A história da filosofia considerada como uma luta de tendências

Por Pierre Macherey, traduzido por Fábio Ramos Barbosa Filho (1)

Não se supera uma filosofia simplesmente declarando-a falsa.
Friedrich Engels (2)

Para o marxismo, a história da filosofia é uma história objetiva: um processo, uma luta, luta de tendências, luta entre duas tendências, dizem precisamente Engels, depois Lênin. Essas formulações modificam a representação da história da filosofia em dois pontos:

1. Do lado do materialismo, a história da filosofia aparece como um processo concreto, que depende sempre de uma conjuntura singular, e das formas específicas de prática filosófica que esta exige. Contra as interpretações formalistas ou finalistas da história da filosofia, ainda em vigor, deve-se dizer que esta é determinada por condições materiais, históricas, que não dependem da coerência de um sistema ou da intenção de um autor.
2. Do lado da dialética, inseparável, aliás, da anterior, a luta filosófica se apresenta como o desenvolvimento de uma contradição, ou de um conjunto complexo de contradições: ela põe em jogo, portanto, contrários, que devem ser identificados, e cuja relação exata deve ser medida.

A questão que procuraremos responder aqui é a seguinte: de que modo a intervenção conjunta do materialismo e da dialética, materializada no conceito de “luta de tendências”, permite-nos desenvolver efetivamente o nosso conhecimento da história da filosofia? Dizemos bem: desenvolvê-lo, ou seja, agregar-lhe novos conhecimentos, e não apenas dobrá-la com uma interpretação geral, uma teoria abstrata da história da filosofia, que apenas acrescentaria mais um número à já longa lista de suas fantasmagorias.

Tomemos, imediatamente, um exemplo, ao qual voltaremos mais adiante: a categoria de “real”, que atravessa toda a história da filosofia. Compreender essa categoria, do ponto de vista marxista, é mostrar a especificidade da luta na qual ela está em jogo. Muito sumariamente, o “real” parece primeiro designar um conteúdo objetivo, independente da iniciativa de um sujeito, algo que se assemelha fortemente à ideia de realidade material objetiva que está na base de todo materialismo. Por que então o materialismo não é um realismo? Por que o realismo é um materialismo inconsequente? Porque, como mostra a história da filosofia em seu desenvolvimento concreto, o idealismo não cessa de reivindicar essa categoria, interpretando-a à sua maneira: faz então do real uma abstração, uma entidade ideal, definida por características emprestadas do próprio pensamento (identidade, formalidade, perenidade); ou então, associado à “experiência”, categoria ainda mais ambígua, o real aparece como indissociável da finalidade constitutiva de um sujeito (transcendental ou empírico) que lhe dá as suas condições de possibilidade. Sob formas muito diversas, que vão do idealismo objetivo ao idealismo subjetivo, uma categoria aparentemente materialista é objeto de uma retomada, de uma exploração, que modifica completamente o seu conteúdo.

Assim, uma categoria filosófica não possui jamais um sentido dado, fixado de uma vez por todas, que ela levaria consigo por toda a parte: ela funciona como o elemento, ou o entorno [l’enjeu], de uma contradição, sempre determinada por condições objetivas particulares. Só podemos, portanto, explicar a noção de real relacionando-a aos seus dois aspectos, às duas tendências nas quais ela está implicada:

1. O materialismo revela o desvio idealista da categoria de real e a transforma impondo um uso retificado dela (no lugar do real, ele propõe: realidade material objetiva, independente do pensamento e que preexiste a ele, o que não é, de forma alguma, a mesma coisa).
2. O idealismo, ao contrário, renovando sua exploração da categoria de real, consegue substituir a realidade material objetiva pelo pensamento e, assim, dissimular a verdadeira natureza da filosofia como uma luta de tendências: o idealismo, e isso é bem conhecido, está “acima” das tendências, e não admite sequer a existência delas. É aqui que as coisas começam a ficar bastante interessantes: se o idealismo precisa, sob as espécies do realismo, por exemplo, tomar emprestadas do materialismo as suas próprias armas, tirando-lhe uma de suas palavras (em filosofia, as palavras são armas), é que ele não existe por si mesmo e se dermos a esta fórmula o seu sentido exato, ele é apenas a forma invertida do materialismo. Aqui é preciso prestar atenção no que dizemos: se o idealismo é o inverso do materialismo, a recíproca não é necessariamente verdadeira.

O idealismo é a negação do materialismo, e veremos que ele não é nada além da recusa, às vezes explícita, na maioria das vezes não reconhecida, do fato materialista fundamental que existe fora do pensamento, fora da filosofia. Mas o materialismo não é a negação do idealismo: negação de uma negação, resolução da contradição fundamental, salto qualitativo que levaria a quê? A um retorno ao fato materialista fundamental, à sua posição inicial. Deve-se, contrariamente, dizer que o materialismo só pode efetivamente (isto é, concretamente, praticamente) vencer o idealismo no terreno da luta filosófica desenvolvendo-se, isto é, transformando-se em materialismo consequente, dialético, que suprime a tendência idealista em seu próprio ponto de vista. Apresentar essa transformação como a negação de uma negação, a inversão de uma inversão, é fazer dela uma operação mecânica: ou, pelo artifício de uma resolução (que é o completo oposto de uma revolução) no sentido hegeliano, faz-se desaparecer a contradição na síntese dos dois pontos de vista que ela  opôs provisoriamente, e é o idealismo que vence; ou voltamos pura e simplesmente ao ponto de partida, ao materialismo de base, tal como foi invertido pelo idealismo. Por meio da categoria “voltar aos fatos”, Marx e Engels pensavam algo assim em 1845. Mas, Lênin deixou claro, a filosofia não é mero materialismo, mas “um materialismo que vai mais longe” [un matérialisme qui va plus loin], um materialismo que se tornou dialético e que portanto não coincide mais completamente com sua posição inicial, da qual o idealismo não é efetivamente apenas a negação, ou a denegação.

É por isso que podemos levar muito a sério a ideia de que a filosofia é, e nada mais é, do que uma luta de tendências, uma luta de classes na filosofia, ou ainda, para retomar a definição avançada por Louis Althusser, luta de classes na teoria. A luta em questão não é uma luta qualquer, um confronto abstrato, um debate de ideias ou o encontro fortuito de dois assaltantes que teriam crescido cada um por conta própria antes de descobrirem que seus interesses eram incompatíveis e decidiram lutar para resolver seus problemas. A luta das tendências na filosofia é uma contradição, no sentido preciso que o materialismo dialético dá a esse termo. Encontramos esse sentido indicado em um conhecido texto de Lênin: “O desdobramento do um e o conhecimento de suas partes contraditórias… é o fundamento (uma das “essências”, uma das particularidades ou marcas fundamentais, senão a fundamental) da dialética. A identidade dos contrários (sua “unidade”, dir-se-ia talvez mais corretamente,embora a distinção entre os termos identidade e unidade não seja aqui particularmente essencial. Em certo sentido, ambos são justos) é o reconhecimento (a descoberta) de tendências contraditórias mutuamente exclusivas, opostas em todos os fenômenos e processos da natureza (incluindo os do espírito [esprit] e da sociedade)” (3) . Mao Tsé-Tung resumiu essas indicações na palavra de ordem filosófica: “O um se divide em dois” (4) . De que serve essa definição de dialética no nosso conhecimento da história da filosofia?

A contradição do materialismo e do idealismo

Façamos imediatamente a pergunta essencial: na história da filosofia, que forma assume a unidade dos contrários? Obviamente não sua reconciliação final, nem sua fusão circunstancial em um desses compromissos equívocos, incessantemente denunciados por Engels e Lênin, e que, sob um disfarce emprestado do materialismo, sempre garantem, no fim das contas, o triunfo do idealismo. A pretensão de “superar” a oposição entre materialismo e idealismo, de traçar na filosofia uma terceira via, neutra, objetiva, “verdadeira”, a da paz filosófica universal, é uma constante na história do idealismo, que sempre busca apresentar uma nova face, para melhor confundir seus adversários, e também para dissimular sua natureza material. Um exemplo característico desse empreendimento é a filosofia crítica de Kant. Mas essa vontade declarada de seguir em frente, de tirar a filosofia de suas velhas crises [ornières], tem por conteúdo objetivo a denegação do papel determinante das contradições no desenvolvimento da filosofia e, portanto, corresponde sempre a uma regressão: eis a maneira oblíqua e distorcida com que a posição idealista refaz sua oposição ao materialismo. Esta é a grande lição do Materialismo e empiriocriticismo à qual não deveria ser necessário voltar: ao mesmo tempo que o materialismo, o idealismo recusa sua oposição ao materialismo [en même temps que le matérialisme, l’idéalisme refuse son opposition au matérialisme] (5).

