem com os dogmas que as escravizavam” (KOLONTAI, 2007. apud PARADIS, 2018). Diante de uma verdadeira crise sexual, Kolontai propunha novas formas de valorizar a sexualidade, livres dos valores burgueses da individualidade e da superioridade masculina e de fato alinhadas com as ideias emergentes na revolução, especialmente a solidariedade e a camaradagem (KOLONTAI, 2007. apud PARADIS, 2018). Assim, defendia um ideal de amor livre como a única forma capaz de garantir aos indivíduos os valores necessários da nova moral sexual, em detrimento do casamento legal e da prostituição. Acreditava em um novo tipo de amor, baseado na camaradagem, que seria a solução da crise sexual, fruto de uma verdadeira revolução na vida pessoal.

Este princípio básico da ideologia da classe ascendente [a camaradagem] é o que dá colorido e determina o novo código em formação da moral sexual do proletário, pelo qual se transforma a psicologia da humanidade, chegando a adquirir uma acumulação de sentimentos, de solidariedade e de liberdade, ao invés do conceito de propriedade: uma acumulação de companheirismo ao invés dos conceitos de desigualdade e de subordinação (KOLONTAI, 2007 apud PARADIS, 2018).

No que diz respeito à temática da prostituição, a primeira abordagem de Kolontai vai no sentido de sua influência na psicologia humana, afirmando que “não há nada que prejudique tanto as almas como a venda forçada e a compra de carícias de um ser por outro com que não tem nada em comum. A prostituição extingue o amor nos corações” (KOLONTAI, 2007 apud PARADIS, 2018). Defendia, portanto, que a prostituição deformaria as relações sexuais, na medida em que a sexualidade, enquanto forma elevada de enriquecimento pessoal, deveria permanecer fora do alcance das relações mercantis. Além disso, debateu os possíveis efeitos da prostituição para a construção da sexualidade masculina, na medida em que acostumavam os homens a relações sexuais baseadas em submissão e desigualdade, sendo incapazes de enobrecer o verdadeiro êxtase erótico. (KOLONTAI, 2007. apud PARADIS, 2018)

A prostituição deforma as ideias normais dos homens, empobrece e envenena o espírito. Rouba o que é mais valioso nos seres humanos, a capacidade de sentir apaixonadamente o amor, essa paixão que enriquece a personalidade pela entrega dos sentimentos vividos. A prostituição deforma todas as noções que nos levam a considerar o ato sexual como um dos fatores essenciais da vida humana, como o acorde final de múltiplas sensações físicas, levando-nos a estimá-lo, em troca, como um ato vergonhoso, baixo e grosseiramente bestial (KOLONTAI, 2007, p. 35 apud PARADIS, 2018).

Assim definida a ideia de prostituição para Kolontai, suas elaborações tornaram-se elementares para se pensar na política dos partidos socialistas, além do programa dos bolcheviques, voltada às mulheres. Em seu discurso Prostituição e formas de lutar contra ela, proferido em uma conferência de mulheres em 1921, Kolontai estabelece de maneira pragmática, as diretrizes para abolição total da prática da prostituição na URSS, cobrando a aprovação imediata de uma lei que pudesse eliminá-la. Embora reconheça que as principais fontes da prostituição – propriedade privada e políticas de reforco da família – já tivessem sido extintas, aponta fatores como a falta de habitaçãoos baixos salários – além da educação das mulheres – também como responsáveis pela persistência da prostituição na realidade soviética, marcada por um “estado de colapso e deslocamento da economia nacional contínua” (KOLONTAI, 1977. apud PARADIS, 2018). Nesse sentido, define as prostitutas como as mulheres que “evitam a necessidade de trabalharem, para dar-se a um homem, seja temporariamente ou para toda a vida” (KOLONTAI, 1977. apud PARADIS, 2018), ou seja, igualando às mulheres que vendiam serviços sexuais àquelas que eram sustentadas por seus maridos. Isto porque, a partir da noção de envolvimento no trabalho produtivo como pressuposto da cidadania Bolchevique, estas mulheres também não estariam contribuindo com seu trabalho para coletividade. A solução para a questão da prostituição deveria envolver, portanto, a garantia de habitações apropriadas e melhores salários para as mulheres a partir de treinamento e qualificação profissional, contribuindo, assim, para elevação da consciência política das trabalhadoras (PARADIS, 2018).

