A decadência dos centros urbanos e a cidade como obra em Retratos Fantasmas: uma breve resenha

Por Laís Tercioti Vieira (1)

A cidade pode se apoderar das significações existentes, políticas, religiosas, filosóficas. Apoderar-se delas para as dizer, para expô-las pela via – ou pela voz – dos edifícios, dos monumentos, e também pelas ruas e praças, pelos vazios, pela teatralização espontânea dos encontros que nela se desenrolam, sem esquecer as festas, as cerimônias. Henri Lefebvre, em O direito à cidade

Introdução

Não é incomum que observemos, em qualquer cidade do Brasil e do mundo, a degradação e o abandono dos espaços públicos centrais, que antes ditavam o curso da vida urbana e dos agitos noturnos, agora se distanciando do papel de principal centro de decisão, informação e consequente influência na programação da juventude. Muitos núcleos urbanos antigos se deterioram ou explodem. Esses centros são abandonados para os pobres e tornam-se gueto para os desfavorecidos (Lefebvre, 2001). É claro que algumas decisões engendradas por figuras políticas e, claro, pela forma econômico-burocrática da cidade preservam a sua forma histórica e as suas obras em maior ou menor medida, mas não se pode negar a tendência geral de deslocamento do capital e da decadência dos centros urbanos.

Esse movimento de deslocamento muito bem capturado por Kleber Mendonça Filho em sua última obra, Retratos Fantasmas, na cena em que direciona a câmera a uma série de prédios altos, em contraposição às imagens vazias e silenciosas do centro “velho”, dizendo que o dinheiro por lá não fica mais, pôde reforçar aquilo que Henri Lefebvre já anunciava em 1968, quando publicou O direito à cidade: ela reproduz as relações de produção e de propriedade. Ela é, portanto, uma mediação entre as mediações (p. 52).

A cidade como obra

É fácil para aqueles que estão por dentro das considerações da teoria sociológica sobre mundo urbano identificar as intenções presentes nas reflexões que transformam a cidade em uma entidade, um organismo ou um todo que exerce influência sobre outras partes. Lefebvre deseja vê-la não só como o resultado de um processo que engloba outras diversas especificidades, mas almeja a elevar a estado de obra, muito mais do que um produto cuja troca é o fim. Aquelas considerações organicistas ocultam a realidade do urbano. A cidade, o Recife de Kleber Mendonça Filho é a obra de um ator, um agente histórico cujo sentido da cidade, de suas residências e cinemas é traçado pelo próprio diretor a fim de conservar o seu valor de uso e (tentar) se desviar do consumo, que sabota a compreensão de que a cidade é somente um “centro de acumulação de riquezas”, como dita Lefebvre.

Compreender a cidade como obra é, para entendê-la além das relações de troca, de obtenção de lucro, de dinheiro e dos produtos, ter consciência de que a sua existência precede a industrialização. E os diversos momentos da história que demonstram modos de produção presentes nas cidades pré-capitalistas, a oriental, grega e medieval, não tomaram a cidade como exclusivamente como um produto.

As cidades têm uma história, elas são obra de uma história, e todas as possibilidades que as limitam ou as fazem progredir não são suficientes para explicar aquilo que nasce delas, nelas e através delas (2001). E tais feitos são encaminhados através de mãos humanas para outros seres humanos, sendo essa compreensão muito mais relevante do que as pensar como uma mera via de (re)produção de objetos vendáveis.

Portanto, à esta altura, reduzir as relações que são estabelecidas na cidade à dinâmica e às exigências dos centros de decisão e, portanto, de consumo, é pura ideologia. Assim como também o é tomá-la como um sistema de signos e não como o próprio material para a obra dos citadinos em favor dos seus desejos. Aliás, seria um outro erro pensar que o que é proposto no documentário propõe a superação da submissão da arte, e principalmente do cinema, à forma do lucro.

É claro que ela não será alcançada tão cedo. O que está em jogo de fato é, para a teoria de Lefebvre, a crítica ao urbanismo ideológico, que inverte os sentidos atribuídos aos espaços, que devem ser entendidos a partir do que emulam da produção industrial, da sua relação com as forças produtivas e com o trabalho, quando deveriam ser, agora de modo a pensar em Retratos Fantasmas, pensadas através do uso principal da cidade, que são as festas. Elas, ao contrário da produção, revelam um valor improdutivo, porque consomem enormes riquezas em objetos e em dinheiro para prazer e prestígio. O cinema de rua, artefato tão bem-quisto por Kleber Mendonça Filho, por fazer parte de sua memória e atribuir sentido à sua existência, tem para ele o mesmo sentido das festas. É ingênuo, entretanto, pensar que o cinema não se atrela à prisão que cultiva a dominação do capital. Sob a mesma lógica, tomando agora a arte como centro, pensar um projeto de trabalho livre restrito à uma ilha cercada por dominação é uma contradição em termos. “Liberdade efetiva […] implica sua generalização. Senão azeda” (FERRO, 2015, p. 27).