Então, qual é a unidade do materialismo e do idealismo? É antes de tudo o fato de que as tendências filosóficas são inseparáveis ​ porque são os dois aspectos, os lados de uma mesma contradição. Segundo uma fórmula de Louis Althusser, para a dialética materialista há um “primado da contradição sobre os contrários”, e é justamente isso que constitui sua unidade: o que unifica os contrários não é nada mais do que sua contradição. A luta das classes na filosofia determina as posições antagônicas, atribui-lhes um lugar e condiciona sua relação. A unidade do materialismo e do idealismo nada mais é do que sua luta: assim, cada uma das tendências é implicada por e na tendência antagônica.

Parece então que o processo real da história da filosofia não pode ser confundido com os conflitos de idéias que aparecem em sua superfície, esses debates de opinião, esses dilemas tradicionais nas quais ela reconhece seus verdadeiros problemas: liberdade ou necessidade, verdade ou erro, indivíduo ou sociedade… Tomemos um exemplo: a oposição bem conhecida da razão ou da experiência. Esse conflito é uma contradição objetiva, reveladora do processo material da história da filosofia? As tendências filosóficas fundamentais, materialismo ou idealismo, aparecem ali pessoalmente? E quais são suas posições nesse debate?

Destaquemos, em primeiro lugar, que o dilema “experiência ou razão” se apresenta como um círculo de noções confusas, cuja única função é clara: eliminar a realidade material objetiva, mantendo-a fora do círculo. De fato, o materialismo não pode ser reconhecido em nenhuma das duas noções, que, cada uma a seu modo, pode ser usada para afirmar a primazia do pensamento sobre o real: bastante ingênuo é o materialista que confunde seus interesses com os do racionalismo ou do empirismo, ou que tenta alcançar uma síntese. Um materialista consequente sabe que só pode afirmar-se como racionalista ou empirista sob certas condições que marcam, numa conjuntura muito precisa, o que o separa precisamente dessas duas atitudes. Mas, se ele denuncia no problema que lhe é posto um falso problema, já que não pode admitir como sua nenhuma das soluções que este autoriza, pode na prática recusar-se a interessar-se por ele?

Mesmo que tenha que denunciar sem descanso o retorno da posição idealista na filosofia, e até no próprio materialismo, o materialista deve tomar cuidado para não colocar todos os “idealistas” no mesmo saco, confundindo-os pelo método da amálgama, o que seria, no fim das contas, jogar seu jogo; ao contrário, ele deve sempre explorar suas dissensões, as contradições que inevitavelmente minam a posição idealista por dentro. Como Lênin indica em seus Cadernos Filosóficos, quando dois idealismos se esbofeteiam, por exemplo Hegel e Kant, o materialismo sempre tem algo a ganhar com esta crise: e é por isso que é absolutamente essencial tomar partido de Hegel contra Kant, aliás, não porque ele seja menos idealista, portanto mais materialista, mas, ao contrário, porque ele vai ainda mais longe ao afirmar a posição idealista; observação surpreendente: é no fim do delírio idealista que se encontra o materialismo!

Ora, a crise do idealismo apodrecido assume, de maneira particularmente espetacular, a forma de um conflito entre racionalismo e irracionalismo: de um lado, a destruição da razão, para usar a expressão de Lukács; e de outro, a exaltação da razão. Não é difícil mostrar que esse novo debate também se estabelece e se desenvolve no terreno do idealismo, na medida em que pressupõe que a realidade material objetiva seja posta de lado. No entanto, não deixa indiferentes os materialistas, que devem intervir neste conflito, mesmo que ele seja representativo da problemática do idealismo, para nele desenvolverem a sua própria posição: uma operação cheia de riscos, claro, porque é grande a tentação de dar cair na chantagem (se é contra o irracionalismo, então é a favor do racionalismo, e vice-versa!), e deixar-se enredar, ser arrastado para posições idealistas e fazer o jogo do adversário, “adaptando” a concepção materialista, “revisando-a”, isto é, suprimindo-a. Mas a filosofia, que é uma luta, não é fácil nem inocente.

A contradição entre materialismo e idealismo assume, portanto, formas bastante paradoxais na história concreta da filosofia: na oposição entre racionalismo e empirismo, como na entre racionalismo e irracionalismo, o materialismo não pode ser reconhecido: falaremos então de contradições internas ao próprio idealismo. No entanto, um materialista não pode permanecer “externo” a essas contradições, que ele deve, ao contrário, saber identificar e usar. Em última análise, a ideia de contradições internas, próprias ao idealismo, é perigosa, insuficiente, porque sugere a existência de uma separação mecânica, de uma fronteira muito nítida entre o materialismo e o idealismo. Ora, essa concepção reduz a contradição das tendências filosóficas a uma simples oposição e ignora a primazia da contradição sobre os contrários.

Se o materialismo pode se apropriar das contradições da posição idealista, é porque já está envolvido nela de certa maneira: não há uma história separada do idealismo (ou do materialismo), onde a posição antagônica interviria de modo exterior, puramente estrangeira; deve-se dizer, ao contrário, que o materialismo está objetivamente engajado, pessoalmente ou não, na própria história do idealismo, de acordo com as condições materiais que determinam a relação real de forças entre as distâncias. Não admira, portanto, que esta intervenção possa, em certos casos, tornar-se consciente e sistemática, através de uma exploração concertada das dificuldades do idealismo que consegue voltá-lo contra si mesmo. De certa forma, e sob certas condições, podemos então dizer: há materialismo no idealismo, assim como também há idealismo no materialismo. O que significa nada mais do que isso: o idealismo e o materialismo não têm duas histórias independentes e distintas, mas pertencem a uma e à mesma história.

No entanto, o fato de que, para caracterizar as contradições filosóficas, não se possa separar a luta e a unidade das duas posições coloca um novo problema. A luta entre o materialismo e o idealismo, se ela é a condição e a chave de sua unidade, é inelutável e sem fim? A ideia de um desaparecimento total do idealismo e de um desenvolvimento autônomo do materialismo é absolutamente sem conteúdo?

Responder afirmativamente a esta pergunta é se deparar com uma objeção considerável: então o idealismo seria necessário ao materialismo porque determinaria sua própria existência! Mas essa reciprocidade de posições antagônicas na contradição é puramente aparente: o idealismo, como veremos, é de fato inseparável do materialismo; não poderia existir sem ele, porque nele encontra sua razão de ser; mas a recíproca não é verdadeira. Para melhor marcar esta dissimetria das duas posições, arrisco a fórmula: o materialismo é eterno, mas o idealismo não: o desaparecimento do idealismo é necessário, enquanto o do materialismo não é pensável, nem sobretudo, é o essencial, alcançável. Mas aqui novamente temos que concordar com o significado das palavras. A eternidade do materialismo é muito particular: não é a identidade de uma essência que se perpetua, mas a história e a transformação de um conteúdo sem fim. Por outro lado, a necessidade do desaparecimento do idealismo não é fatal: seu fim, o idealismo não o encontrará.não sozinho, nem sozinho; e nada na história passada da filosofia, que foi a da luta entre o materialismo e o idealismo, nos permite ainda compreender, e portanto prometer, do que a história de um materialismo se libertou da negação que lhe foi imposta pela tendência idealista. Deste ponto de vista, a luta de classes na filosofia é como a própria luta de classes: a existência de uma sociedade sem classes é uma necessidade atual da história, mas certamente não constitui um fim, e nada nos permite descrever sua formas, exceto na forma de uma previsão utópica.

Finalmente, devemos lembrar que a luta de classes na filosofia não é um princípio separado, autônomo, encerrado na autossuficiência de sua própria esfera: é isso que o termo luta de classes expressa bem aqui. A luta de classes na filosofia não é outra luta de classes, independente, metafórica da outra, mas desenvolve na filosofia os efeitos da luta de classes, pela produção de efeitos filosóficos, cujo principal é, aliás, a própria existência da filosofia. A filosofia, como a guerra, continua a política à sua maneira, por outros meios.