“[A prostituição] reduz as reservas de energia e o número de mãos de trabalhadores que estão criando a saúde nacional e o bem-estar geral, do ponto de vista da economia nacional, a prostituta profissional é uma desertora de trabalho”. (KOLONTAI, 1977. apud PARADIS, 2018)

[…] Nós sabemos que só podemos construir uma nova economia comunista se todos os cidadãos adultos se envolverem com o trabalho produtivo. A pessoa que não trabalha e vive à custa de outro ou de um salário imerecido prejudica o coletivo e a república. (KOLONTAI, 1977. apud PARADIS, 2018)

Clara Zetkin e a classificação da prostituição como trabalho

As elaborações teóricas de Clara Zetkin, dirigente do Partido Comunista Social-Democrata Alemão e posteriormente do Partido Comunista Alemão, extrapolaram o contexto alemão e reverberaram de maneira prática na organização do movimento internacional de mulheres proletárias, do qual participou também Alexandra Kolontai. Entre concordâncias e discordâncias, Zetkin centrava-se na noção de que os interesses das mulheres não eram homogêneos, mas determinados por sua situação de classe. Sendo assim, as mulheres seriam fundamentalmente oprimidas pelo sistema capitalista, não pelos homens. Partindo dessa concepção, Clara orientou debates e ações expressivas em função da questão feminina no movimento socialista alemão e internacional – inclusive, soviético. Em 1920, Lênin delega à Zetkin a tarefa de elaborar, ao lado de outras dirigentes soviéticas, diretrizes para o trabalho com as mulheres – após reconhecer que embora houvesse uma “vontade sincera de instaurar a igualdade”, tudo que havia sido feito pelos bolcheviques desde o início da Revolução “não representa muito em relação às necessidades da massa de mulheres que trabalham” (BADIA, 2003).

Em relação à temática da prostuição, assim como Kolontai, Clara Zetkin também partia da concepção de que a família burguesa seria um acordo econômico e a prostituição análoga a ela. Segundo Zetkin, a família burguesa era fundamentada no capital e no lucro privado, “e esta família encontra seu complemento na carência forçosa das relações familiares dos proletários e na prostituição pública” (ZETKIN, 1976 apud PARADIS, 2018). Compartilha da nocão, desenvolvida por Fourier, de uma dupla prostituição na relação da mulher burguesa, na medida em que experimentavam certa liberdade para desenvolver a individualidade – a partir do patrimônio – mas viviam dependentes do marido, através de casamentos fundados no dinheiro (ZETKIN, 1976. apud PARADIS, 2018). Por outro lado a crescente oferta de prostitutas – segundo Zetkin, veiculadas à piora nas condições de vida das mulheres da pequena e média burguesia, somado à queda da intenção de casamento por parte dos homens -, era garantida pela exploração capitalista sobre as mulheres (ZETKIN, 1976. apud PARADIS, 2018).

Em 1920, em seu texto Diretrizes para o movimento comunista feminino, estabelece uma afirmação até então teoricamente discrepante ao definir a prostituição essencialmente como uma forma de trabalho, associando a venda crua do corpo feminino a uma forma de trabalho pago por serviço (ZETKIN, 1976. apud PARADIS, 2018). Parte, então, para elaboração de uma série de diretrizes voltadas tanto aos países no qual o proletariado já havia conquistado o poder estabelecido no socialismo – como na União Soviética -, quanto aos países nos quais o proletariado seguia lutando para conquistar o poder político. Ao primeiro grupo, defendia o estabelecimento de “provisões economicas e educativas que permitam a recuperação das prostitutas – herança do sistema burguês – e do subproletariado para a comunidade produtiva (ZETKIN, 1976, apud PARADIS, 2018). Ao segundo, a “adoção das disposições econômicas e sociais adequadas para combater a prostituição; medidas higiênicas contra a difusão das enfermidades venéreas; eliminação do preconceito social em relação às prostitutas; superação da dupla moral sexual, distinta para os dois sexos” (ZETKIN, 1976, apud PARDIS, 2018).

