Para onde foi Clarice Lispector?

Por Matheus Cosmo (1)

Como doutorando e professor, há muito tempo, já nem saberia mais precisar exatamente quanto, tenho ouvido uma queixa de outros colegas de trabalho, também parceiros de estudos e pesquisas: segundo eles, os alunos e jovens estariam lendo cada vez menos – e, quanto mais avançamos na idade, passando da infância à adolescência e chegando até os adultos e idosos, menor se torna o número real de leitores. Como se pode imaginar, a reclamação não é nova e parece não fazer muita questão de seu ineditismo, indo desde os professores do Ensino Fundamental até meus pares de pós-graduação, sempre acompanhados por matérias de revistas e jornais, publicadas a cada ano, quando o assunto volta a se transformar em pauta de discussão pública. Sem imediatamente concordar nem discordar deste palpite popular, embasado por pesquisas e porcentagens nos mais diversos meios, vamos aos fatos.

Era uma quinta-feira de muito sol quando eu estava em uma livraria e uma jovem moça me pediu ajuda para encontrar “A hora da estrela”, de Clarice Lispector. Aparentemente, ainda que ela não soubesse em muitos detalhes sobre o que se tratava a obra, o tom assertivo, cheio de quem sabe o que quer e não sairia dali até encontrar o objeto desejado, parecia demonstrar grande interesse de sua parte. Com igual entusiasmo, passei a ajudá-la em sua busca, a qual agora se tornara uma tarefa em dupla.

Enquanto procurávamos o tal exemplar clariceano, conversamos um tanto sobre a autora e suas produções. Aproveitei a conversa e comentei da adaptação cinematográfica dirigida por Suzana Amaral na década de 1980, estrelando Marcélia Cartaxo, a quem se deve muito do sucesso do filme. Contei, ainda, de minha incapacidade de finalizar a leitura de “A paixão segundo G.H.” – e meu consolo de imaginar que posso ainda não ter a alma formada, uma vez que a própria Clarice declarou que apenas essas pessoas seriam os melhores leitores de seu romance. Sobrou tempo até para alguns paralelos com “A Cartomante”, de Machado de Assis (texto já conhecido pela jovem moça, de cabelos cacheados), e a “Cena Aberta”, feita junto à Globo, com Regina Casé procurando por sua Macabea em rede nacional – e, para minha surpresa, esta teria sido a primeira aproximação da jovem com a obra, via registros disponíveis on-line.

Como parte do destino laboral de vida de um professor, que continua a trabalhar mesmo quando não está mais trabalhando, em um mundo tão carente de explicações e esclarecimentos a todo instante, informalmente, sem que a garota se desse conta de que eu havia iniciado uma rápida aula naquele mesmo instante, segui minha exposição didática de algumas características da autora, até que, enfim, encontramos o tão desejado livro e, num abraço que mesclava agradecimento e despedida, seguimos nossos diferentes rumos. Entretanto, como se renunciasse àquele tchau-e-muito-obrigada, com um leve ar de curiosidade ou de desconfiança, de longe continuei a observar a jovem moça.

Foi então que o improvável aconteceu.

Enquanto observava atentamente a disposição dos livros nas estantes, aquela jovem moça, de cujo nome já não me lembro, encontrou os por ora tão famosos exemplares de “Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente”, escritos por Igor Pires da Silva, cuja fama e sucesso se devem exponencialmente à divulgação de seus excertos nas redes sociais. Aparentemente, ao que me pareceu pelo observar discreto do canto de olho esquerdo, sem pensar muito sobre o assunto, aquela doce menina logo largou a pobre Clarice em qualquer cantinho das velhas prateleiras, pegou seus novos textos cruéis, se dirigiu ao caixa e ali deixou para trás, num ato de igual crueldade, Clarice, Casé, Cartaxo e todas as Macabeas que encontrara pelo caminho – eu, inclusive.

Naquele breve instante de segundo, entre a aproximação de seu cartão à máquina e a aceitação do pagamento, minha cabeça correu a muitos lugares: haveria algum jeito de convencer aquela garota a não abandonar Clarice Lispector assim, tão facilmente? Pensei: como provar a ela que aquilo que poderia encontrar na literatura de Clarice seria infinitamente maior e infinitamente melhor que na outra obra de sua escolha – sem com isso ter de remontar aquela velha dicotomia entre arte elevada e arte popular, ou entre a Grande Arte e os produtos da indústria cultural, algo sempre tão questionado e problematizado desde o fim do século passado, ainda que mantenha parte de seu conteúdo de verdade?