No entanto, é impossível parar na denúncia de compromissos, na determinação de posições filosóficas através da luta de classes. Com efeito, a unidade dos contrários assume uma forma muito particular na filosofia, porque a luta de classes ocorre ali em condições que não se assemelham a nenhuma outra. E se não chegarmos ao ponto de entender e analisar essas particularidades, permanecemos no nível preliminar das generalidades e metáforas. Na luta de classes econômica e política, os contrários são classes reais que controlam e dirigem indivíduos concretos e asseguram o desenvolvimento das forças produtivas em determinadas relações de produção. Na luta de classes em filosofia, os contrários são posições filosóficas, tendências, que se apresentam no discurso como idéias: esses contrários são tão reais quanto as próprias classes sociais; eles não existem em um céu de idéias que se sobrepõe e duplica a realidade material objetiva; eles fazem parte desta realidade material, que não é a primeira nem a última, onde ocupam o seu lugar. Esses contrários são algo que existe, e que produz seus efeitos no “todo complexo com dominante” que é uma formação social. É esta condição material que se representa dizendo que os efeitos filosóficos são efeitos determinados; toda determinação é material. Devemos, portanto, chegar a dizer: as posições filosóficas, mesmo que se apresentem sob a forma de idéias, como idéias, são realidades materiais; com a condição de não cair nesse materialismo ingênuo ou sorrateiramente substancialista, para o qual tudo é matéria da mesma maneira; então, ao invés de conhecer a realidade objetiva e reconhecê-la, confundimos suas formas reabsorvendo-as nessa entidade metafísica, que seria efetivamente um mito: a matéria. E a categoria da matéria desempenharia, então, o papel muito pouco materialista de um princípio de indeterminação.

Ora, as posições filosóficas são duplamente determinadas e, portanto, de certa forma, duplamente materiais. Elas são determinadas como efeitos (materiais) de condições materiais:luta pela produção, luta de classes, experimentação científica. Elas também são determinadas, como posições filosóficas, pela natureza própria desses efeitos. E é aqui que devemos trazer toda uma nova consideração que pertence apenas ao domínio filosófico e que o torna singular. Toda contradição põe entre seus contrários pelo menos uma diferença: ora, a diferença que separa os contrários na filosofia não se apresenta ali da mesma maneira que em outros lugares. Qual é a diferença entre materialismo e idealismo? É algo como a lacuna que separa um fato [fait] de seu disfarce [travestissement]. A tendência materialista assenta numa posição fundamental, infinitamente simples, comprovada na prática, que é a afirmação de que existe uma realidade material objetiva, independente do pensamento. É neste sentido que se pode falar de um fato materialista fundamental, de um materialismo prático, que é a prática elementar do materialismo da qual todos os homens têm a experiência elementar em sua existência natural e social: neste sentido, o próprio papa é, fundamentalmente, praticamente materialista, um materialista involuntário naturalmente (6) . Devemos lembrar que este “fato” fundamental não é nem uma “origem” nem um “fundamento”, mas uma determinação universal: do mesmo modo, escreve Engels: “a unidade real do mundo consiste na suamaterialidade”. (Anti-Dühring).

O idealismo nada mais é do que a dissimulação desse fato: sua negação, por meios muito diversos, dos quais os mais representativos são a pura e simples recusa, o deslocamento, o disfarce. É nesse sentido, e somente nesse sentido, que se pode dizer que a posição idealista, ao contrário da posição materialista, é sempre formal: porque se resume na forma pela qual encobre, esconde, um conteúdo que lhe é inconfessável. E é também neste sentido – não devemos ter medo de dizer as coisas na sua crueza – que o materialismo é verdadeiro e o idealismo falso: falso, não no sentido de um erro particular que uma demonstração conseguiria refutar ou apagar, mas no sentido de uma mentira que descarta um fato fundamental para substituí-lo por “teorias” infinitamente variadas, infinitamente complexas, uma manobra de diversão interminável e fraudulenta e, em seu próprio terreno, imparável. É isso que Lenin quer dizer quando escreve provocativamente: “O idealismo filosófico não passa de uma história de fantasmas encoberta e disfarçada” (7). Mas não basta denunciar a pretensão de reduzi-la: porque a mentira idealista, que aliás pode ser uma “bela mentira” e até belíssima mentira, não é – esse seria o seu último refúgio -, uma simples ilusão
de que bastaria apontar para dissipá-lo, como disse Spinoza, a propósito de uma história de fantasmas precisamente: “Não nego os fatos, mas as interpretações que deles se dão” (carta 54 a Hugo Boxel). O idealismo também é um fato, mas de natureza distinta do materialismo; ele é sempre determinado pelas suas condições materiais, apresenta-se como uma realidade que deve ser enfrentada no seu próprio terreno que não é o do verdadeiro e do falso; um fato não pode ser refutado, ou pelo menos não basta refutá-lo para que desapareça. Em filosofia não há revelação ou boa nova materialista que restaure o fato fundamental à sua verdade e que suprima as aparências idealistas. Mas, feita esta reserva, permanece o fato de que o idealismo nasce de uma determinação universal e simples, comum a todos os idealismos: ele se define antes de tudo pela negação do materialismo.

E é aqui que o princípio da unidade dos contrários toma um rumo muito estranho. Se o idealismo é “idêntico” ao materialismo, é porque não é outra coisa senão materialismo, mas materialismo negado. No fundo do idealismo subsiste a posição materialista sem a qual ele simplesmente não existiria. Pode-se até dizer: o idealismo é apenas outra forma de materialismo, uma expressão perversa e excessiva, invertida do fato materialista fundamental. É por isso que podemos repetir uma proposição já conhecida: o idealismo nunca passa sem um mínimo de materialismo, sua causa íntima, seu segredo, que sempre o rói um pouco em algum lugar. Mas cuidado! Não se trata de postular uma unidade original e imaginária de materialismo e idealismo, que constituiria sua genealogia essencial; falamos aqui apenas da determinação necessária do próprio idealismo pelo materialismo fundamental. Primazia do materialismo sobre o idealismo, um estranho paradoxo, visto que toda a história real da filosofia se desenvolveu até agora essencialmente contrariando esta determinação, esmagando o materialismo sob o domínio do idealismo, e muitas vezes não deixando, para se expressar, uma linguagem diferente daquela que lhe é concedida, temporariamente, por certas formas de idealismo. É nessa hora que é preciso lembrar de não confundir determinação com dominação/dominância [domination]; que o idealismo na luta filosófica tenha desempenhado na maioria das vezes um papel dominante não significa que ocupou nela a posição determinante; deste ponto de vista, pelo contrário, ele está condenado pela natureza, pelo segredo do seu nascimento, a papéis secundários, sendo apenas o reflexo deformado de uma realidade que deve absolutamente esconder.

Mas ainda não terminamos com nossas lamúrias [peines], porque resta algo essencial a ser dito, do qual depende todo o resto. Se nossa argumentação parasse aqui, ela ficaria presa na ilusão, na mentira, no idealismo, na forma bem precisa da ficção da inversão. A “teoria” é bem conhecida: se o idealismo é o materialismo invertido, basta inverter o idealismo (negação da negação!) para reencontrar o materialismo inicial. E o círculo se fecha, como na crítica feuerbachiana da religião, onde o homem que se perdeu em Deus se encontra fazendo de si o seu próprio Deus. O Homem da inversão é para si um Deus, ou seja, desta pequena viagem que momentaneamente o distanciou da sua essência, trouxe de volta algo que o mudou, ainda que mude em si mesmo; ele se tornou um Deus. Como bem entendeu Marx em 1845, a crítica feuerbachiana da religião é uma crítica religiosa. Sob o pretexto de dissipar uma ilusão, de suprimir uma forma ideológica, ela preserva sua característica essencial, simplesmente deslocando-a. Assim como Deus invertido é sempre um Deus, um Deus que se fez Homem (mas a ideologia religiosa, não tão estúpida, previu isso por muito tempo), um idealismo invertido é sempre idealismo, porque a inversão é o meio próprio do idealismo, pelo qual ele se constitui e se preserva. O materialismo obtido pela derrubada do idealismo é um falso materialismo, tanto mais falso quanto mais se apresenta como materialismo.

Portanto, deve-se dizer: o idealismo é idêntico ao materialismo, na medida em que o idealismo é materialismo, e é assim que se une a ele. Mas o materialismo não é de forma alguma idêntico ao idealismo, ao contrário, distingue-se essencialmente dele pelo lugar que ocupa na contradição filosófica, um lugar original no qual não pode ser substituído e que lhe assegura na contradição a posição determinante. A contradição filosófica, como todas as contradições reais, mas à sua maneira, é uma contradição desigual, que atribui aos contrários posições inconciliáveis ​ precisamente porque são distintas e não podem ser trocadas. Essa contradição não se desenvolve em um meio neutro e homogêneo, um céu de ideias, onde poderia haver reciprocidade de contrários, substituição de posições e inversão: ela é determinada primeiro por suas condições materiais, por sua natureza de luta de classes na filosofia, que impõe uma assimetria absoluta entre as tendências antagônicas. Assim, já disse, se o idealismo é o inverso do materialismo, o materialismo não é o inverso do idealismo; é o contrário direto, o que não é a mesma coisa.