A polêmica do Der Pranger: a prostituição e as questões sexuais nos diálogos de Clara Zekin e Lenin (1920)

Entre as ações de seu envolvimento com a tratativa da questão da mulher pelos bolcheviques, anunciado por Lênin em 1920, Clara Zetkin narra, em seu diário – Notas de meu diário. Lênin tal como era – um encontro que teve com o líder soviético, em seu gabinete do Kremlin, no mesmo ano, quando já era representante do Partido Comunista no Reichstag. Em sua primeira conversa longa sobre a questão da mulher, relata quase um discurso, no qual Lênin demonstra uma série de preocupações a respeito da tratativa das questões sexuais pelas socialistas e dos rumos do movimento de mulheres trabalhadoras internacionalmente. Entre as preocupações apontadas ao longo de todo o relato, os debates feitos a respeito da prostituição na Alemanha e na Rússia, e especialmente de um “jornal de prostitutas”, tornou-se um ponto polêmico de seu discurso, principalmente por se tratar de uma publicação de orientação comunista.

Já de antemão, Zetkin reconhece o comprometimento e a importância indiscutível de Lênin diante do movimento feminino, apontando que, para ele, “a questão feminina era relevante na medida em que o movimento feminino era para ele parte integrante e, em certas ocasiões, parte decisiva do movimento de massas” (ZETKIN, 1956). Ainda assim, relata logo no início seu espanto quando Lênin diz que o II Congresso Internacional não tinha tirado uma posição sobre a questão feminina, na medida que “como apoiadora e admiradora da experiência das mulheres russas, esperava do Partido que estivesse à altura de sua tarefa, principalmente como formador de quadros preparados para o movimento feminino comunista internacional, servindo assim de grande exemplo histórico” (ZETKIN, 1956).

Durante o primeiro “bloco” de falas da conversa, Lênin demonstra ciência da importância das mulheres no processo revolucionário, em tom enaltecedor, reconhecendo que “sem elas, muito provavelmente não teríamos vencido” (ZETKIN, 1956). Fala então dos avanços promovidos, na URSS, a partir das das mudanças legislativas realizadas nos primeiros anos da Revolução, dando ênfase na perspectiva teórica que defende a importância do trabalho feminino em todas as esferas da sociedade, lembrando que isto seria algo “importante para as mulheres do mundo inteiro, porque comprova a capacidade das mulheres e o elevado valor que tem seu trabalho, para a sociedade” (ZETKIN, 1956). Enfim, Lênin pergunta como estaria o trabalho comunista no exterior, pedindo para que falasse da situação alemã. Clara conta, então, do plano de organização para as operárias alemãs, relatando que o Partido estaria desenvolvendo uma ação metódica que, embora fosse ainda embrionária, trataria-se de “um bom começo” (ZETKIN, 1956).
Lênin retoma, em tom satisfeito, a abertura de uma bela perspectiva para o desenvolvimento do trabalho político. Demonstra preocupação em relação à formação política e consequente consciência de classe que deveria constituir a base da ação política, questionando Clara a “como ensinais às camaradas?” (ZETKIN, 1956). É assim que chega-se à temática da prostituição, quando Lênin relata ter ouvido “coisas estranhas” em relação às camaradas russas e alemãs. Refere-se à “uma comunista muito qualificada” que teria ouvido dizer que publicaria, em Hamburgo, um “jornal para as prostitutas”, além de querer “organizar as mulheres para a luta revolucionária”. Menciona a intervenção de Rosa Luxemburgo na ocasião, qualificando-a como comunista, ao escrever um artigo que trata da defesa das prostitutas. Em tom de lamentação, coloca:

Duplamente vítimas da sociedade burguesa, as prostitutas merecem ser lamentadas. São vítimas, antes de tudo, do maldito sistema da propriedade, depois do maldito moralismo hipócrita. Somente os brutos ou os míopes podem esquecê-lo. No entanto, não se trata de considerar as prostitutas como, por assim dizer, um setor especial da frente revolucionária e de publicar para elas um jornal especial. Será que não existem, talvez, na Alemanha, operárias industriais para organizar, para educar com um jornal, para arrastar à luta? Eis aí um desvio mórbido. (ZETKIN, 1956)

A comunista a qual Lênin refere-se é, mais especificamente, Ketty Guttman, cofundadora da Associação das Prostitutas Legais de Hamburgo e Altona, uma organização de caráter trabalhista, e militante do Partido Comunista Alemão. O jornal em questão é o Der Pranger – alemão para O Pelourinho – que assumia explicitamente a orientação política comunista, além de ser produzido por e para prostitutas (PALHA, 2019). A partir da temática do trabalho sexual como ponto de partida, o jornal propunha-se a pensar sobre outras questões como as relações de gênero, sexualidade, trabalho, casamento e reprodução (GERBING, 2013). Além disso, a publicação reivindicava aluguéis fixos para acabar com a extorsão dos proprietários, o fim da obrigatoriedade de vender álcool nos bordéis para aumentar as vendas e condenava demais restrições à liberdade que as prostitutas estavam sujeitas na República de Weimar (GERBING, 2013). A respeito da própria existência da publicação, colocava-se: “As prostitutas públicas são chamadas de nós! Nosso negócio, como é chamado de público, também deve ser assunto de público, por isso publicamos um jornal”. As mulheres do Der Pranger exigiam que a prostituição fosse debatida nos marcos do processo revolucionário alemão, que mesmo após abolir a monarquia no Reich, não teria sido capaz de avançar em relação à situação das prostitutas na Alemanha. Sobre isso, coloca Ketty Guttman:

“A revolução trouxe a liberdade humana completa. O progresso quebrou as correntes da escravidão. A república transformou os social-democratas em governantes que escancararam a boca e clamaram por democracia e parlamentarismo benéfico. […] meninas controle [termo contemporâneo para trabalhadoras do sexo] não sente nada disso. São escravas do homem, como todas as mulheres, apesar do direito de voto e emancipação. A lei transforma esposas em mercadorias, coisas mortas, propriedade do homem, parentes. O hábito não permite que nossas esposas percebam a inferioridade de sua posição.” (MENSCHENWARE 1920. apud GERBING, 2013)1

Em suas contribuições, Guttmann não deixou dúvidas de que, apesar de condenar a situação de degradação vivida pelas meninas do controle e relatada n’O Pelourinho, o casamento era uma submissão muito mais drástica ao poder patriarcal, na medida em que o código civil fala a linguagem do cafetão legítimo, conferindo ao homem todas às decisões concernentes à vida comunitária (GERBING, 2013). Sendo assim, em um contexto em que o estrupro dentro do casamento ainda não constituía uma ofensa criminal, coloca que “ao contrário da esposa, a “garota de controle” pode “recusar-se a revelar seu corpo a um homem odiado”(KLEINER, 1920. apud GERBING, 2013). Nesse sentido, afirma que os Verhältnis – termo em alemão que refere-se a relações informais ou extramaritais, uma espécie de “caso” – seriam ainda piores do que o casamento, na medida em que “o bordel e o casamento, por mais parecidos que sejam, compartilham, pelo menos, um lugar conhecido, o ‘caso’, nem mesmo isso”2 (GERBING, 2013).

Assim, Guttman coloca sua posição intransigente em relação à ausência de alternativas nas condições da sociedade patriarcal.

