O conchavismo brasileiro

Por André Márcio Neves Soares, mestre e doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL, e integrante do Núcleo de Estudos sobre Educação e Direitos Humanos (NEDH). 

Quando falamos a palavra “conchavo”, parece que estamos nos remetendo apenas para o sentido ruim que ela pode ter. Assim, “conchavo” passeia no imaginário popular como um conluio ou uma mancomunação visando uma finalidade má. Esquecemos que “conchavo” pode também designar uma união, uma combinação para um objetivo correto. Assim, o “conchavo” brasileiro poderia não ter sido, necessariamente, um mal para a nossa história. Ao contrário, poderíamos ter forjado uma nação, após a proclamação da República, baseada em uma reunião de interesses que tivesse primado pelo entendimento mútuo, com o intento maior de um acordo entre e intra-classes. Infelizmente, não foi isso que ocorreu entre nós.


De fato, falar em história do Brasil é falar em conluios. Sem querer propor uma teoria do nosso conchavo – nem há espaço agora para tal intento -, em qualquer fase do nosso legado como povo, ao longo desses cinco séculos, a mancomunação sempre teve uma assertiva exploratória, predatória e destrutiva numa região em que o pecado era a abundância. Jamais houve entre nós uma miscigenação para além dos corpos, na maioria das vezes forçada, a depender das cores envolvidas. O Brasil, muito antes de ser Brasil, sempre viveu sob a égide da (re)arrumação de forças entre grupamentos humanos que se autoexploravam até a cadeia de força mais baixa, os escravos, que faziam o papel de animais dilapidados por esse entendimento primitivo pré-capitalista.

Destarte, falar em “conchavo” no nosso território é falar no acordo negativo da nossa história. Realmente, o Brasil não foi forjado por semideuses como os gregos ou nórdicos. Tampouco fomos fruto da visão messiânica europeia. Sequer tivemos líderes fortes que desafiaram o império, como aconteceu na parte espanhola da América do Sul e Central. A história desse país teve de tudo, menos heróis. É verdade que houve mártires, porém, como o próprio nome já diz, foram homens/mulheres sacrificados/as em nome da honra da coroa e, posteriormente, em nome da República. Donde confirmamos a negatividade do nosso acordo nacional.

O “conchavo” brasileiro tem na sua história episódios tenebrosos e hilariantes, mas jamais heróicos. Os tenebrosos podem ser exemplificados nos corpos negros que apodreceram no fundo do mar, após inúmeros naufrágios de embarcações carregadas de seres humanos acorrentados como animais, ou em cima da terra, ceifados de tanto trabalhar em lavouras de monoculturas. Os hilariantes podem ser lembrados aos montes: como a covardia de D. João VI fugindo às pressas de Napoleão com sua corte, ou parte dela, e todo o ouro que conseguiu trazer nos seus navios. Uma covardia ainda maior, considerando que sequer ficou para avaliar as reais condições de uma possível batalha. D. João VI teria visto uma tropa francesa em frangalhos chegar à fronteira do seu país; ou, mais recentemente, o golpe militar dado aos solavancos para a proclamação da República, fruto de uma briga entre dois militares de alta patente, sendo um deles o próprio Marechal Deodoro da Fonseca, por uma “rapariga”. É evidente que a República não nasce só por causa dessa disputa, bem longe disso, mas não deixa de ser engraçado saber desta notícia de “bastidor”, como dizem hoje os comentaristas políticos.

É triste pensar que não tivemos um Teseu ou um Aquiles, um Thor muito menos, um Simon Bolívar ou José Martí. É verdade que a história do Brasil teve inúmeras pessoas de valor, heróis de pequena monta temporal. Homens e mulheres que deram suas vidas por outros/as e, mais recentemente, por um país mais justo. Quantos não sucumbiram nos sucessivos momentos de maior enfrentamento entre as classes mais abastadas e a grande maioria da população calejada pela eterna falta de condições mínimas para uma vida suficiente? Mas o que seria uma vida suficiente? Nunca saberemos. O mito fundador da nossa história não foi escrito nesses termos. O mito fundador do Brasil sempre perpassou pelo trio de palavras tão fortes, quanto tristes: sangue, suor e lágrimas. Talvez seja por isso que a sabedoria popular cunhou frases como “o nordestino é um forte” ou “sou brasileiro e nunca desisto”. Pois se desistisse morria.