Primeira consequência: não basta, para reduzir a posição idealista, interpretá-la em seu contrário. Essa operação, que se baseia no idealismo, na literalidade de seu discurso, permanece confinada nos limites da problemática idealista. Ser materialista não é assumir a visão oposta à do idealismo; o idealismo que se desenvolve apenas nas formas de suas próprias contradições, não diz o falso sobre tudo, e nunca o diz da mesma maneira, desigualdades internas, que devem ser levadas em conta para pegar o idealismo em sua própria armadilha. A luta contra o idealismo só pode ser travada de modo consistente a partir da posição materialista fundamental, corretamente explicitada e formulada. Ela tira todas as suas consequências do fato materialista comprovado na prática e desenvolve seus efeitos na filosofia. Essa operação deve ser acompanhada de uma crítica interna ao idealismo, mas não se limita a ela. É fora da posição idealista, e da própria filosofia, que ela buscará suas armas essenciais, aquelas que decidirão o resultado da luta. As armas do materialismo em sua luta filosófica são: a luta pela produção, a luta de classes, a experimentação científica. Dessas armas, o idealismo filosófico, através das diversas formas de sua exploração, procurou apropriar-se delas, mas naturalmente lhe escapam, ou se voltam contra ela. Por isso é certo que sua dominação, que começou sob certas condições históricas, terminará também sob outras condições.

Segunda consequência: garantir a dominância/dominação/domínio [domination] do materialismo não é voltar ao materialismo inicial, fundamental e quase espontâneo, o que chamei até agora de fato materialista. A história da filosofia é, até hoje, dominada pelo idealismo e o materialismo, não deve interpretá-la de forma recorrente, como uma história que deve ser reconduzida ao seu ponto de partida, do qual infelizmente se afastou. Porque o materialismo, assim como não é idêntico ao idealismo, não é idêntico a si mesmo e só pode persistir se transformando. É aqui que devemos fazer uma distinção essencial entre o fato materialista (que representa a posição materialista no que ela tem de fundamental) e o materialismo consequente. Em Materialismo e empiriocriticismo, Lênin usa muito frequentemente as expressões: “idealismo consequente”, “materialismo consequente”; e, nesta ocasião, a dissimetria do materialismo e do idealismo, e a impossibilidade de umainversão pura e simples de um pelo outro, aparecem de forma impressionante.

O que é de fato um idealismo consequente? Não é de forma alguma uma doutrina que tirou todas as consequências de seu princípio inicial, e isso de forma coerente, porque o idealismo não possui seu princípio em si mesmo, é apenas no limite um materialismo inconsequente; e se ele procura desenvolver os efeitos de “seu” princípio, ele inevitavelmente se envolve em suas contradições intermináveis, que ele deve esconder habilmente sob o edifício erudito e complicado de seus sistemas. Um idealismo consequente é um idealismo explícito que reconhece seu princípio inicial, formulando-o claramente: a existência primeira e independente do pensamento. Para Lênin, um idealismo consequente é, portanto, um idealismo franco, que admite seu verdadeiro conteúdo (a negação do materialismo) e que exclui qualquer compromisso com a posição adversa; ele se apresenta em sua “nudez idealista”.

O idealista consequente não é aquele que leva o princípio idealista fundamental às suas últimas consequências, mas, ao contrário, aquele que o traz de volta à sua posição elementar: é um idealista ingênuo. É por isso que Lênin escolheu Berkeley para representar esta forma extrema e rara de idealismo: “Raciocinava francamente, raciocinava simplistamente, o bispo Berkeley! No nosso tempo, estas mesmas ideias sobre a eliminação ‘económica’ da ‘matéria’ da filosofia são dissimuladas de uma forma muito mais artificiosa e embrulhada pelo emprego de uma terminologia ‘nova’, para que estas ideias sejam tomadas pelas pessoas ingênuas como filosofia ‘moderna’!” (8) . Se Berkeley é “consequente”, não é porque ele é mais coerente que os outros, [mas] porque seu sistema possui essa lógica interna que o faria em todos os pontos permanecer em concordância racional com seu princípio central. Sobre as dificuldades internas do sistema de Berkeley, ler-se-á com o maior interesse um estudo nada recomendado do ponto de vista materialista, o de M. Gueroult: Berkeley (Ed. Aubier), que sem saber confirma certos pontos da análise de Lênin. Como já vimos, tal coerência é impossível, por causa da natureza do idealismo que implica, em sua própria existência, a posição materialista.

O que, ao contrário, é um materialismo consequente? É, para Lênin, um materialismo que soube desenvolver sua posição inicial, de modo a unir o materialismo à dialética; é um materialismo que deixa de ser ingênuo, espontâneo e, portanto, exposto à ameaça do idealismo que sempre pode investi-lo, desviá-lo de seu verdadeiro sentido, emprestar-lhe (com juros [avec usure]) suas formas e suas razões, transformá-lo em seu contrário. É por isso que o nome verdadeiro da filosofia marxista, que é um materialismo consequente, é: materialismo dialético. Isso não quer dizer que esse materialismo exponha, a partir de seu princípio inicial, um sistema completo de consequências: a dialética, que é a arma por excelência do materialismo, exclui justamente tal apresentação sistemática, sob a forma de uma “doutrina”, ou de uma “ciência”; a dialética, em sua forma correta, interdita tal apresentação. O materialismo consequente, que é um efeito da luta de classes na filosofia, é um materialismo que se transformou porque soube assimilar as lições da dialética e incorporá-las. Um materialismo consequente (ou “consciente” como Lênin às vezes diz) nãoé um materialismo formalmente coerente.

Assegurar a dominação do materialismo não é, portanto, retornar ao materialismo prático, que constitui sua posição inicial, não é retornar ao fato materialista mascarado pela caricatura que lhe impõe o idealismo, mas é levar a luta para um novo terreno, onde as lições da experiência imediata parecem bastante fracas e insuficientes. Assim, o materialismo difere fundamentalmente do idealismo (e de forma alguma se limita à sua negação), porque usa conscientemente as armas que lhe são dadas pela luta pela produção, pela luta de classes e pela experimentação científica.

Por um estudo dialético da história da filosofia

As considerações gerais que acabamos de propor sobre a relação contraditória entre materialismo e idealismo nos permitem avançar efetivamente no estudo concreto da história da filosofia? É o que veremos, examinando o funcionamento das categorias do real e da experiência.

Essas categorias se apresentam, se nos apresentam como noções simples, óbvias, imediatas: aliás, pretendem ser as categorias do imediato. A menos que sejam, pelo artifício da crítica, remetidos de volta ao labirinto de seu “problema”, esse tapete chinês, para usar uma expressão de Lênin; mas então, o que é simples, imediato, é o fato do problema; e é o sistema de suas soluções que é mais frequentemente complexo, midiatizado e obscuro. Em todo caso, essas categorias pretendem dar, senão a apresentação, ao menos o índice de um fato, espelhado, pois o fato da experiência é o fato do fato, etc. Agora, darei imediatamente o resultado da análise materialista, a categoria da experiência não é nem (infinitamente) simples, nem (infinitamente) complexa, é dupla, porque associa e confunde, sistematicamente, dois aspectos, que ao contrário tem que ser dissociado, um aspecto idealista e um aspecto materialista.

Retomemos primeiro o estudo das filosofias idealistas, isto é, dos sistemas onde domina a posição idealista (sendo esta apresentação da filosofia sob a forma de sistema por excelência a forma de dominação do idealismo). Essas filosofias, por todas as razões que acabamos de ver, são combinações, misturas. Eles nunca apresentam a posição idealista pura, o que é quase impossível, mas variedades de idealismo, em que é associado de várias maneiras ao materialismo. Tomo aqui os exemplos analisados ​ por Lênin em Materialismo e Empiriocriticismo, que trazem de volta à sua tese central as doutrinas características do idealismo clássico:

Berkeley: Não há nada aquém da sensação e da experiência.
Hume: Não se pode saber se existe algo aquém da sensação e da experiência.
Kant: Existe algo aquém da sensação e da experiência (a “coisa-em-si”), mas essa
coisa-em-si é incognoscível.