De volta aos diálogos entre Clara e Lênin, para sustentar a caracterização do que havia chamado de um desvio mórbido, Lênin passa a discorrer, de fato, a respeito da questão da prostituição, reconhecendo que esta gerava numerosos problemas de difícil resolução, inclusive na Rússia. Para tal questão, apontava que a solução ideal seria “reconduzir a prostituta ao trabalho produtivo, de indicar-lhe um lugar na economia social” (ZETKIN, 1956), ainda que reconhecesse que esta fosse uma tarefa “dificilmente realizável” diante do estado da economia russa. Assim sendo, a prostituição era um aspecto da questão feminina que exigiria solução diante da conquista do poder pelo proletariado na Rússia. Já no contexto alemão, ações como a publicação do Der Pranger, deveriam ser tolhidas das atividades e dos assuntos do Partido, por se tratar de algo que “confunde as coisas e desagrega nossas forças”, assim como posteriormente vai formular a respeito da dedicação excessiva das operárias em debater “as questões do sexo e casamento” (ZETKIN, 1920).
Após discorrer sobre o caso particular do Der Pranger, Lênin questiona Clara: “Que fizeste para impedi-lo?” (ZETKIN, 1956). Antes mesmo que ela pudesse responder, como nota a própria autora, ele continua a falar, retomando a respeito do que chamou de mais um dos “vossos pecados”. Assim, relata, em tom incrédulo: “Ouvi dizer que, em vossas reuniões noturnas dedicadas à leitura e aos debates com as operárias, ocupai-vos sobretudo com as questões do sexo e do casamento. Esse assunto estaria no centro de vossas preocupações, de vossa instrução política e de vossa ação educativa! Não acreditei no que ouvi.” (ZETKIN, 1956). Segue, posicionando-se a respeito da experiência soviética e a situação alemã, logo pontuando que a Rússia estaria “cercado de contra-revolucionários de todo o mundo”, lembrando da necessidade de união de todas as forças revolucionárias proletárias para combater os ataques da contra-revolução na própria Alemanha. Em contraposição, coloca, preocupado com a forma com que as questões sexuais eram tratadas pelas comunistas alemãs e russas diante da seriedade dos ataques contra-revolucionários e da necessidade de defesa da Revolução, lamentando: “E, agora, justamente agora, as comunistas ativas tratam da questão sexual, das formas de casamento no passado, no presente e no futuro, julgam que seu primeiro dever é instruir as operárias nessa ordem de idéias”. Lênin, menciona um “folheto de uma comunista vienense sobre a questão sexual” que seria uma “tolice”, por ter poucas noções exatas e por se utilizar de “hipóteses freudianas” que lhe conferiam “um caráter que se pretende científico, mas no fundo se trata de uma confusão superficial”. Segundo ele, tanto a teoria da questão sexual do folheto, como os escritos de Freud, fariam parte de uma “literatura específica que floresce com exuberância no terriço da sociedade burguesa”, da qual ele afirmava desconfiar. (ZETKIN, 1956). As questões sexuais e matrimoniais deveriam ser discutidas pelos comunistas a partir do ponto de vista do “materialismo histórico vital, bem compreendido” Finalmente, coloca a sua preocupação a respeito das teorias sexuais:

Parece-me que essa abundância de teorias sexuais, que não são em grande parte senão hipóteses arbitrárias, provém de necessidades inteiramente pessoais, isto é, da necessidade de justificar aos olhos da moral burguesa a própria vida anormal ou os próprios instintos sexuais excessivos e de fazê-la tolerá-los. (…) Esse respeito velado pela moral burguesa repugna-me tanto quanto essa paixão pelas questões sexuais. Tem um belo revestimento de formas subversivas e revolucionárias, mas essa ocupação não passa, no fim das contas, de puramente burguesa. A ela se dedicam de preferência os intelectuais e as outras camadas da sociedade que lhes são próximas. Para tal tipo de ocupação não há lugar no Partido, entre o proletariado que luta e tem consciência de classe. (ZETKIN, 1956)

