Neoliberalismo e políticas de cultura entre 1985 e 2022

Por Victor Plasa (1)

Introdução: Esse trabalho é um breve balanço das políticas culturais no Brasil a partir de 1985. Discutimos os momentos de fluxo e refluxo do neoliberalismo, levantando o problema da hegemonia neoliberal no formato e na profundidade das políticas. Hegemonia que teria moldado completamente o funcionamento da relação entre Estado e sociedade civil, cujas leis se mantiveram conectadas ao viés econômico, exceto pelo Programa Cultura Viva.

Políticas culturais e neoliberalismo

A crise política e econômica enfrentada pelo setor cultural vai além da questão ideológica do governo Bolsonaro, ela faz parte do projeto neoliberal que retomou o controle total da máquina estatal após 2016. Seu objetivo é transferir recursos, possibilidades de atuação e controle sobre investimentos e lucros à iniciativa privada, além de diminuir a regulação de mercados, impostos e normas. Para entender a situação atual da cultura, é preciso analisar sua trajetória a partir do processo de transição da ditadura empresarial-militar para a democracia burguesa. Busca-se identificar o papel atribuído ao Estado nas discussões acerca de sua inserção no setor cultural e o conceito de cultura adotado pelos governos neoliberais entre 1985 e 2002.

Esse recorte temporal é fruto do processo de ascensão do capital monopolista ocorrido ao longo do regime militar e de aumento do espaço para as disputas no campo cultural. Durante a ditadura, o Estado construiu as políticas públicas de cultura sem participação popular, o que contribuiu para o entendimento da presença estatal na cultura como algo necessariamente ruim, controlador e autoritário. No processo de construção do Ministério da Cultura, levantaram-se duas posições contrárias, uma ligada diretamente a questões sociais e de esquerda, outra ligada aos interesses do capital.

Para os representantes do capital — alguns deles organizados em torno do PMDB — era importante construir o MinC para garantir os direitos culturais e o sustento dos artistas. Parte dos atores políticos ligados à direita colocavam esta questão como algo complexo demais para ser definido sem um amplo processo de reflexão e debate. Era importante, ainda, que a criação do mecanismo garantisse a ampliação da liberdade de expressão sem burocratizar o setor.

Os grupos opostos à criação eram formados majoritariamente por intelectuais e trabalhadores da cultura ligados a visões políticas de esquerda, eles argumentavam que a criação de um ministério seria uma nova forma de controle e de limitação da autonomia que o setor cultural precisava e estava lutando para conquistar. A cultura era vista como algo que não se deve administrar e a burocratização foi entendida como uma trava para ações culturais, além de gerar novos impostos. Era mais vantajoso ter uma Secretaria da Cultura forte e com muitos recursos, ligada ao Ministério da Educação, do que um ministério independente, com pouca verba, mas com cargos que poderiam ser usados pelos interesses dos segmentos burgueses.

Com a posse de José Sarney, o Ministério da Cultura foi criado sob a justificativa de honrar os compromissos assumidos por ele e por Tancredo Neves, além de criar ferramentas para a máquina pública acompanhar o crescimento e as novas questões econômicas, sociais e culturais na mudança de regime.

O decreto, contudo, não definia com precisão o âmbito de atuação do ministério, dificultando sua atuação já afetada pela falta de recursos e de pessoal. Por não ter sido fruto de uma construção entre apoiadores e opositores da ideia, o MinC continuou sendo alvo de críticas, visto que surgiu em um contexto de transição de regime, em que não havia lugar definido para tal estrutura.

Apesar da fragilidade do Ministério da Cultura, sua criação coloca em evidência o setor, cujos debates passaram a ser cada vez mais frequentes entre a nova esquerda encabeçada pelo PT. No campo da sociedade civil, dos trabalhadores da cultura e da política não-institucional, buscava-se construir bases sólidas e democráticas para o setor.

Já no Estado, os elementos burgueses definiram quais segmentos se encaixariam no novo Ministério, como foi o caso do lobby dos monopólios de comunicação, que impediu que rádios e televisões educativas ficassem sob jurisdição do Ministério. Segundo Isaura Botelho (2000), a criação prematura do MinC, baseada em premissas alheias às efetivas necessidades naquele momento, invés de reforçar o prestígio e a consistência da área, foi, ao contrário, fator de desarticulação e desmoralização. O principal motivo do fracasso foi, o papel preponderante do jogo da política miúda que descaracterizou conteúdos, reduzindo o debate a uma disputa interna (p. 265).

Durante o governo de Fernando Collor, o Ministério da Cultura foi extinto haja vista sua situação insustentável, seus funcionários foram colocados em disponibilidade e diversos programas suspensos e a lei Sarney de incentivo fiscal às produções econômicas foi revogada. O governo federal se absteve de investir em cultura durante toda a gestão Collor, deixando as responsabilidades nas mãos de estados e municípios. Apenas em 23 de dezembro de 1991, com a Lei n.º 8.313 — conhecida como Lei Rouanet —, que instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura, a relação do Estado com a cultura se modificou. Itamar Franco deu continuidade à retomada cultural com a recriação do MinC, incentivo à Lei Rouanet e nova legislação sobre o audiovisual.