Pela simples apresentação desses três casos, parece antes de tudo que eles representam, pela variedade de doutrinas, a mesma tendência idealista. Sua principal função é denunciar, excluir ou impedir o materialismo; neste ponto preciso e essencial, os três sistemas envolvem aliás o mesmo argumento, que, através de suas divergências, constitui o seu ponto comum: o materialismo, que pretende conhecer a existência de uma realidade em si, dada fora de toda a experiência, é apenas uma “metafísica”, e a “crença” na existência da matéria é indigna tanto do bom senso quanto da razão.

No entanto, o idealismo não aparece, em cada um desses três casos, da mesma forma, ou, eu diria, na mesma composição. Nesse curioso espectro de doutrinas idealistas, a posição idealista não se apresenta na mesma proporção, na mesma dosagem, em relação à posição materialista, da qual é, como mostramos, inseparável. Podemos dizer, por exemplo, que Hume é “menos” idealista que Berkeley, mas que é “mais” que Kant. Outras combinações também são possíveis, como apontado ironicamente, se assim podemos dizê-lo, por Lênin: “É preciso notar que a união, no fundo ecléctica, de Kant e Hume ou de Hume e Berkeley é possível, por assim dizer, em proporções diferentes, sublinhando de preferência ora um ora outro elemento da mistura” (9) .

Uma espantosa farmácia de ilusões, cujas drogas são sabiamente dosadas, porque os próprios filósofos são misturas ou, mais estritamente, conciliações [compromis], que tentam unir o materialismo ao idealismo, submetendo o primeiro ao segundo; união fatal para o idealismo, tanto porque não pode escapar dele (é a própria condição de existência de uma doutrina idealista), quanto porque o arruína por dentro (apresenta-o sob uma forma sempre impossível de sustentar; o sistema se desfaz ao mesmo tempo em que se faz). Mesmo Berkeley, que dá ao idealismo sua versão mais consistente, falha em purificar sua mistura a ponto de expulsar todos os vestígios de materialismo. Isto é o que Lenin sublinha em sua Introdução: “Berkeley não falava apenas com franqueza das tendências da sua filosofia, esforçava-se também por encobrir a sua nudez idealista, por apresentá-la livre de absurdos e aceitável para o ‘senso comum’” (10) . O materialismo mínimo que a exposição do idealismo exige aqui é o recurso ao senso comum, “a intenção de Berkeley de aparentar ser realista” (11) : o critério de verdade retido pelo idealista (o senso comum, a sensação) lhe escapa, até certo ponto, porque pode se voltar contra ele e denunciar o absurdo (Schwärmerei (12) , Schrulle) de sua posição fundamental. Dir-se-á que o idealismo, todo idealismo, traz em si a sua negação; mas não esqueceremos que ele se nutre dessa contradição, sem a qual ele próprio seria impossível.

As doutrinas idealistas apresentam, portanto, sempre, para quem as sabe ler, dois lados. Privilegiar um desses lados, por exemplo, reduzir um sistema idealista à tendência que o domina, e confundi-lo com todos os outros sistemas, como fazem os críticos da “razão ocidental”, é, em última análise, por fusão, jogar o jogo jogo do idealismo; é acreditar no seu triunfo, é mesmo reconduzir uma filosofia à tendência materialista que aí dorme, por exemplo é só às custas de mil acrobacias que, em última análise, são apenas ignorância, que se pode forjar a ficção de um Descartes ou de um Spinoza puramente materialistas. Ignora-se, aí, a realidade da luta filosófica e busca-se em um passado imaginário as formas de ummaterialismo consequente ainda a construir.

Deve-se, ao contrário, entender o seguinte: uma filosofia é sempre um efeito determinado da luta das tendências na filosofia, e essa luta tem suas condições materiais fora da filosofia; analisar um sistema é conhecê-lo enquanto efeito contraditório. É, em particular, tomá-lo contra suas pretensões de unidade e coerência, encontrar nele o contorno de uma linha divisória, a partir da qual se constrói a unidade particular do materialismo e do idealismo, que é o seu verdadeiro conteúdo.

Há, portanto, duas “leituras” possíveis de uma filosofia, que se interessam por princípio por um ou outro dos lados provisoriamente associados a essa filosofia. Há, literalmente, uma leitura de direita, que resume toda filosofia ao idealismo que ali impera. Há também uma leitura de esquerda, que não é o inverso d precedente. Ela não busca, a qualquer custo, ver na doutrina que estuda um materialismo completo, mas se interessa pelas contradições que constituem sua ordem real; ela descobre um fenômeno muito particular e muitas vezes imperceptível que é o retorno do materialismo no interior do próprio idealismo, ou mesmo – não tenhamos medo dessa palavra – o retorno do recalcado. Ler “da esquerda” ou “à esquerda”, isto é, como materialista, é reconhecer o conflito essencial que atravessa não só toda a história da filosofia, mas também cada um dos seus sistemas; é também separar os dois aspectos dessa contradição e interessar-se por princípio pelo aspecto que aí é dominado. Assim, conhecer uma filosofia é reconhecer nela, e medir, certa relação entre as tendências fundamentais: “Os machistas criticam Kant por ele ser demasiado materialista, e nós criticamo-lo por ele ser insuficientemente materialista. Os machistas criticam Kant da direita e nós da esquerda” (13)

Os Cadernos Filosóficos de 1914 aplicam, desta vez a Hegel, o mesmo método, que consiste antes de tudo numa discriminação, numa divisão. Desenvolve-se ali, de forma muitas vezes obscura e incompreendida (devemos lembrar que são notas de leitura, rascunhos, que evidentemente não podem ser usados ​ da mesma forma que um livro acabado, onde posições filosóficas são conscientemente desenvolvidas), um programa de leitura materialista de uma filosofia idealista. Assim, o materialismo também pode ocasionalmente se unir ao idealismo, não para chegar a um acordo com ele, mas para, de certa forma, encontrar se em suas contradições. Destaco nos Cadernos sobre a Lógica de Hegel estes dois “aforismos”:

1. “Plekhanov critica o kantismo (e o agnosticismo) mais de um ponto de vista vulgarmente materialista do que materialista dialético, na medida em que rejeita liminarmente as suas reflexões e não as retifica (como Hegel retificou Kant) aprofundando-as, generalizando-as ou alargando-as, mostrando a conexão e as transições de todos os conceitos.
2. No início do século XX, os marxistas criticaram os discípulos de Kant e de Hume mais à maneira de Feuerbach e de Büchner do que à de Hegel” (14)

Isso nos lembra que a crítica de Lenin a Bogdanov em 1908 nada tinha a ver com aquela feita, ao mesmo tempo, por Plekhanov, o grande mecânico do marxismo (cf. os textos reunidos no livro Le matérialisme militante). O verdadeiro problema não é nem salvar Kant e seu legado, nem condená-lo, mas apreciar a realidade objetiva de sua relação com o materialismo e usar esse conhecimento para desenvolver um materialismo consequente. A referência a Hegel não deve nos desviar; notem, porém, a estranheza dessa declaração, Hegel mais materialista que Feuerbach, que é colocado no mesmo saco que Büchner! Estamos muito longe de uma lenda edificante que afirma que Feuerbach, “derrubando” Hegel, produziu ou revelou o materialismo. A dialética que se aplica aqui à análise dos sistemas filosóficos é uma dialética materialista. Ela nos protege da tentação que nos impele a dar uma nova “interpretação” das filosofias do passado, mesmo sob a forma limitada de sua denúncia. A questão que Lênin coloca aqui não é a de interpretar as doutrinas, para conservá-las ou rejeitá-las, mas para transformá-las, valendo-se das contradições que as determinam materialmente. Não apenas para produzir uma nova filosofia, mas para dar um novo estatuto à própria filosofia. As “conexões” e as “transições” dos conceitos que aqui definem o objeto da leitura materialista obviamente nada têm a ver com as concatenações puramente racionais inventadas pelos críticos idealistas da filosofia. Trata-se de conceber as doutrinas filosóficas não como sistemas acabados, mas como processos, como elementos de um movimento de transformação (“transição”), que deve ser continuado ampliando-o ou dando-lhe uma nova direção.

Devemos, portanto, acrescentar ao que precede uma reserva essencial: essa divisão, essa discriminação dos dois aspectos que uma determinada doutrina filosófica ocasionalmente reúne, mas que não apenas justapõe, não é uma operação fácil e automática, como se fosse uma simples separação. Se a filosofia, segundo a definição de Althusser, procede essencialmente traçando linhas de demarcação, esse traçado não deve ser entendido como uma operação mecânica, que teria a simples função de “reconhecer” uma fronteira, a linha bem nítida que separa duas regiões absolutamente exteriores uma à outra, e cada uma existindo dentro de seus próprios limites. Isso seria transportar para a análise da filosofia, sob o pretexto de “politizá-la”, uma concepção liquidatária [liquidatrice]. A luta de classes, do ponto de vista materialista, não é um confronto entre classes independentes, existentes antes de se encontrarem; nem há na filosofia o idealismo, a “filosofia burguesa”, de um lado, e o materialismo, a “a filosofia do proletariado”, de outro. Por que a concepção dialética de contradição não deveria se aplicar também à filosofia? E por que, diga-se de passagem, ela não deveria se aplicar à própria dialética?