Não se tratava de desmerecer uma das obras em prol da outra, afirmando que apenas uma delas seria parte de um monstruoso e respeitável cânone literário, já tão batido, problematizado e por vezes até negado em todos os cantos. Mas se tratava, talvez, de reconhecer qual seria a efetiva função e participação da arte em nossas vidas.

Foi, então, que comecei a discordar de todos os meus colegas: a despeito das estatísticas, não parece verdade que os jovens leiam menos que o esperado. O fato é que sua formação enquanto leitores caminha a passos muito distantes daquilo que gostaríamos e esperávamos.

É provável que já não lhes pareça tão oportuno ler Machado, Tchekhov, Shakespeare e Drummond, por exemplo. Estes agora foram todos trocados por romances juvenis de enredos clichês, histórias de corações partidos e duvidosas recomendações para sua autoestima, todas com um certo ar problemático de autoajuda – e isso tudo sem contar os artigos religiosos, é claro. Ora, mas seria possível imaginar algo diferente?

Em um tempo de completo descrédito da ciência e de ódio ao exercício do pensamento, não surpreende que nossa capacidade de reflexão seja reduzida a puros movimentos identificatórios: lê-se para enxergar-se nas páginas – não mais como um exercício de imaginação de uma outra realidade, como a configuração de um novo mundo ou, ainda, como a descoberta de minúcias referentes aos entraves políticos de seu próprio tempo, pautado pelo esmagamento e pela invisibilização de toda uma classe, com orientação sexual, gênero e cor muito específicos, mas como a pura comprovação do que já se é, do que já se vive, se sente e se sabe. O entretenimento e a distração estão acima de tudo e eles sabem bem como incorporar todas as mazelas de nossa realidade. Ora, talvez seja também esta uma das viradas mais nefastas ocasionadas pela incorporação mercadológica do avanço identitário dos últimos anos, tão urgente e necessário: a saber, o desejo de ser quem eu sou e de encontrar outros iguais a mim pode ter ofuscado nossa capacidade de imaginar outras possibilidades, futuros e mundos. (Não à toa, a produção de e a busca por biografias tem aumentado exponencialmente: quando foi que a vida alheia passou a nos interessar tanto assim, indo da página dos livros até as redes sociais e reality shows de qualidade extremamente questionável?).

Aos professores e colegas de pesquisa: onde falhamos, então, quando Clarice Lispector fica abandonada em meio à poeira das estantes? quando toda a poesia de Drummond, Cecília e Bandeira permanece intacta há meses, carente de leitores vindo a seu encontro? quando o pobre Dostoiévski continua sem conhecer nosso cada vez mais forte calor tropical? Independentemente da argumentação adotada, um dado é notável: não é porque os jovens já não leem mais. Eles leem. Mas não com a formação e inteligência que gostaríamos que tivessem.

Ao que parece, nossa problematização constante do cânone, bem como a sua falta de incorporação efetiva no imaginário social, levou consigo, numa mesma e única tacada, todas as bases que fundamentam a qualidade e a reflexão acerca de um objeto artístico. E isso tudo sem entrar nos meandros da própria elaboração formal de cada objeto, discussão estética par excellence, que agora deixa de ser pensada enquanto síntese de um processo histórico, justamente no momento histórico em que se mostra na claridade de sua figuração ideológica: uma mercadoria a serviço da classe dominante, trabalhada a partir de um patamar falsamente revolucionário, segundo o qual a arte é sempre resistência, sempre combate, sempre uma iluminação, sempre a possibilidade de dar voz aos oprimidos. Nem sempre. Mas isso fica para outro dia, porque agora quero conversar com uma outra jovem moça, que acaba de recusar Kafka e George Orwell, com um único argumento a seu pai: “E você acha mesmo que eu vou ler alguma coisa que foi indicada pelo meu professor de Português?”.

Notas:

(1) Matheus Cosmo é professor, doutorando em teoria literária pela USP e mestre em artes pela mesma universidade.

Compartilhe:

Deixe um comentário