No período final deste recorte, isto é, o governo FHC (1995–2003), a ideia de cultura como um bom negócio chegou a outro patamar. O modelo da relação entre Estado e cultura pautada pela perspectiva econômica que guiou a atuação do ministro da cultura Francisco Weffort — cuja gestão acompanhou os dois governos de Fernando Henrique — tem por principal fator a renúncia fiscal enquanto fator de incentivo ao investimento privado na cultura.

Outros aspectos da legislação, como o Fundo Nacional de Cultura tiveram menor importância nas ações culturais do período, visto que o Estado manteve a postura de não-intervenção característica da ascensão neoliberal, desta forma, propiciou o crescimento de iniciativas culturais. De um lado, a maioria dos investimentos através desse formato foi realizada por estatais como a Petrobrás em atividades culturais privadas; de outro, empresas privadas, como foi o caso de alguns bancos, aproveitaram a dedução para investir em suas próprias ações culturais, ou seja, a verba acaba nunca saindo do mesmo grupo empresarial, servindo como propaganda em vez de estimular a diversidade da produção e acabando por proporcionar apenas a redução de impostos.

Notemos que as políticas adotadas ao longo do período, desde a criação do Ministério da Cultura sem os debates devidos, tiveram dois elementos centrais: o primeiro foi o mínimo de intervenção estatal possível, evidenciado pela fragilidade estrutural e financeira do MinC, assim como pela prioridade atribuída ao fomento por meio da renúncia fiscal em detrimento de investimento público mediante fundos previstos nas leis n.º 7.505/86 e n.º8.313/91. O segundo elemento central foi o caráter majoritariamente econômico da cultura, aliado a uma noção de liberdade de expressão geral e rasa. Ocorreu em vista do fato de que apenas grandes empresas possuíam recursos para custear a produção de bens culturais, logo, o potencial econômico, propagandístico e reafirmador dos ideais neoliberais era o critério de factibilidade.

Com isso, fica evidente a importância da construção de políticas públicas com ampla participação popular e financiamento público, desta forma, será possível incentivar a cultura ligada aos trabalhadores, feita por eles e para eles. Assim, o objetivo final do setor pode passar a ser a ampliação da democracia, com valorização das ideias, das referências e do trabalho das parcelas subalternizadas da população.

Cidadania e Cultura

Fala-se bastante sobre os problemas vividos pelo setor cultural e como superá-la, nesse sentido, faz-se indispensável buscar na história brasileira por momentos em que os projetos políticos institucionalizados valorizavam a cultura. No contexto da transição para o novo momento político pós-ditadura, o caráter econômico pautou as produções culturais de modo que o capital monopolista definisse os padrões de conteúdo e formato. Enquanto grandes empresas de outros setores utilizaram a renúncia fiscal prevista na legislação para aumentar seus ganhos e, simultaneamente, fazer propaganda de seus produtos e serviços.

O objetivo deste item é apresentar a ideia de cultura cidadã baseada na diversidade brasileira, unida ao novo papel de mediador adotado pelo Estado entre 2002 e 2010, que representaram uma nova possibilidade em meio ao contexto neoliberal.

O período tratado aqui foi permeado pela perspectiva da cidadania e da inclusão em todas as políticas públicas implementadas pelo governo de Luís Inácio Lula da Silva. No contexto do processo de tentativa de consolidação de um novo Brasil, cada vez mais democrático, inclusivo e popular, as ações do Ministério da Cultura seguiram concepções adotadas pela UNESCO, especialmente o conceito antropológico de cultura.

Modificou-se o papel do Estado, passou da não-intervenção como princípio a atuar no sentido de propiciar as condições para inserção dos mais pobres na produção cultural, compreendia-se que esses atores, por representarem a maioria do povo brasileiro, precisavam de incentivo financeiro e estrutural a partir da máquina estatal, que não seria responsável pelo gerenciamento e direção do que seria feito, mas como um intermediador do que já existia e das ações que precisavam de ajuda para surgir.

Novas políticas baseadas na posição do Estado como facilitador surgiram em todos os setores durante o governo Lula. Na cultura, esse processo engendrou uma política inédita na história brasileira, o Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania — CULTURA VIVA, cujo objetivo era incentivar a produção e fruição de ações culturais populares, isto é, cujos agentes, origens, referenciais, etc. não fossem grandes empresas midiáticas do eixo sudeste. Em conexão com a ideia antropológica de cultura adotada pelos ministros da cultura Gilberto Gil e Juca ferreira, o Cultura Viva fomentou a diversidade ao nível local e nacional, colocando o povo no lugar de criador da música, teatro, cinema, artes plásticas, cultura digital, preservação de memória afro-brasileira.

O Programa Cultura Viva envolvia um conjunto de ações distribuídas em cinco eixos com diferentes graus de consolidação: Pontos de Cultura, Cultura Digital, Agentes Cultura Viva, Griôs (Mestres do Saber) e Escola Viva; dos quais, três se consolidaram e receberam mais atenção do Ministério.

Os Pontos de Cultura foram o eixo principal, consistiam em unidades de produção, recepção e disseminação culturais e artísticos convencionais que se ligavam em formato de rede a Pontões — unidades maiores responsáveis pela interligação e formação dos Pontos —, trocando conhecimento, referências e reclamações entre si. Funcionavam por meio de convênios feitos entre pequenas organizações privadas e o Estado, este forneceria a estrutura, a conexão entre Pontos e verba para que aquelas iniciassem ou ampliassem suas atividades culturais locais conforme seus projetos, objetivos e formatos definidos unicamente pelas instituições. Apesar de ser central, esse eixo identificou problemas com os repasses de verba, interligação de entidades, treinamento e resolução de problemas, dificuldades ligadas ao fato de o MinC não ter estruturas capazes de lidar com o volume de instituições, além de não conseguir contratar e qualificar pessoal.