O que é, portanto, uma “leitura de esquerda”? Não é apenas uma leitura que divide, que separa e que retém um elemento materialista, mas uma leitura que não se contenta em recolher [prélever] esse elemento, em mantê-lo como está. Com efeito, não vemos como um elemento materialista dominado por seu contexto idealista poderia, pelas simples virtudes de sua extração, de seu isolamento, tornar-se um elemento dominante; tal como se constitui, é tomado materialmente, pelo seu próprio discurso, pelo seu conteúdo determinado, na contradição que o opõe ao outro elemento, o idealista, e dele não pode simplesmente ser separado. Estou abordando aqui, como deve ter ficado claro, o famoso problema do “nó racional”. Que há, sobretudo em Hegel, um elemento materialista, ou elementos do materialismo, e que esses elementos são a chave de sua racionalidade, do ponto de vista materialista, não há dúvida; mas que esse elemento, pelo simples milagre de sua extração, começa a se impor, a falar em seu próprio nome, a contar o segredo materialista que até agora estava guardado pelo constrangimento que o produziu e que o habita, é simplesmente impossível. Leitura materialista, leitura de esquerda, isso significa também, e antes de tudo, uma leitura dialética, não uma leitura que conserva, mas uma leitura que transforma; não uma leitura que reconhece e retém um fato esquecido ou oculto, mas uma leitura que produz teses novas, impossíveis, impensáveis ​ antes de serem formuladas explicitamente. Também, para dizer a verdade, o materialismo de Hegel não se encontra em Hegel, como se fosse um simples depósito, uma herança que bastaria recolher. As teses materialistas que Marx, Engels e Lênin souberam ler em Hegel não estavam ali literalmente: elas resultam do trabalho de elaboração, não de metamorfose instantânea, mas de produção laboriosa de um saber novo que Marx, Lênin e Engels submeteram à dialética hegeliana.

Voltemos então à apresentação da filosofia como acordo/conciliação [compromis]. O exemplo mais característico dado por Lênin é o de Kant: “O traço fundamental da filosofia de Kant é a conciliação do materialismo com o idealismo, o compromisso entre um e outro, a combinação num só sistema de correntes filosóficas heterogêneas e opostas. Quando Kant admite que às nossas representações corresponde algo fora de nós, uma certa coisa em si – então Kant é materialista. Quando declara esta coisa em si incognoscível, transcendente, pertencente ao além, Kant fala como idealista. Reconhecendo a experiência, as sensações, como fonte única dos nossos conhecimentos, Kant orienta a sua filosofia pela linha do sensualismo, e, através do sensualismo, em certas condições, também do materialismo. Reconhecendo o apriorismo do espaço, do tempo, da causalidade, etc, Kant orienta a suafilosofia para o lado do idealismo” (15) .

De início, deve-se apontar para começar um erro um tanto literal. Kant de forma alguma faz da experiência a única fonte de conhecimento. Mas se prestarmos atenção, veremos que Lênin está dizendo duas coisas aqui: em primeiro lugar, que o sistema de Kant é contraditório porque associa dois elementos irreconciliáveis ​ (mas é preciso repetir: sua contradição prevalece sobre o contrário, os elementos não existem antes de sua oposição, e é por isso que eles não podem ser separados mecanicamente). Em segundo lugar, e é aí que as coisas ficam empolgantes, essa contradição não se encontra somente no nível do conjunto do sistema, mas também rege a constituição de cada uma de suas partes e encontra-se até mesmo em suas categorias. A doutrina da experiência representa o materialismo na filosofia de Kant, mas o representa “em certas condições”, e essa precisão é fundamental aqui. A própria categoria de experiência em Kant possui dois lados. É dos dois lados e ao mesmo tempo, do lado do materialismo e do lado do idealismo, que ela enxerga. Ela não pode, portanto, ser simplesmente retirada [prélevé], extraída do sistema e considerada em si mesma, separada da outra categoria fundamental que se opõe a ela, a da coisa em si que não pode ser conhecida [inconaissable], tomada nela mesma, ela é também o resultado de uma conciliação ou acordo [compromis], ela é uma mistura do idealismo e do materialismo. Nesse sentido, a filosofia de Kant é de fato um “sistema”: todas as suas partes estão organicamente ligadas e sujeitas à mesma lei, mas essa lei não é uma lei racional ou lógica de coerência, é o princípio dialético da contradição que se aplica ao sistema como um todo, ou seja, também a cada um de seus elementos. É por isso que a “teoria” da experiência não é nem mais nem menos materialista em Kant do que a da coisa-em-si. Ou, pelo menos, não da mesma forma.

Para me fazer entender, vou tentar, ou começar, a análise de um exemplo ao mesmo tempo elementar e ilustre, um exemplo bastante complexo, como se poderá ver, se tentarmos captar todas as implicações. É uma frase, citada e comentada mil vezes, que abre a Crítica da Razão Pura: “[…] todo o conhecimento se inicia com a experiência, [mas] isso não prova que todo ele derive da experiência” (16) . Armados dos princípios de explicação que acabo de indicar, encontraremos nesta frase um terreno de escolhas para fazê-los funcionar. Mas, como veremos de imediato, isso não acontecerá sem dificuldades nem surpresas.

À primeira vista, a divisão entre os dois aspectos, entre as duas tendências, se dá na composição gramatical da frase: “A ciência começa com a experiência”: lado materialista. “A ciência não deriva inteiramente da experiência”: o lado idealista. E, entre os dois, esta palavrinha essencial, sobre a qual se constrói o “sistema”: “mas” (17), sinal legível da oposição de dois aspectos. Comecemos por comentar esta primeira leitura, desenvolvendo-a um pouco.

“A ciência começa com a experiência”: esta fórmula, tomada em si mesma, pode de fato ser compreendida em um sentido materialista. Ao apresentar a ciência como inseparável da experiência, ela reconhece de forma muito particular o fato materialista fundamental: todo pensamento é inseparável da realidade material dada independentemente do pensamento e que se apresenta a ele na experiência. A fórmula o reconhece, não de bom grado, mas precisamente como um fato, impossível de suprimir e que deve ser admitido de uma forma ou de outra. Pensemos na irritação de Descartes ao ler Galileu e descobrir que este havia descoberto e publicado antes dele elementos essenciais do novo conhecimento da natureza sem ter o direito, já que ele é incapaz de deduzi-los dos verdadeiros princípios dados a priori pela metafísica e de reuni-los em uma ordem necessária de razões (Descartes: carta a Mersenne, 11 de outubro de 1638: “sem ter considerado as primeiras causas da natureza, ele apenas buscou as razões de alguns efeitos particulares e, assim, construiu sem fundamento”). Irritação que transforma em lamentação no primeiro discurso da Dióptrica (18) , quando Descartes descobre que o progresso da ciência no campo da astronomia dependia não de uma dedução correta dos efeitos de suas causas, como exigia porém o princípio do mecanicismo [mécanisme], mas do acaso que colocou as “maravilhosas lunetas” nas mãos dos ignorantes: “Assim, levando nossa visão muito mais longe do que poderia normalmente ir a imaginação de nossos pais, essas lunetas parecem ter aberto caminho para que nós alcancemos um conhecimento da natureza muito maior e mais perfeito do que eles possuíram. Mas, para vergonha de nossas ciências, essa invenção, tão útil e tão admirável, apenas foi primeiramente alcançada pela experiência e ao acaso” (19)

O conhecimento científico do real começa com os fatos. Trata-se de um escândalo que deve ser reconhecido para poder reduzi-lo, submeter o fato ao direito, que é aqui a forma de afirmar a primazia do pensamento sobre o real. Notemos que o direito, categoria filosófica essencial do sistema kantiano, permanece submetido a um fato irredutível: o fato da própria Razão (ein Faktum des Vernunft), o fato de que há uma razão, que ela agencia um certo número de faculdades (doze: este é o número do a priori) em uma (ou umas) relação(ões) determinada(s), etc, todas as coisas que não podem ser deduzidas a priori, mas que se referem à ordem de um decreto ou de uma constatação: é assim!