Após concluída a fala de Lênin, Clara faz sua primeira intervenção desde o início da polêmica do Der Pranger, contestando e defendendo a importância teórica das questões sexuais e do casamento quando se pensava a ideia de libertação da mulher. Em sua fala, observa-se um reconhecimento da grandeza e importância do processo revolucionário, que cria as condições que permitiriam gestar um novo pensamento, novas relações e uma nova sociedade. Mais do que isso, reconhece a mudança das formas matrimoniais – decorrente também dos debates a respeito das questões sexuais – como um meio de aquisição de consciência de classe por parte das operárias, refutando a falsa moral sexual. Finalmente, relembra que a análise marxista da superestrutura da sociedade deve remeter necessariamente à análise da propriedade privada como base da ordem burguesa. Em uma metáfora que sintetiza a percepção estrutural da questão da mulher diante da teoria revolucionária, coloca que, ainda que todos os caminhos levassem à Roma, seria preciso destruir Cartago.

Fiz notar que as questões sexuais e matrimoniais, no regime de propriedade privada, suscitavam múltiplos problemas, que eram causa de contradições e de sofrimentos para as mulheres de todas as classes e de todas as camadas sociais. A guerra e suas conseqüências, disse eu, agravaram ao extremo para a mulher as contradições e os sofrimentos que existiam antes, nas relações entre os sexos. Os problemas, ocultos até então, foram agora revelados aos olhos das mulheres e isto na atmosfera da revolução recém-começada. O mundo, dos velhos sentimentos, das velhas idéias desmorona por toda parte. Os vínculos sociais, de uma só vez, se enfraquecem e se rompem. Vêem-se surgir os germes de novas premissas ideológicas, que ainda não tomaram forma, para as relações entre os homens. O interesse que essas questões suscitam exprime a necessidade de uma nova orientação. Surge ainda a reação que se produz contra as deformações e as mentiras da sociedade burguesa. A mudança das formas matrimoniais e familiares no curso da História, em sua dependência da economia, constituem um bom meio para varrer do espírito das operárias a crença na perpetuidade da sociedade burguesa. Fazer a crítica histórica dessa sociedade significa dissecar sem piedade a ordem burguesa, desnudar sua essência e suas conseqüências e estigmatizar além disso a falsa moral sexual. Todos os caminhos levam a Roma. Toda análise verdadeiramente marxista de uma parte importante da superestrutura ideológica da sociedade ou de um fenômeno social importante deve conduzir à análise da ordem burguesa e de sua base, a propriedade privada; cada uma dessas análises deve conduzir a esta conclusão: É preciso destruir Cartago. (ZETKIN, 1956)

Considerações finais

Durante o curso do século XX, os avanços do capitalismo industrial tornam ainda mais latentes as questões sexuais e, especificamente as práticas de prostituição, orientando o incipiente movimento feminista . Acerca dessas temáticas, as teorias do socialismo constituíram-se como uma das vozes críticas desde o século anterior, embora não reconhecessem a prostituição essencialmente como trabalho. Diante de todas as formas de exploração e desumanização dos trabalhadores e trabalhadoras características do contexto do capitalismo industrial, a prostituição continuava sendo uma instituição fundamental à moral burguesa e à manutenção das desigualdades de gênero e classe. (PARADIS, 2018) Nesse sentido, partia-se essencialmente de uma crítica ao capitalismo para denunciar a opressão das mulheres. Assim, a partir do socialismo científico , a opressão das mulheres e a prostituição passa a ser entendida como fruto da propriedade privada e dos arranjos familiares burgueses. (PARADIS, 2018).

As contribuições de Kolontai sobre as questões sexuais e sobre a prostituição movimentaram debates políticos dentro e fora da Rússia, principalmente através de sua atuação, bem como Clara Zetkin, no movimento internacional de mulheres. Defendeu firmemente que a revolução socialista só poderia ser exitosa se também politizasse o mundo privado das relações pessoais, em função de transformar a opressão simbólica das mulheres. (PARADIS, 2018). Nesse sentido, também formulou especialmente sobre os efeitos da prostituição para a sexualidade dos homens, subordinando àsvontades das mulheres. Também nesse sentido, as formulações de Clara Zetkin estabeleceram novos precedentes quando pensou a prostituição “como um produto da exploração capitalista sobre as mulheres, da deformação moral dos homens e da família burguesa e da dupla moral sexual que exigia das mulheres um comportamento centrado na castidade e indissolubilidade do casamento”. (PARADIS, 2018). Assim, reafirmava a ideia de que o fim da opressão das mulheres viria somente com o fim do capitalismo.