Outro conjunto que se consolidou foi a Cultura Digital, um kit com computador, equipamentos audiovisuais e software livre para que os Pontos desenvolvessem atividades ligadas ao mundo digital que começava a se estruturar no começo dos anos 2000. Os kits foram usados para produção de vídeos, música, peças e outras atividades em parte dos Pontos, por outro lado, houve casos em que não foram utilizados pelos Pontos com receio de danificar ou ter outros tipos de problemas.

Finalmente, os Griôs foram um eixo fundamental para a preservação das tradições africanas por todo o Brasil, contudo, por conta do formato diferenciado de atuação, visto que os Griôs não eram instituições, mas pessoas detentoras das tradições, a infraestrutura do Programa passou por dificuldades para estabelecer e realizar as tratativas financeiras dos convênios.

O número de Pontos de Cultura cresceu de 526 até 2007 para 2.600 até 2009 (IPEA, 2011, p.9), fato que evidencia a alta adesão ao Programa e seu crescimento ao longo do período. Esse aumento mostra que o novo modelo conseguiu fortalecer e ampliar iniciativas por todo o país, com isso, a ideia de cultura enquanto prática cidadã de participação, ligada modificadora do lugar da população no processo de produção fruição e consumo da arte e da cultura, se estabeleceu com relativa solidez.

É importante lembrarmos que a cultura de massas produzida pelo capital monopolista continuou sendo hegemônica, usando a chamada Lei Rouanet como ferramenta de aumento do lucro. O Programa Cultura Viva deu forças aos artistas e profissionais culturais que já lutavam e sofriam os efeitos da posição de subalternidade em que foram colocados.

Tendo a cidadania como um dos ideais centrais, o MinC atuou, entre 2003 e 2010, como o mecanismo de incentivo à liberdade que pregavam os neoliberais, entretanto, agora ela ia além da liberdade econômica que atingia apenas grandes empresas — os únicos investidores com capital suficiente para financiar grandes produções como filmes, amostras culturais, festivais e peças de teatro de abrangência nacional.

A participação cidadã era estimulada em consonância com o processo de construção do novo Brasil, democrático, diverso e livre da ditadura. Por meio dela os agentes culturais periféricos foram estimulados econômica e politicamente para dar continuidade a ampliar seu trabalho, que não tinha como ponto central a produção de valor de troca visando o lucro, mas o valor de uso, ou seja, expressar culturalmente sua realidade, suas críticas, interesses, esperanças, além entreter com criações baseadas em referências próximas ao público.

Há, ainda, uma questão a ser levantada acerca do processo assinalado, o fato de que as políticas culturais implementadas não representaram rupturas com a ordem vigente. O projeto petista não teve como horizonte a construção de um processo revolucionário. Seu modelo foi pautado pela formulação de acordos e políticas públicas por dentro da ordem burguesa — como foi o caso do Programa Cultura Viva —, importantes para a melhora das condições de vida e acesso a direitos, mas ao fim do governo Lula deixaram de ser prioridade.

No cultural, houve a reorganização de secretarias e do foco do Ministério como um todo, causando uma situação contraditória para o Cultura Viva. O governo federal parou de realizar novos convênios e de fornecer qualquer tipo de suporte àqueles já em curso ou conveniados com instâncias estaduais e municipais do programa ao mesmo tempo que foi aprovada a Lei Nacional de Cultura Viva.

Percebe-se que este período foi permeado pela concepção de cultura ligada a cidadania, isto é, o povo brasileiro foi centro das políticas, incluído ativamente na produção. O Estado, por sua vez, passou a formular políticas que utilizassem sua estrutura a fim de proporcionar novas formas de garantir os direitos dos cidadãos. Por conta da estratégia política adotada pelo Partido dos Trabalhadores, a criação de políticas públicas e o aumento da importância de fundos públicos foram evidentes durante os governos de Lula, contribuindo para o processo de crescimento econômico advindo de uma série de fatores que não nos cabem aqui.

O recorte trabalhado neste trecho foi o pano de fundo de uma política cultural destoante do conjunto neoliberal adotado antes de 2003. Pode-se notar que o modelo dos Pontos de Cultura foi bastante exitoso apesar das limitações impostas pela realidade da época. A partir dele podemos pensar formas de fomentar a construção de redes culturais sólidas e populares com respaldo técnico, estrutural e econômico do Estado, independentes dele, capazes, inclusive, de contribuir fortemente para a politização, visando auxiliar no processo de tomada de consciência da população acerca das lutas existentes na sociedade brasileira.

Economia criativa e avanço neoliberal

No contexto de retomada da primazia econômica no setor cultural, é importante compreender os acontecimentos que levaram à mudança da concepção de cultura cidadã, em voga entre 2003 e 2010, para o foco na economia criativa, adotado entre os anos de 2011 e 2016. Com a eleição de Dilma Rousseff, o Ministério da Cultura passou por reformas em algumas de suas secretarias, em seu orçamento e na perspectiva de cultura norteadora das ações.