Dessa maneira, o “conchavo” negativo brasileiro deve ser entendido como um pilar até hoje instransponível da nossa sociedade, porém no sentido pejorativo do termo: um “conchavismo”. Pois aqui “em se plantando tudo dá”, já dizia o escrivão Pero Vaz de Caminha, em sua carta de descobrimento ao rei de Portugal. Especialmente mancomunações. Ora, salvo momentos de maior entrevero entre assaltantes de solo alheio e a população vivente, qual a nossa maior batalha campal? A independência? Aquela do riacho com meia dúzia de soldados que entrou para a história como o momento do grito de “Independência ou Morte”? Hilário não? Talvez a Guerra do Paraguai? Aquela que vencemos sabe lá deus como, manchada pelas atrocidades cometidas ao povo guarani já indefeso? Repararam o lapso de tempo entre o descobrimento e estes momentos? Três séculos de … nada. Nenhum herói do porte de um Spartacus. Sequer temos a certeza que Zumbi dos Palmares foi, realmente, uma pessoa ou um grupo de sobreviventes que se entrincheiraram num enclave defendido por décadas.

O conluio da nossa história já começa desde cedo, com a lenda da personagem Caramuru: um náufrago que sobrevive com toda aquela roupa pesada, nadando com um braço só, pois o outro segurava uma arma de fogo a base de pólvora, e que chega à praia com alguns nativos/as a recepcioná-lo bem, de modo que ele ainda tem forças para atirar e ser chamado de “homem do fogo”, o nosso Caramuru ensinado nas escolas. Atravessa os séculos de exploração animalesca de seres humanos, mas que eram retratados lá fora como pessoas de segunda categoria ou mesmo não-pessoas. Enrijece o tecido social brasileiro baseado na mentira de uma guerra vencida com bravura (a Guerra do Paraguai), que vai propiciar à classe militar protagonismo antes nunca alcançado. Brutaliza a ideia de uma nação democrática com o golpe civil-militar de 1964; retorna a uma aparente calmaria, caçando marajás e trocando de moeda como se troca de roupa; e, quando parece ter amadurecido o suficiente para ter, enfim, uma sequência de governos voltados para a melhoria do bem-estar interno, nossa história dá um “cavalo de pau”, uma “pirueta”, e retrocede 50 anos, no mínimo, com um governo protofascista.

Isto esclarecido, podemos afirmar que não se pode transformar impunemente uma sociedade fabricada sob o pilar do “conchavismo”. Este não visa apaziguar tensões sociais, mas desqualificá-las. Não busca resolver conflitos econômicos, mas aprofundá-los em nome do lucro desmedido. Não promove justiça entre desiguais, mas enaltece desigualdades entre pessoas que deveriam ser iguais. Não oferece liberdade aos enredados em situações de risco, mas cobra deles fidelidade plena ao sistema que os aprisiona. Estabelece relações de trocas fetichizadas não pela necessidade, mas pelo interesse maior do ganho fácil. O “conchavismo” brasileiro é um paradigma de sobrevivência violento.

Dessa forma, é preciso ter em mente que a nossa evolução histórica sempre esteve atrelada aos interesses mais egoístas de poucos afortunados, entre tantos explorados. A luta revolucionária por uma vida melhor, sempre muito sangrenta e dolorosa, mas que ajuda a colocar nos trilhos qualquer sociedade que teima em descarrilhar os mais necessitados, não passou de um punhado de revoltas pontuais neste canto do planeta. Aqui, como talvez em nenhum outro ponto da terra, o fogo purificador de uma guerra civil esteve longe de acontecer. Não que isso seja bom por si mesmo. A perda de vidas humanas em momentos como esse sempre barbarizou, momentaneamente, as relações sociais ao longo da história. Contudo, essa mesma história nos mostra que o animal humano precisou se barbarizar por breves ou longos períodos para dar valor à própria vida. Nessa toada, a história do nosso conluio não foi barbarizada.