Mas não pode ser negado o fato de que o resgate que faz o diretor às imagens do carnaval de rua do Recife, um dos maiores do Brasil, demonstra que o caminho que escolhem os citadinos para a expressão da teatralidade informal, contra o cotidiano e amplificadora de uma revolução artística e urbana suspensa na “vida real”, temporária, é aquele que valoriza o centro decadente, fazendo-os voltar a ocupá-lo com fervor. Esta é, assim, uma festa de rua que não vê espaço para si nos novos centros de decisão, onde o capital está posto e se reproduzindo mais intensamente. Por mais que não seja uma ocupação que prometa a superação da ordem no espaço urbano, ela proporciona um gosto do que seria a cidade como refúgio do valor de uso, como embriões de uma virtual predominância e de uma revalorização do uso (2001).

É evidente a tentativa do diretor de devolver à cidade seu sentido de obra quando expõe imagens de fantasmas, vidas que não existem mais, podendo ser eles o movimento das ruas induzido por filmes em cartaz, que geram filas e consequentes interações neste tempo de espera entre estar na calçada e, depois, na sala de cinema. Podem ser um fantasma, também, aquele que trabalha no manuseio dos filmes e os projeta, e que se emociona com a notícia do fechamento do cinema onde estava há anos, mesmo sendo atormentado com a reprodução dos mesmos filmes, todos os dias.

Os fantasmas são lembranças de um uso significativo, para o diretor e para o espectador, que pensa daquela mesma forma a cidade como sua. E, quando os seus lugares favoritos se vão em favor de uma décima farmácia na rua, ou de uma igreja evangélica, o que nos resta é assistir ao culto que acontece nas mesmas cadeiras que estiveram lá quando O Poderoso Chefão estreou. A cena que faz uma transição brusca do mesmo recorte do lugar, o cinema, para a sua função atual, a de uma igreja, é um fantasma rodeando as memórias de seus espectadores.

O tal “cinema evangelizado”, ou, se assim for equivalente dizer, “farmacializado”, ainda é cinema na memória: o seu uso está sendo ressignificado a partir de determinados interesses que já não mais o colocam em primeiro plano. Isto não quer dizer que a disposição das cadeiras, todas de madeira, e o canto antes reservado para uma tela, não imprimam um quê de passado no presente, ou até no futuro. Isto não quer dizer conformismo ou aceitação, mas assim, novamente como está em Lefebvre, entender que “o urbano é a obra dos citadinos em lugar de se impor a cidade a eles como um sistema, como um livro já acabado”. Dito e feito. Ao sair da sala de cinema, não pude ver mais a cidade como antes. Capturei as lentes de Kleber e, num absoluto incômodo, passei a observar lojas e farmácias e farmácias e, talvez, academias.

É aqui, portanto, onde mora o beijo final, o happy end. Ainda, pelo menos em mim, há esperança de que as ruas não se percam na construção de prédios gigantescos e espelhados, ou mesmo nos cinemas estarem presos, sufocados dentro dos shoppings. E acredito que a esperança não resida somente em mim, porque a multiplicação e a complexificação das trocas no sentido amplo da palavra não podem continuar sem que existam locais e momentos privilegiados, sem que esses lugares e momentos de encontro se libertem da coação do mercado, sem que a lei do valor de troca seja dominada, sem que modifiquem as relações que condicionam o lucro (Lefebvre, 2001).

Notas:

(1) 26Está cursando o bacharelado em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Londrina, no Paraná.

Referências:

FERRO, Sérgio. Artes plásticas e trabalho livre: de Dürer a Velázquez. São Paulo: Editora 34, 2015.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.

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1 comentário em “A decadência dos centros urbanos e a cidade como obra em Retratos Fantasmas: uma breve resenha”

  1. Laís, você conhece as obras do Milton Santos? Obras como O centro da cidade de Salvador, Economia política urbana, a coletânea Espaço e sociedade, o artigo Formação Social como teoria e método são formulações desse geógrafo que podem ser muito férteis para alguns dos pontos que você destaca nessa sua análise sobre o filme documentário do Kléber Mendonça Filho.

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