Ainda que Clara Zetkin tenha sido uma das primeiras teóricas marxistas a pensar a prostituição a partir da categoria de trabalho, o reconhecimento teórico da prostituição como uma forma de trabalho só acontece a partir da segunda metade do século XX. Sobre isso, as teorias contemporâneas reconhecem uma ausência política da perspectiva da prostituta, na medida em que negou-se por muito tempo uma abordagem trabalhista sobre a questão da prostituição e da noção de corpo e sexo como mercadorias (PALHA, 2019). Nesse sentido, o discurso e a perspectiva de Lênin tornam-se ilustrativas da inadmissibilidade, do pensamento marxista da virada do século, em contemplar a noção do ato e da satisfação sexual como formas mercantis, cuja relação que se estabelece é essencialmente a de produção (PALHA, 2019). Mais do que isso, ilustra as contradições entre o que se prezava até então na teoria marxista a respeito da questão da mulher e a prática dessa política feminina no contexto revolucionário. Dessa maneira, “a ausência da puta na discussão política torna as perspectivas da esposa referência única, implicando compreensões viciadas nas variações de relações sociais que apenas esta representa, ou seja, num grupo limitado (e identitariamente circunscrito) de experiências como o trabalho, o gênero, o sexo, o corpo e o desejo” (PALHA, 2019). Finalmente, ainda que a experiência soviética tenha proporcionado de fato um processo de reorientação do papel da mulher na sociedade, não foi capaz de superar aspectos centrais à organização capitalista, como a própria “dualidade complementar entre os lugares da esposa e da puta” (PALHA, 2019).

Notas:

(1) Tradução livre

(2) Tradução livre

Referências bibliográficas:

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GOLDMAN, Wendy. Mulher, Estado e revolução: política da família soviética e da vida
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KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

PALHA, Amanda. Transfeminismo e construção revolucionária. Margem Esquerda: Dossiê Marxismo e Lutas LGBT. São Paulo, Boitempo, 2019. n. 33, p. 11-18

PARADIS, Clarisse Goulart. A prostituição no marxismo clássico: crítica ao capitalismo e à dupla moral burguesa. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 2018. n. 26. ed.3.

SAFFIOTI, Heleieth. A questão da mulher na perspectiva socialista. Lutas Sociais. São Paulo, 2011. n.27, p.82-100.

SAHNO, Elena. A tentativa de construir a igualdade de gêneros na Rússia Soviética 1917 – 1937. 2017. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal da Bahia, 2017. [Disponível em: https://ppgcs.ufba.br/sites/ppgcs.ufba.br/files/elena_sahno.pdf. Acesso em: 11 maio 2021.]

SEVERI, Fabiana Cristina. Legislação familiar soviética e utopias feministas. Revista Direito e Práxis. Rio de Janeiro, 2017. Vol. 08, N.3, p. 2295-2313.

ZETKIN, Clara. Notas de meu Diário: Lênin, tal como era. In: LENIN, V. O socialismo e a emancipação da mulher. Editorial Vitória Ltda, 1956. [Disponível em https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/soc_eman_mulher/index.htm Acesso em: 28 mai. 2021.]

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2 comentários em “Diálogos marxistas sobre a prostituição: as contribuições de Alexandra Kolontai e Clara Zetkin e o caso do jornal Der Pranger”

  1. Oi 🙂 Adorei ler seu ensaio! Foi um bom resumo e estou usando como base para meus estudos. Vou ficar atenta para ver se tem mais sobre trabalho sexual em perspectiva marxista. Muito obrigada! 🙂

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