O modelo petista baseado nas políticas públicas de melhoria da qualidade de vida, emprego e renda foi continuado pela nova presidente, salvo mudanças impostas pela mudança na dinâmica dos preços das commodities e pelo fortalecimento do capital financeiro. Na cultura, foi adotada uma ideia já bastante desenvolvida por instituições como a UNESCO e por vários países, inclusive o Brasil, ao longo dos primeiros anos do século XXI: a Economia criativa. Trata-se de uma perspectiva de valorização do potencial econômico da cultura para os trabalhadores e localidades envolvidos em determinado processo cultural, criativo ou de imaginação.

Este modelo foi prontamente adotado em meio a um contexto de mudanças no Ministério e em sua centralidade no plano de governo. RUBIM (2015, p.27), considera ainda que o patamar de articulação política entre o MinC e os grupos culturais e artísticos foi rebaixado, ocasionando o aprofundamento das crises e a diminuição do número de alternativas políticas capazes de solucioná-las. Durante a gestão de Ana de Hollanda, este quadro se formou em torno da mudança de equipe do Ministério, da falta de organicidade entre a figura da Ministra e a classe artística e de suas limitadas possibilidades políticas. Outro elemento central desse processo foi a incompreensão da centralidade do programa Cultura Viva no quadro das políticas culturais no Brasil, cujos impasses aflorados ao longo das gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira não foram acompanhados pelas medidas necessárias para a construção de procedimentos alinhados o suficiente para viabilizar a conexão entre Estado e Sociedade Civil de forma satisfatória.

Apesar deste quadro, a equipe do Ministério viabilizou a continuidade de programas importantes como o Plano Nacional de Cultura (PNC) e o Sistema Nacional de Cultura (SNC), potencializou a interação com outras áreas como a Educação, e inaugurou a dimensão da economia criativa.

Visando sanar a crise na Cultura, Dilma nomeou Marta Suplicy para a pasta, visto que sua longa carreira política proporcionou-lhe uma gama de relações capaz de acrescentar novas alternativas para o baixo patamar de atuação. A nova Ministra demonstrou força política com a aprovação do SNC e do Vale-Cultura, além de solucionar parcialmente questões ligadas à relação entre o MinC e a Sociedade Civil de caráter político

Contudo, poder político de Marta engendrou uma nova instabilidade, visto que a equipe ministerial foi substituída quase em totalidade, concentrando as decisões na figura da Ministra e sendo intensificada pela falta de compromisso com as políticas culturais, resultando no abandono do Cultura Viva — transformado em Política Nacional de Cultura Viva em 22 de julho de 2014 — e na primazia de políticas como o Vale-Cultura.

O discurso do Ministério sob o governo Dilma foi oposto àquele que permeou os governos anteriores, optou por centralizar suas forças na relação interministerial e na continuidade de determinadas ações para apresentar respostas a curto prazo para demandas populares de modo a ganhar apoio político.

Neste processo, a economia criativa se encaixa pelo fato de, mantendo centrais no plano das ideias a diversidade e o papel criativo dos trabalhadores culturais, ter um caráter pragmático evidente. Diferentemente de programas como o Cultura Viva, cujo foco era valorizar as referências e os produtos de grupos historicamente subalternizados fornecendo auxílio econômico, a economia criativa aspira criar as condições para o crescimento de opções de mercado baseadas na criatividade e na cultura para gerar valor econômico. O setor deixa de ser importante por seu valor histórico, patrimonial e de identidade nacional para ser apenas mais uma forma de geração de emprego e renda.

Com a reorientação do conceito de cultura, o papel do Estado também se modifica, deixa de ser o facilitador das atividades e responsável pelo florescimento dos agentes culturais no âmbito do programa Cultura Viva e, por outro lado, garantir o cumprimento das disposições jurídicas quanto às instituições, convênios e repasses. Para agir apenas como regulador, intervindo o mínimo possível ao mesmo tempo que, por meio do Vale-Cultura, inseriu mais grupos sociais aos consumidores em potencial.

Para Domingues e Lopes (2015, p.206-208), o formato das políticas culturais buscou conjugar a adequação do trabalho cultural às exigências contemporâneas do capitalismo, que deu origem a novos cenários de desemprego estrutural, desregulamentação da legislação trabalhista, ampliação do emprego temporário e terceirização. Ao longo do período apresentado, o Estado se tornou um meio de atender certas necessidades da relação entre a piora das condições de trabalho e a cultura através da coordenação do acesso aos mecanismos de viabilização financeira para o surgimento de novos postos de trabalho.

De todo modo, a dinâmica atual do capital, em seu modo de representação, tende a inverter a ordem causal dos efeitos de crise entre capital e trabalho. Elementos como desemprego estrutural e terceirização fazem parte do sistema capitalista. São ferramentas de aumento da lucratividade pela diminuição dos salários através do aumento da oferta de trabalhadores e da diminuição da demanda por eles. Contudo, o capital representa esses elementos como efeitos de um momento de crise, competitividade crescente, falta de especialização do trabalhador, desinteresse etc. atribuindo ao indivíduo o papel de responsável por questões que não são individuais.

Inserida nesse processo, a concepção de economia criativa foi construída visando a superação da retirada de direitos e da profunda crise por que passam os trabalhadores através da consolidação de um novo setor econômico ligado à cultura.