De fato, a barbárie aqui dentro só reinou para os fracos e oprimidos. Aos que se banquetearam durante séculos nada de mais grave foi impingido, a não ser uma briga aqui, uma tocaia acolá, quiçá ínfimos momentos de revoltosos em luta. As grandes batalhas que amadurecem uma nação, aqui não foram travadas. Não porque não existissem condições adequadas para isso. Pelo contrário. O Brasil de outrora, como o atual, perpetua uma desigualdade fenomenal, digna de estudos mais apurados e detalhados quanto ao seu aspecto mais invisível: o “conchavo”. Este fator permissivo, desleal e seletivo por natureza esteve na base das relações de compadrio e potência geradora de cada etapa do desenvolvimento desse país. Nada menos indigno do que morrer de tanto trabalhar para (sobre)viver ou, o que é ainda pior, morrer sem nada ter. Então, por que olhamos para trás e não vemos grandes e duradouros movimentos populares pela cidadania? Por que ainda hoje, em pleno século XXI, no início da sua terceira década, não podemos afirmar que o povo brasileiro pode gabar-se de ter todos os seus direitos garantidos?

É verdade que o movimento abolicionista foi o que mais perto chegou de uma grande revolução, já que as passagens de regimes políticos nunca ensejaram grandes lutas. Está correto também dizer que, mesmo com o fim da escravidão, nossa sociedade sempre manteve um olhar desqualificado para as pessoas negras e pardas, além de uma atitude de segregação racial permanente através de políticas públicas não inclusivas, mas apenas interesseiras. Esses exemplos são fatos que explicam em parte nosso regime peculiar de “conchavo” democrático, mas não justifica o nosso subdesenvolvimento como nação. Realmente, para justificar um país com tão grande potencial, mas que nunca saiu de seu atraso letárgico em todas as esferas que fazem um país soberano, criou-se uma metáfora que traduz bem nossa história: o Brasil em vias de desenvolvimento. Desta metáfora para a atual, a de um país com capitalismo tardio, foram muitas com nomes diferentes. O “conchavismo” brasileiro precisa de uma designação pomposa, e país periférico não colava bem.

A violenta República representativa do Brasil não se faz de rogada nos seus conluios. Ainda hoje, muitos dos parlamentares que compuseram a base de sustentação parlamentar dos governos petista e propiciaram um suspiro de alívio aos mais necessitados, ante o esgotamento das opções de sobrevivência nas décadas anteriores, formam a mesma base parlamentar que vota para destruir os parcos direitos conquistados no período entre 2003 – 2015 (Governo Lula e Governo Dilma). Não basta um regime de governo que possibilite a perpetuação no poder dos que mais possuem. É preciso que os governos referendados por eles, já que o voto democrático é um mito, rastejem de encontro aos seus interesses. Assim, os 13 anos de governos menos “draconianos” contra os desfavorecidos foi demais para a turba das eternas mancomunações. Agora eles estão fazendo a conta de bondades ir pelo ralo.

É por isso que o “conchavismo” brasileiro se assemelha tanto à “Necropolítica” de Mbembe (2018): essa especificidade da nossa política está desde o cerne da nossa emancipação, assim como o escritor camaronês resgata no seu livro o conceito de Foucault de “biopoder”, ou seja, “aquele domínio da vida sobre o qual o poder estabeleceu o controle”. Ora, não tem sido exatamente assim a trajetória da República brasileira? Antes disso. Desde que fomos reconhecidos como uma nação soberana não nascemos sob a prostração de uma dívida impagável com a potência da época, a Inglaterra? Não é correto afirmar que o país se inviabilizou, se desconstruiu e se desenvolveu sob a égide de um endividamento crônico, sempre sobre a falsa premissa econômica de uma inflação de demanda? Mas como existir, meu deus, uma inflação de demanda num país de miseráveis, com pequenos oásis de prosperidade capitalista selvagem (hoje denominada “rentista”)?