Do mesmo modo, a frase, “a ciência começa com a experiência”, deve ser bem entendida, apenas como um reconhecimento prévio, que será imediatamente objeto de uma limitação, até mesmo de uma refutação: a ciência apenas começa com a experiência, e esta apenas representa a realidade material de forma indireta. O elemento materialista, se existe, é aqui apenas um ponto de partida, um trampolim, um pretexto, para a formulação de outra tese, que, aparentemente, figura do lado do idealismo: a relação necessária da ciência com a experiência é negada ao mesmo tempo em que é afirmada; e por pouco que se conheça a doutrina como um todo, sabe-se que é essa negação (20) que é o principal. A relação positiva do conhecimento com a experiência, pensada através da categoria de “começo”, é apenas um argumento para a proposição seguinte, que a contorna. “A ciência não deriva inteiramente da experiência”: é dizer, portanto, que ela deriva de algo diferente da experiência, de algo que não é dado na (ou com) experiência, mas que ela deriva de algo. Ela deriva da razão: um poder de direito, um complexo de faculdades distintas que, pela ordem legítima em que dispõe seus próprios elementos, conhece a experiência, apropriando se dela, submetendo-a às suas próprias leis e, no limite, produzindo-a.

Advém daí uma definição surpreendente da ciência como conhecimento da experiência, que mais uma vez combina dois aspectos. Levando em consideração o fato histórico da mecânica newtoniana, ela indica novamente a relação necessária entre ciência e experiência, mas apenas para “invertê-la” imediatamente, subordinando a experiência à razão, pela distinção entre a coisa em si e o fenômeno; então passamos da limitação do conhecimento por direito à limitação conhecimento por si mesmo; se a ciência deriva, total ou parcialmente, da razão, não é tudo o que deriva da razão. Compreendemos então como, no sistema de Kant, o idealismo domina o materialismo, ao mesmo tempo em que pretende aceitar seu fato, subordina-o ao direito da razão, reservando, pelo trabalho das categorias de começo e origem, posições diferentes e desiguais à ciência e experiência.

No entanto, olhando mais de perto, as coisas não são tão simples. Vamos retomar. “A ciência não deriva inteiramente da experiência”: pensando bem, esta fórmula apresenta em si mesma um aspecto materialista, se nos recusarmos a confundir materialismo e empirismo. Kant mesmo, sem saber, dá ao materialista um argumento importantíssimo para lutar contra a ilusão empirista: ilusão metafísica, pois pressupõe que a ciência já está dada, toda construída mas encerrada no real. Basta, portanto, dar-lhe um meio para se expressar, ou seja, uma linguagem para libertá-la, para que apareça. A ciência não está “na” experiência, isso também é um fato; caso contrário, o real há muito teria sido forçado a entregar a verdade que deveria conter. Mas, como veremos, esse argumento também se volta contra o argumento de Kant. A categoria da experiência em Kant, portanto, não representa sozinha o materialismo, assim como a categoria da razão não representa o idealismo. A oposição dessas duas noções não permite traçar uma linha clara de demarcação entre materialismo e idealismo. Isso porque a contradição fundamental passa, na frase de Kant, por outra distinção categórica que se sobrepõe à primeira, que a sobrecarrega e lhe dá todo o seu peso: trata-se da distinção entre começo e origem. “A ciência não deriva inteiramente da experiência”, é verdade, é especialmente verdade para um materialista, sob certas condições. Com efeito, e este é o seu sentido primário, a fórmula de Kant significa mais “a ciência deriva de algo” do que “a ciência deriva da razão, e não da experiência”; e a questão filosófica por excelência, a questão de direito, questão crítica, é aquela que procura as fontes, as origens (de conhecimento, mas também de outra coisa). O lado idealista da filosofia kantiana reside, portanto, em primeiro lugar (e a análise desta frase elementar mostra-o claramente), na forma de colocar a questão (do conhecimento, mas também de outra coisa) em termos de origem. A ciência não deriva da experiência, mas poderia derivar dela, na medida em que se admita desde o início (e sem demonstração) que ela deriva de alguma coisa; isso é o que os
materialistas pensam, ou assim pensa Kant, e se essa interpretação é sincera ou meramente uma farsa é de interesse muito secundário. Ora, o materialismo consequente não busca outra origem para o conhecimento que não a razão, que lhe seria dada, por exemplo, pela experiência, porque não existe tal questão de origem: ao contrário, ele a elimina. A realidade material objetiva, independente do pensamento, não pode ser pensada, no quadro de um materialismo consequente, como uma origem (ou um princípio, ou um fundamento), mas como um conjunto de condições materiais determinadas, sem começo ou fim determináveis, onde os efeitos existem em suas causas, sem a necessidade de atribuir-lhes um princípio explicativo separado, isto é, uma justificação. De um ponto de vista materialista, a ideia deque o conhecimento (ou qualquer outra coisa) pode ser derivado do que quer que seja não faz sentido algum. Nesse sentido, a afirmação de que a ciência só começa com a experiência, masnão dela deriva, é perfeitamente materialista, mas obviamente não é esse o sentido que essa  afirmação assume na filosofia de Kant. Isso deve nos confirmar a ideia de que não basta pegar elementos materialistas, depositados aqui e ali em doutrinas idealistas; é necessário, submeter esses elementos a todo um processo de transformação, que os arranca de sua problemática primária, os faz funcionar em um contexto diferente e arranca literalmente deles uma nova verdade.

Para encerrar rapidamente esta análise, sem obviamente pretender encerrá-la, deve-se notar que o jogo foi manipulado desde o início, o objeto sobre o qual o raciocínio de Kant trabalha é o par “A Ciência/A Experiência”, isto é, essa transposição interessada das ciências, do processo de desenvolvimento do conhecimento e do conjunto de determinações que constituem a realidade objetiva, em categorias filosóficas gerais, pelas quais já está pressuposto o resultado de uma argumentação idealista. Uma simples inspeção desses termos, característicos da exploração das ciências pelo idealismo filosófico, pode-se antecipar sobre essa consequência essencial, os elementos materialistas, incontestavelmente presentes na filosofia de Kant, são, tal como são, inseparáveis ​ de seu contexto idealista. Acreditar que o materialismo será produzido “derrubando o idealismo”, por exemplo, dizendo: a ciência não só começa com a experiência, ela também deriva dela, e tudo deriva dela, é cair na pior das ilusões é substituir o idealismo da razão pelo idealismo da experiência. É deixar-se cair na armadilha de uma problemática idealista, que opõe fraudulentamente origens e começos, e obriga a pensar a origem como outra coisa que não um começo; um fundamento, isto é, um princípio separado, dado independentemente da realidade objetiva, ou misturado com ela, mas levando-o junto com seu próprio movimento, isto é, em última instância, uma ideia.

Se não é fácil isolar a categoria da experiência, é porque ela é marcada em sua própria letra pela contradição fundamental das tendências filosóficas. Apresenta um duplo aspecto: é mesmo sua característica essencial em toda a história da filosofia dominada pelo idealismo. “A ‘experiência’ abarca tanto a linha materialista como a linha idealista em filosofia, consagrando a sua confusão” (21) . “É sabido pela história da filosofia que a interpretação do conceito de ‘experiência’ dividiu os materialistas os idealistas clássicos” (22) .

Há, portanto, dois usos de uma mesma noção que devem ser desembaraçados. Qual é o uso materialista da categoria de experiência? É aquele que começa por relacioná-la com seu conteúdo material e objetivo: a experiência de algo, que a determina como tal experiência. O uso idealista da mesma noção, ao contrário, insiste nas condições não-materiais da experiência; experiência de um sujeito ou de um pensamento, condições abstratas que traçam os limites da experiência em geral. Em virtude desse duplo uso que pode comportar, a categoria de experiência é o instrumento por excelência dos jogos de palavras, dos disfarces idealistas: “Não se pode senão lamentar as pessoas que acreditaram em Avenarius e cia quando diziam que, por meio da palavrinha ‘experiência’ se pode superar a distinção ‘antiquada’ entre materialismo e idealismo” (23) . “Assim, sob o termo ‘experiência’ pode sem dúvida ocultar-se tanto a linha materialista como a linha idealista em filosofia, e igualmente a humista e a kantiana, mas nem a definição da experiência como objecto de estudo, nem a sua definição como meio de conhecimento resolvem alguma coisa neste aspecto” (24) . Portanto Lênin não se alinha nem com os falsos amigos da experiência, nem com aqueles que pretendem condená-la: ele se contenta em analisar a contradição que habita esta categoria, e em explorar esta contradição para desenvolver o ponto de vista materialista sobre a questão.