Contudo, esse novo segmento segue a tendência à individualização típica do capitalismo, isto é, apresenta novos caminhos para geração de emprego e renda tendo como um de seus pilares o empreendedorismo. Utiliza-se das condições criadas pelo Estado para fomentar a criação de pequenos empreendimentos, muitas vezes restritos a apenas uma pessoa atuando como uma empresa.

Este formato de reafirmação do indivíduo como agente independente, que sai da inércia e busca se tornar um empresário de sucesso acaba por reafirmar o ideário neoliberal que o culpabiliza por problemas estruturais. Não obstante, apresenta como solução a formação de sujeitos-empresas que continuam na situação de precariedade, sem estabilidade alguma e sem força econômica para competirem com monopólios midiáticos que controlam a grande maioria dos segmentos, referências e tipos de produtos culturais.

Conclui-se que, a partir de 2011, o Ministério da Cultura passou por uma reorientação quanto à ideia de cultura, papel do Estado e prioridades, chegando a atuar opostamente ao que foi construído anteriormente. Optou-se por trabalhar o setor como mais um segmento econômico, portanto, sem valorizar o conteúdo e as possibilidades de autonomia e resistência dos trabalhadores periféricos que foram o centro das políticas entre 2003 e 2010. Houve aumento significativo nas relações interministeriais, mas o patamar de ação política do MinC diminuiu juntamente ao grau de intervenção estatal nas questões culturais.

Entre continuidades, esquecimentos e ausência de políticas culturais, a economia criativa ganhou espaço — inclusive uma Secretaria de Economia Criativa (SEC) — em meio a um contexto de desaceleração econômica e alteração de projeto político no Poder Executivo. Fatores que certamente contribuíram para a adoção de um conceito voltado para a reparação de um problema antigo do setor cultural, o número de postos de trabalho, sem causar mudanças radicais.

Ignoraram, ainda, outros elementos que precisavam de atenção, como a estabilidade dos empregos, capacitação profissional, autonomia criativa, incentivo a pequenas e médias instituições, além do investimento no Cultura Viva, no PNC e no SNC, travando as possibilidades de crescimento do setor.

Tentativas de criar formas de renda para os trabalhadores devem ser sempre estudadas objetivando a formulação de políticas, legislação e outras medidas gerem emprego e renda. Mas é necessário que os empregos sejam formais, com salários justos e todos os direitos garantidos, pois apenas assim será possível diminuir os efeitos do desemprego estrutural, do subemprego e evitar as reformas trabalhistas que visam unicamente o aumento do lucro.

Cultura, Economia e Luta de Classes

No contexto da ascensão de Michel Temer ao poder houve uma nova reestruturação do Ministério da Cultura. Inicialmente, extinguiu-se o Ministério, decisão da qual o presidente interino logo recuou em vista da pressão do campo cultural que se encontrava estruturado no período, mesmo com os diversos problemas institucionais. Nomeado Marcelo Calero para o MinC, houve novo acirramento, especialmente com relação às ocupações culturais, que tinham maior unidade em torno do Fora Temer e das questões intrínsecas ao andamento da cultura.

Entre os artistas mais conhecidos e as grandes empresas midiáticas não havia tanto consenso em torno da oposição ao presidente. Enquanto alguns continuavam criticando o processo de golpe parlamentar, outros defendiam que, uma vez recriado o ministério, era hora de negociar com o governo. Independente de serem ou não opositores, esse grupo em geral tendeu a tratar as relações com o novo ministro no sentido de retomada das políticas culturais.

Contudo, a gestão Temer traria de volta diversos elementos das políticas neoliberais anteriores aos governos petistas. Sua principal prática foi a consolidação da cultura como um setor de função majoritariamente econômica, mantendo baixos investimentos na pasta e abandonando as ocupações culturais, Pontos de Cultura e outras manifestações artísticas e estéticas populares. Não é surpreendente que tal postura tenha sido adotada se considerarmos toda a trajetória do MDB e do próprio Michel Temer.

Outro fator fundamental para compreendermos o novo período do MinC é a fragilidade da legitimidade de Michel Temer. Tendo chegado ao poder por meio de um golpe parlamentar, que se disfarça de processo legítimo de impeachment, o presidente interino nunca foi consenso entre a população. Alguns setores do empresariado apoiavam a nova gestão por conta da lucratividade e da promessa de reformas que se conectavam ao novo processo. Enquanto a classe trabalhadora, ocupações culturais, movimentos sociais e partidos de esquerda criticavam duramente as medidas, evidência disso são as numerosas manifestações em andamento desde 2016 contrárias ao golpe e às reformas.

Fato é que a frágil legitimidade afetou todas as áreas do governo, em especial aquelas ligadas aos interesses da classe trabalhadora. Podemos citar três grandes retrocessos trazidos ao longo desse período, a retomada da política neoliberal para cultura, a Reforma Trabalhista e a Reforma da Previdência. No caso da cultura, trata-se de reorientar o ministério no sentido das políticas de incentivo fiscal, retirando qualquer possibilidade de promoção das atividades de grupos culturais fora das grandes empresas. Intensificaram-se as perseguições a ocupações culturais e o desamparo total do Estado sobre o setor voltou a ser uma realidade.