Se para Mbembe o “necropoder”, em referência à Faixa de Gaza, é “a dinâmica de fragmentação territorial, o acesso proibido a certas zonas e a expansão dos assentamentos”, tudo para impedir a movimentação dos palestinos à moda do apartheid, o que existe de diferente, conceitualmente, no nosso cotidiano? Nesse sentido, a fragmentação territorial tem sido uma constante ao longo da República. O acesso a certas zonas de maior poder aquisitivo, algumas até públicas, como praias e shoppings centers. A expansão de assentamentos de luxo ocorre também ao redor das favelas, expulsando-as para regiões ainda mais distantes. Donde afirmamos que o objetivo maior, ainda que disfarçado, é perpetuar o apartheid brasileiro.

Portanto, o “conchavismo” brasileiro opera pela mesma lógica do estilhaçamento característico do mundo contemporâneo, mas com uma sincronia peculiar, qual seja, a atuação do poder público em todos os seus âmbitos – municipal, estadual e federal – para a submissão do/a cidadão/ã na esfera política, e sua reclusão apenas para a esfera econômica. Nesta ele/ela é bem-vindo/a, desde que seja um/uma consumidor/a solvente, ou seja, sempre capaz de consumir e pagar suas dívidas. Na outra esfera, deve permitir o controle e a vigilância dos seus atos. Não à toa, o atual sistema eleitoral brasileiro, com suas dezenas de partidos e quase nenhuma fidelidade entre seus pares, mais confunde do que esclarece sobre o que se está discutindo para melhorar as condições básicas da população. Estamos mesmo discutindo mudanças substanciais e perenes para salvaguardar a dignidade da pessoa humana aqui no nosso país?

A conclusão, à guisa de tudo que aqui foi dito, aponta para um Estado sem povo, ou melhor, sem participação popular na maioria dos grandes eventos políticos desse país. Salvo algumas comoções pontuais, como o grande comício na Central do Brasil, no governo de João Goulart em 1964; o comício pelas “Diretas Já”, em 1984 na Candelária, talvez o período de maior participação popular desde os movimentos abolicionista; ou mais recentemente os movimentos populares pelos impeachments de Collor de Mello e Dilma Rousseff, a verdade é que a “ágora” onde as decisões políticas foram tomadas, muitas vezes na calada da noite, ficou restrita aos gabinetes.

É por esse motivo que venho descrevendo há tempos nosso regime político como uma subdemocracia. Não porque a democracia não exista formalmente, com a maioria da população apta a votar, mas porque ela é subalterna aos interesses dos que mais possuem. Na falta de uma democracia plena, os direitos dos/as cidadãos/ãs brasileiros/as (sociais, civis e políticos) ficam sempre na berlinda no que se refere à essência maior desse regime político: a de um povo que comanda a sua própria história. Em outros termos, significa dizer que temos uma cidadania fragmentada por classes sociais, ou seja, aqueles de maior poder aquisitivo possuem “maior cidadania” e vice-versa. Dito de outro modo, a subdemocracia brasileira produz uma subcidadania baseada na resistência à inclusão social plena, que esteve presente ao longo do processo histórico de desigualdade social inerente a uma sociedade racista ao extremo, fruto do período escravista mais extenso que qualquer sociedade moderna experimentou. A história republicana brasileira está repleta de exemplos de conchavos políticos que frearam as iniciativas populares de maior participação no destino da nação.

Para arrematar, é bom lembrar que CARVALHO (2016), ao comentar sobre o período inicial da nossa República (1889 – 1930), a chamada República Velha, diz: “Até 1930 não havia povo organizado politicamente nem sentimento nacional consolidado. A participação na política nacional, inclusive nos grandes acontecimentos, era limitada a pequenos grupos … O povo não tinha lugar no sistema político, seja no Império, seja na República. O Brasil ainda era para ele uma realidade abstrata”. De lá pra cá, mudamos tanto assim?

REFERÊNCIA:

MBEMBE, Achille. NECROPOLITICA. São Paulo. Editora n-1. 2018;

CARVALHO, José Murilo de. CIDADANIA NO BRASIL: O longo caminho. 21ª. Edição. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2016;

 

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