Deve-se acrescentar que esta análise da categoria da experiência segue, em Lênin, a da categoria de sensação, e que retoma suas linhas principais: “Avenarius e Mach reconhecem que as sensações são a fonte dos nossos conhecimentos. Colocam-se, consequentemente, no ponto de vista do empirismo (todo o conhecimento deriva da experiência) ou do sensualismo (todo o conhecimento deriva das sensa­ções). Mas este ponto de vista conduz à diferença entre as correntes filosóficas fundamentais, idealismo e materialismo, e não elimina a sua diferença, qualquer que seja a ‘nova’ roupagem verbal (‘elementos’) com que  o revistam. Tanto o solipsista , isto é, o idealista subjetivo, como o materialista, podem reconhecer as sensações como fonte dos nossos conhecimentos. Tanto Berkeley como Diderot partiram de Locke. A primeira premissa da teoria do conhecimento consiste indubitavelmente em que as sensações são a única fonte dos nossos conhecimentos. Tendo reconhecido esta primeira premissa, Mach embrulha a segunda premissa importante: a da realidade objetiva, dada ao homem nas suas sensações, ou que constitui a fonte das sensações humanas. Partindo das sensações, pode seguir-se a linha do subjetivismo, que conduz ao solipsismo (‘Os corpos são complexos ou combinações de sensações’) e pode seguir-se a linha do objetivismo, que conduz ao materialismo (as sensações são imagens dos corpos, do mundo exterior) . Para o primeiro ponto de vista – o do agnosticismo ou, indo um
pouco mais longe, o do idealismo subjectivo – não pode haver verdade objectiva” (25) .

Aqueles que consideram, ou pretendem considerar, Lênin como um sensualista obviamente ignoram esta página; para mais desenvolvimentos sobre esta questão, ver as análises de Dominique Lecourt em “Une crise et son enjeu”. No entanto, para ser completo, neste longo trecho de Lênin que fiz questão de citar integralmente, acrescentarei uma simples observação. Embora o pensamento fundamental seja absolutamente claro, ainda deixa uma ambiguidade em seu vocabulário ao reter a noção de “fonte”. Essa noção também aponta para ambos os lados; para um idealista significa princípio, origem ou fundamento; para um materialista significa determinação material e objetiva.

Indiquemos, para finalizar, algumas conclusões provisórias:
1. A luta das tendências na filosofia é universal: ela determina em todos os seus aspectos a existência de todos os sistemas filosóficos.
2. Essa contradição é uma contradição material, que se realiza sempre em contradições determinadas: assim, ela dá conta de efeitos filosóficos singulares, inseparáveis ​ da conjuntura, teórica e prática, em que se produzem.
3. Esta contradição é também uma contradição dialética: os elementos que ela dissocia e que ela associa não podem ser imediatamente isolados e retomados “tal e qual”, independentemente do contexto antagônico em que estão imersos; o que é significativo é a relação desses elementos, ou seja, a unidade contraditória que lhes atribui, concretamente, sua posição.
4. Finalmente, esta contradição é ela mesma o efeito na filosofia de uma luta entre classes específicas: daí a necessidade, para estudar o processo da filosofia em sua história, de uma tomada de partido/posição [prise de parti]: é apenas deste ponto de vista que suas contradições reais podem ser identificadas e desembaraçadas.

Notas:

(1) Tradução e notas: Fábio Ramos Barbosa Filho (IL/UFRGS).

(2) Passagem presente no texto Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Deixo aqui a passagem completa: “Outra coisa que tampouco se deve esquecer é que, se a escola hegeliana tinha sido desfeita, a filosofia de Hegel não tinha sido ainda criticamente superada. Strauss tinha tomado um aspecto dela, Bauer outro, voltando-os um contra o outro. Feuerbach quebrou o sistema e o pôs simplesmente de lado. Para liquidar uma filosofia não basta, porém, proclamar pura e simplesmente que ela é falsa. E não se podia eliminar uma obra tão gigantesca como a filosofia de Hegel, que exercera tão vasta influência sobre o desenvolvimento espiritual da Nação, pelo simples fato de fazer caso omisso dela. Era necessário ‘superá-la’, de acordo com seus próprios postulados – isto é: destruindo criticamente sua forma mas conservando o novo conteúdo adquirido por ela. Veremos adiante como isso se fez” (grifo meu) [NT]

(3) Optei por traduzir a citação que consta no texto de Macherey (Oeuvres, t. 15, p. 435). Há uma tradução brasileira do texto citado (Sobre a questão da dialética) no livro Cadernos filosóficos publicado pela editora Boitempo. [NT]

(4) É preciso fazer menção a dois textos de Mao Tsé-Tung: “Sobre a prática: sobre a relação entre conhecimento e prática, entre saber e fazer” e “Sobre a contradição”. Althusser (em Contradição e sobredeterminação) e Badiou (em Théorie de la contradiction), farão menções elogiosas a ambos os textos, considerando-os elementares na construção de uma teoria materialista da contradição e da dialética. [NT]

(5) Ou seja, o idealismo recusa, ao mesmo tempo, o materialismo e sua oposição ao materialismo. [NT]

(6) Como Lênin escreveu muito claramente: “O ‘realismo ingênuo’ de todo homem são, que não vem de um manicômio ou da escola de filósofos idealistas, consiste em admitir a existência das coisas, do meio ambiente, do mundo independentemente de nossa sensação, de nossa consciência, de nosso eu e do homem em geral. A própria experiência (no sentido humano da palavra, e não no sentido machista da palavra), que criou em nós a firme convicção de que existem, independentemente de nós, outros homens e não meros complexos de minhas sensações de alta , baixo, amarelo, sólido, etc., é essa experiência que cria nossa convicção de que as coisas, o mundo, o ambiente, existem independentemente de nós. Nossas sensações, nossa consciência, são apenas a imagem do mundo externo, e concebemos que a representação não pode existir sem o que ela representa, enquanto a coisa representada pode existir independentemente do que a representa. Convicção ‘ingênua’ da humanidade, o materialismo conscientemente a coloca na base de sua teoria do conhecimento” (Materialismo e empiriocriticismo, p. 52) Este texto de Lênin merece uma leitura atenta: ele diz que o materialismo filosófico é baseado em evidências, cujas consequências ele desenvolve “conscientemente”; ele não diz que o materialismo filosófico coincide com essa evidência, que em si tem o caráter espontâneo, “ingênuo”, inconsciente de um fato.

(7) Materialismo e Empiriocriticismo (de agora em diante, ME), p. 138. (Neste texto, todas as citações do Materialismo e Empiriocriticismo foram retiradas da edição portuguesa, publicada pela Avante em 1982) [NE]

(8) ME, p. 22.

(9) ME, p. 156-157

(10) ME, p. 22

(11) ME, p. 22

(12) https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/ek/article/view/8690/5602 [NE]

(13) ME, p. 150-151

(14) Lênin, V. I. Cadernos sobre a dialética de Hegel. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. (p.157)

(15) ME, p. 149-150

(16) Kant, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. (p. 62). Acrescentei o “[mas]”, ausente na tradução portuguesa, por razões que ficarão evidentes no próximo parágrafo. [NT]

(17) Retomo a passagem da Crítica da Razão Pura acrescida do “mas” para que o comentário de Macherey adquira sentido teórico: “[…] todo o conhecimento se inicia com a experiência, [mas] isso não prova que todo ele derive da experiência” [NT]

(18) Disponível em https://www.revistas.usp.br/ss/article/view/11212/12980 [NT]

(19) https://www.revistas.usp.br/ss/article/view/11212/12980 [NT]

(20) Macherey se refere aqui à passagem “La science ne fait que commencer avec l’expérience” (que optei traduzir por “a ciência apenas começa com a experiência”). Trata-se, portanto, da negação “ne fait que”, típica da sintaxe francesa e que não possui forma correspondente em português. [NT]

(21) ME, p. 112

(22) ME, p. 113

(23) ME, p. 113

(24) ME, p. 116

(25) ME, p. 95

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2 comentários em “A história da filosofia considerada como uma luta de tendências”

  1. “Este texto de Lênin merece uma leitura atenta: ele diz que o materialismo filosófico é baseado em evidências, cujas consequências ele desenvolve “conscientemente”; ele não diz que o materialismo filosófico coincide com essa evidência, que em si tem o caráter espontâneo, “ingênuo”, inconsciente de um fato.” _ Bravo! a essa Tradução em excelência, intocável e jamais esférica. Obrigada, tradutor por permitir_nos o mergulho nessa crítica filosófica tridimenssional.

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