Quanto às duas reformas, por fugirem do escopo deste texto, serão apresentadas apenas brevemente. A Reforma Trabalhista diz respeito ao conjunto de alterações da Consolidação das Leis Trabalhistas, referentes a jornadas de trabalho, férias, compensação de horas, pagamentos de horas extra e salários. A partir dela o contrato de trabalho seria mais “flexível” o que significa na prática maior controle dos empregadores sobre os trabalhadores, além da perda de garantias e da proteção promovida anteriormente.

A Reforma da Previdência, por sua vez, alterou principalmente os requisitos de tempo até que o trabalhador possa se aposentar, aumentando os anos de trabalho necessários tanto no funcionalismo público quanto para os trabalhadores do setor privado, com raríssimas exceções.

Retomando a questão cultural, está evidente que o objetivo das mudanças culturais daquele momento era minar, de uma vez por todas, a já incipiente participação popular no Ministério, e acabar desmobilizando os agentes culturais que vinham se organizando com maior vigor desde 2003. É fundamental considerar o discurso assumido pelos ministros da cultura de Temer, segundo o qual, o MinC teria sido aparelhado pelo PT.

Discurso que demonstra dois elementos da perspectiva burguesa destes sujeitos; o primeiro é a redução de todo o desenvolvimento da área da cultura a uma política que seria mera estratégia do PT. Conforme apontado ao longo desse texto, fica evidente que a principal política cultural petista, o Cultura Viva, partia de uma concepção muito própria do papel do Estado sobre a cultura e a sociedade. Como foi possível perceber pelas pesquisas, a prática dessa política foi permeada por problemas de infraestrutura e acesso a recursos, além de uma postura pouco propositiva por parte do governo, que se limitou a dar suporte aquilo que já existia. A situação do setor herdada por Temer indica a ausência de usos políticos do MinC, que manteve poucos investimentos e não deu conta de sua maior política da época. Se os Pontos de Cultura mal conseguiam ter acesso a editais e apoio do ministério, é pouco provável que se tornassem qualquer coisa próxima a estruturas políticas.

O segundo ponto é a alegação de que o PT, enquanto partido de esquerda – para a burguesia pouca diferença há dentro do rótulo de esquerda – teria usado a estrutura do Estado para fins políticos, o que de fato parece ser apenas um recurso retórico se analisarmos a perspectiva, quase inocente, de republicanismo e democracia conduzida pelos governos petistas. Baseado na ideia genérica de democracia, o período em que o Brasil foi governado por Lula e Dilma representou uma institucionalização de diversos debates e problemáticas da sociedade, numa tentativa de resolvê-los por meio das estruturas de governo.

Em vez de solucionar ditos problemas, ou mesmo de fomentar uma participação popular ativa, tais governos acabaram restringindo demandas e lutas populares aos escritórios em Brasília, em que tudo que fugisse da esfera formal e governamental continuava abandonado e reprimido, mesmo que com menos incentivo. Portanto, é falso crer que o MinC tenha se tornado um aparelho político do PT, pois mesmo com o Estado em mãos por 14 anos, não esboçaram nenhuma tentativa de incentivar a participação popular e construir uma consciência de classe efetiva junto aos trabalhadores. Muito pelo contrário, passaram a tratar trabalhadores como consumidores e a comemorar o surgimento de uma “nova classe média” baseada em crédito e dívidas.

Podemos definir o governo Temer por um conjunto de reformas e modelos de gestão voltados para benefício da iniciativa privada e da economia, um verdadeiro desmonte das responsabilidades do MinC, e a exclusão dos trabalhadores de qualquer participação nas decisões ou produção autônoma de suas obras.

Passando ao governo Bolsonaro, a perspectiva cultural muda parcialmente. O Ministério da Cultura foi transformado em Secretaria Especial de Cultura, parte do Ministério do Turismo, perdendo sua autonomia e sua verba própria, junto a isso, qualquer lei em benefício aos trabalhadores da cultura foi vetada parcial ou integralmente por Bolsonaro. As políticas de incentivo continuaram sendo o principal item da pasta, mas com a novidade de serem criticadas constantemente por membros do governo e apoiadores, que as consideram uma forma de artistas ganharem dinheiro às custas do Estado.

É nesse período, também, que noção de cultura como algo ideológico passa a ser constante nas declarações, fato tão relevante quanto os cortes financeiros, pois mesmo após a saída do indivíduo Jair Bolsonaro do poder, o movimento criado por ele tende a manter tal noção em voga de outras maneiras. Ao dizer que a cultura foi usada com teor ideológico até aquele momento, o presidente visa criar a imagem de que seu governo trataria essas questões com a “devida neutralidade”.

Na prática, são inúmeras as censuras a editais e projetos referentes a temas LGBTQIA+, a arte periférica e a qualquer manifestação que fugisse ao padrão estético bolsonarista e ao sertanejo universitário. Além disso, a presença de discursos, símbolos e estética neonazista foi constante, inclusive entre os secretários de cultura.(2)

Em alguns casos isso aparecia por meio do chamado “dog whistle”, ou apito de cachorro, que consiste em utilizar simbologias nazistas pouco conhecidas fora dos círculos simpatizantes. Seu uso visa evitar problemas, já que apologia ao nazismo é crime no Brasil, e disfarçar as manifestações dessa ideologia, fazendo parecer que os denunciantes estão exagerando em suas acusações, já que os gestos, imagens e músicas contém referências veladas.

Em meio a simbologia neonazista, a adoção de uma estética muito própria baseada nas cores da bandeira do Brasil tornou-se extremamente presente na realidade do país ao longo dos últimos quatro anos. Não cabe aqui debater as qualidades subjetivas do bolsonarismo, mas fato é que tal estética se expressou tanto na internet quanto no frequente uso de bandeiras, camisas da seleção e outros adereços verde e amarelos em protestos, fotos de perfil de redes sociais e aparições do presidente em público.

O apagão das políticas culturais institucionais foi seguido pelo estabelecimento de uma cultura política muito própria. Tomando por metodologia principal a contradição frequente entre um “nós” patriótico, conservador e cristão, contra um “eles” comunista, degenerado e anti-cristão, os discursos bolsonaristas pautaram-se, durante todo o período, pelo uso de informações falsas e negação da ciência. Foi criada uma identidade específica do cidadão de bem, cuja reflexão no setor cultural foi latente.

Um dos casos mais emblemáticos da influência bolsonarista no setor da cultura foi a chamada “CPI do Sertanejo”, que faz referência a vários artistas investigados por contratos de altos cachês, pagos por prefeituras de cidades pequenas. Foram mais de 35 duplas investigadas pelo Ministério Público. Essa movimentação começou a partir de uma discussão entre a cantora pop Anitta e o sertanejo Zé Neto em torno do uso da Lei Rouanet.

Esse caso demonstra uma enorme contradição entre discurso e prática muito presentes no setor e no governo. Os mesmos agentes que criticam as leis de incentivo se envolvem em práticas suspeitas, utilizando outras ferramentas jurídicas. A peculiaridade da postura se destaca pela crítica a políticas neoliberais, logo, podemos pensar em um grupo que destoa, inclusive dos políticos tradicionalmente neoliberais já conhecidos. Não significa, porém, uma ruptura de projeto econômico. Mas é possível pensar em um aprofundamento do processo de descredibilização do Estado e incentivo à privatização de determinadas áreas, cuja ferramenta principal de debate é chamar atenção para um elemento específico e menos relevante economicamente ao setor, enquanto utilizam outras formas de acessar a verba pública.

Prefeituras por todo o país utilizam uma brecha na lei das licitações para contratar shows de artistas conhecidos de forma indiscriminada. Conforme a Lei nº 8.666/93, todo contrato efetuado com Municípios, Estados, a União, além de autarquias, empresas públicas, órgãos e instituições, devem passar por um processo de licitação, que consiste no processo de análise, pelo poder público, de diferentes contratos possíveis, buscando aquele que se adeque melhor ao princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.

A lei, criada no contexto de redemocratização para organizar a compra de produtos e serviços de terceiros pelo Estado, estabelece em seu art. 5º que não são exigidas licitações em casos onde for inviável a competição. As prefeituras envolvidas na “CPI do Sertanejo” utilizam essa ferramenta para contratar shows milionários, já que é impossível estabelecer critérios de comparação entre artistas.

Ao longo do período, o mundo passou pela pandemia de COVID-19, causadora de milhões de mortes e de mudanças profundas nas relações sociais e econômicas. Um dos principais efeitos da pandemia foi o aprofundamento das contradições do capitalismo, cujos resultados mais evidentes foram o aumento da descredibilização das instituições e da fome.

O Brasil foi um dos países mais afetados pela pandemia, em especial pela constante negação da ciência, presente no discurso bolsonarista por todo o país. A doença era tratada inicialmente como algo sem gravidade, praticamente um “delírio da esquerda”, e as medidas de prevenção eram apresentadas quase como um complô para destruir a economia. Em meio ao discurso negacionista, houve o atraso na compra das vacinas, que posteriormente as investigações da CPI da COVID demonstraram a tentativa de adquirir propinas para efetuar contrato com os laboratórios produtores dos imunizantes.

Enquanto tentavam mitigar os danos da doença, estados e municípios fizeram diversas tentativas de manter as medidas de isolamento, somadas a formas de manter a renda, especialmente da população vulnerável e pequenos negócios. Sendo a cultura um dos setores mais afetados pelas medidas de isolamento, as soluções que surgiram para o setor seguiram aquelas já apresentadas para o problema da fome e desemprego, políticas de renda fornecidas pelo Estado, como o auxílio Brasil.

Trata-se das leis nº 14.017/20, conhecida como Lei Aldir Blanc e a Lei Complementar nº195/22, conhecida como Lei Paulo Gustavo. Ambas receberam nomes de artistas conhecidos que morreram ao longo da pandemia. Em um contexto de adaptação do Estado e da sociedade a restrições sanitárias que afetaram diretamente a produção cultural, a legislação voltada para auxílios financeiros foi fundamental para conter a crise. Artistas e empresas da área procuraram reinventar suas práticas, o que incentivou o crescimento exponencial de lives e conteúdos em meio digital.

A Lei Aldir Blanc, de autoria da deputada Benedita da Silva (PT-RJ) em seu artigo 2º define que a União deveria entregar três bilhões de reais aos Estados e Municípios para aplicações em ações emergenciais de apoio ao setor cultural. Em seguida define os tipos de apoio, desde a renda emergencial aos trabalhadores e trabalhadoras da cultura; o subsídio mensal para manutenção de espaços, micro e pequenas empresas, cooperativas e instituições comunitárias que pararam devido ao isolamento; e a criação de editais, chamadas públicas, prêmios e outros instrumentos voltados para a manutenção de agentes, espaços e iniciativas, além da realização de atividades artísticas que pudessem ser transmitidas pela internet.

Para ter acesso aos recursos da lei, os trabalhadores devem cumprir uma série de requisitos: entre eles, a comprovação de suas atividades no setor, não terem emprego formal ativo, não receberem benefícios da previdência, seguro-desemprego ou Bolsa Família, além de terem renda familiar per capita de até meio salário mínimo. Portanto, destina-se aos trabalhadores mais pobres do setor, nesse sentido, se contrapõe à prática estatal de terra arrasada, e retoma aspectos das políticas dos governos petistas.

Segundo dados já coletados sobre a aplicação da lei Aldir Blanc, 61% dos municípios distribuíram recursos em 2021, sendo a maioria deles nas regiões Nordeste (71,3%), Sul (61,2%) e Sudeste (60,6%), enquanto Norte e Centro-Oeste haviam distribuído 46,9% e 37,5% respectivamente (PODER360, 2022). Analisando os números é possível perceber a agilidade de repasse e aderência de parte considerável dos municípios em pouco tempo. Até o momento da produção desse texto não haviam dados referentes a 2022.

Com o final do período mais crítico da pandemia, o país reuniu esforços para retomar o crescimento econômico e conter os prejuízos. Nesse contexto foi criada a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura pela Lei nº 14.399 de 8 de julho de 2022, com o objetivo de tornar permanente o auxílio aos profissionais do setor. Segundo uma das autoras, a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), “A lei foi um marco na política pública de cultura do Brasil. Por isso, entendemos que ela precisa ser um parâmetro permanente, não pode parar numa visão emergencial” (PORTAL DE NOTÍCIAS DA CÂMARA).

A Lei Complementar nº195/22, conhecida como Lei Paulo Gustavo, tem como objetivo garantir ações emergenciais para o setor cultural. Para tanto, altera a Lei de Responsabilidade Fiscal de modo a não contabilizar nas metas as transferências federais a outros entes relativas ao enfrentamento das consequências sociais e econômicas da cultura decorrentes de estado de calamidade e pandemias. Modifica a Lei nº 8.313 para atribuir outras fontes de recursos ao Fundo Nacional de Cultura.

Atua como um instrumento de facilitar a aplicação da Lei Aldir Blanc e outras políticas voltadas para a cultura. Ao definir que os recursos de transferência federal a outros entes deixem de ser contabilizados pela Lei de Responsabilidade Fiscal, permite maior liberdade no uso dos recursos. Questão muito cara a um país cujos problemas exigem muito dinheiro e ação do Estado, mas no qual existe um forte discurso liberal de que a máquina pública não pode ser deficitária para não assustar o mercado.

Nesse sentido, as duas políticas de enfrentamento às consequências da pandemia no setor da cultura são amostras do contraste, entre uma visão de que o Estado não deve intervir na cultura, e outra de que a máquina pública deve auxiliar na recuperação e manutenção do setor. Tal perspectiva foi marcante ao longo do governo Bolsonaro, inclusive em outras áreas.

Ao verificarmos as motivações do ex-presidente para o veto da Lei Paulo Gustavo (PORTAL DE NOTÍCIAS DA CÂMARA, 2022) e da Lei Aldir Blanc 2 (PORTAL DE NOTÍCIAS DO SENADO, 2022) é possível visualizar facilmente suas motivações, visto que no primeiro caso a justificativa era de que a lei criava uma despesa sem medida compensatória, e que o setor já fora beneficiado pela Lei Aldir Blanc; já no segundo, alegou ser inconstitucional e contrária ao interesse público.

Podemos concluir que as gestões de Temer e Bolsonaro possuíram semelhanças políticas e econômicas muito presentes na cultura. Suas políticas neoliberais consistiram em desmontar o setor, a começar pelo Ministério, e evitar ao máximo o repasse de recursos, mantendo apenas o incentivo fiscal da chamada Lei Rouanet. No caso de Bolsonaro surgiu, ainda, a crítica aos artistas e espetáculos beneficiados pelas leis de incentivo, mas a CPI do Sertanejo pode ajudar a explicar os posicionamentos do ex-presidente e de seus apoiadores.

Os documentos em análise até o momento servem ao propósito de compreender como diferentes grupos sociais se relacionam em torno do setor da cultura, no período de 2016 a 2022. O lado estatal estava sob comando de políticos neoliberais ligados a interesses de grandes empresários, portanto, suas decisões mantiveram coerência com tal projeto. Em contraponto, as leis Aldir Blanc 1 e 2 e Paulo Gustavo representam a força dos trabalhadores da cultura, que conseguiram resistir em meio à pandemia e pressionar o Estado a liberar recursos para evitar que os agentes mais pobres fossem ainda mais fragilizados.

NOTAS:

(1) VIctor Plasa é historiador pela FMU e geógrafo pela UNICID

(2) Ao som de Richard Wagner, o compositor favorito de Adolf Hitler, o secretário de Cultura do Governo, Roberto Alvim, plagiou em pronunciamento que foi ao ar nas redes sociais trechos de um discurso do ministro da Propaganda do führer nazista, Joseph Goebbels. “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa […] ou então não será nada”, diz Alvim no vídeo. O líder nazista havia dito: “A arte alemã da próxima década será heroica, será ferrenhamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande páthos e igualmente imperativa (…) ou então não será nada”. (El País, 2020)

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