Caminho e caráter da Revolução Brasileira

Por Érico Sachs, via marxists.org

Primeira parte da brochura “Caminho e Caráter da Revolução Brasileira”, intitulada “Revolução socialista ou caricatura de revolução”. Escrito em 1970, quando o autor se encontrava exilado na Alemanha. A obra circulou primeiro em edição mimeografada providenciada pela organização Política Operária. O documento é composto por quatro partes distintas. “Ernesto Martins” foi um codinome utilizado por Eric Sachs em seus escritos durante a ditadura militar.


Por outra parte as burguesias autóctones perderam toda a sua capacidade de oposição ao imperialismo– se alguma vez a tiveram– e só formam seu vagão de reboque. Não cabem dúvidas, ou revolução socialista ou caricatura de revolução.”

Mensagem à Tricontinental – E. Guevara.

Guevara, nos últimos anos de sua vida, havia chegado à conclusão, expressando-a por escrito, que a revolução na América Latina será socialista ou será uma caricatura de revolução. Com isto se afastou publicamente das correntes aparentemente radicais que não pretendiam passar da caracterização “popular” e “democrática” da atual fase de luta e que simplesmente se negaram a definir o caráter do processo revolucionário, fugindo da definição sob pretexto de não querer “cicatrizar” o problema. Já se tornava extremamente difícil defender a debilitada tese da “revolução burguesa na América Latina” e a definição de Guevara foi um golpe a mais contra o populismo “teórico” nas esquerdas em toda América Latina, as quais se viram obrigadas a uma precipitada revisão de suas concepções ideológicas e, não poucas vezes, se sentiram forçadas a enfatizar profissões de fé socialista para poder sobreviver.

Para a elaboração de uma estratégia e tática marxista no Continente, o simples abandono da tese da revolução burguesa não é o bastante. O recuo tático e as profissões de fé socialista, na maioria das vezes, servem só para encobrir o (conservadorismo) das concepções de luta superadas e a manutenção de princípios e práticas pequeno-burguesas sob um rótulo novo.

Já o movimento revolucionário, que se nomeia marxista-leninista, tem que ter claro, não só os objetivos da luta, como também os meios para alcançar a meta.

As implicações da Revolução Socialista

Que significa a afirmação de que a revolução na América Latina é socialista?

Aplicando o conceito aos temos concretos da luta de classes nos diversos países da América Latina, evidentemente tem implicações diferentes nas regiões do Continente diferenciadas pelo seu grau de desenvolvimento e composições de classe. Parte, no entanto, das premissas de que:

  1. há um denominador comum na estrutura, na história e no futuro dos países latino-americanos, e

  2. que o processo revolucionário é continental ao menos no que diz respeito a parte latina do Continente.

Parte igualmente de outra premissa, tirada da experiência histórica da América Latina.

Já que o processo revolucionário é continental no sentido de que só nesta dimensão vencerá a inimigo comum, o imperialismo, e enfrentará os problemas sociais herdados do domínio de uma burguesia subdesenvolvida, a solução terá que ser socialista. Somente os objetivos socialistas e as classes que os encarnam podem desenvolver a solidariedade continental necessária à luta de emancipação e superar os particularismos “chauvinistas” e interesses locais, que caracterizam a fase das lutas burguesas.

Então, isto significa que a América Latina já está na iminência da revolução? Que nos encontramos diante de uma situação revolucionária ou em véspera de sua eclosão, na qual as condições para a instalação de um sistema e de governos socialistas já estão dadas?

Evidentemente que não. A caracterização socialista da revolução, em si não significa mais que constatar que hoje não há mais lugar no Continente para outras revoluções a não ser as socialistas, tomando revolução no sentido marxista de mudança de domínio de classes e transformação da sociedade, tanto da sua infra como da sua superestrutura.

Significa que, enquanto se mantiverem intactas as bases e as estruturas burguesas-capitalistas, todos os movimentos, mesmo os iniciados com método revolucionário, ficarão no meio do caminho, isto é, produzirão caricaturas de revolução. E revoluções feitas pela metade, como a história já nos ensinou, acabam em reações contrarrevolucionárias. Estas conclusões são feitas, e não podem ser feitas de outro modo, independentemente do fato de que a situação esteja ou não madura para lançar a palavra de ordem da revolução socialista, de que as classes exploradas estejam ou não prontas para acatá-la, de que todas as condições estejam dadas etc. Este aspecto da questão se relaciona com as tarefas da vanguarda revolucionária, da sua estratégia e tática a seguir – e que representa outro ponto do debate. A constatação do objetivo da revolução socialista parte do fato de que o ciclo das revoluções burguesas, mesmo tal como existiu nas condições latino-americanas se esgotou como fator de progresso social. Não significa que essas revoluções burguesas tenham sido concluídas, levadas até o final, como se deu em países de capitalismo clássico, dos quais a França é o exemplo mais nítido. Indubitavelmente as “tarefas” que as revoluções burguesas deixaram, não passam de aspectos secundários das futuras revoluções socialistas. Desde a “questão agrária” até as “tarefas democráticas” existem uma série de problemas que a sociedade burguesa em decadência já não soluciona.

Não menos importante para essas conclusões é o fato comprovado de que dentro das bases e da estrutura burguesa-capitalista não há solução para o problema mais agudo entre os que oprimem os povos deste Continente, problema que freia e corta todas os caminhos do progresso e impede o desdobramento de suas forças produtivas: o domínio imperialista. Nenhum povo, e não só desta parte do globo, soube se liberar das garras da exploração imperialista sem romper as bases capitalistas das relações de produção. O único país que conseguiu escapar ao “domínio Imperialista” foi Cuba. E conseguiu unicamente mediante uma revolução socialista.

Cuba não deu esse salto de uma maneira premeditada. Nem a guerrilha na serra, nem as organizações de luta dos operários nas cidades tinham se colocado objetivos socialistas de revolução. Mesmo depois da insurreição vitoriosa o governo revolucionário tentou primeiro expropriar somente os capitalistas estrangeiros, deixando intacta a economia de mercado.

Viu-se forçado em seguida a expropriar sua própria burguesia para não pôr em perigo todo o processo revolucionário. Com isto criou um fato consumado nas lutas de classes na América Latina, um novo ponto de partida para seu processo revolucionário e delineou seu objetivo histórico. Esta é a importância primordial que a revolução cubana tem para nós, independentemente da interpretação que seus próprios dirigentes podem dar e da estratégia e tática que podem nos recomendar.

O que é a “Revolução Popular?”

O populismo reinante nas esquerdas procura diluir sistematicamente as categorias marxistas, originadas em uma concepção materialista da história da sociedade da qual evidentemente não compartilham. Por muito tempo tentou e evidentemente ainda tenta por outros meios substituir conceitos marxistas definidos como revolução burguesa ou socialista, por indefinidas revoluções “populares”. Consequente com essa linha populista, parte de “movimentos” e “lutas populares” para chegar através da formação de “frentes populares” ao apoio a “governos populares”. Se Marx já denunciou esse populismo no seu tempo (em que as contradições de classes ainda não haviam alcançado a agudeza de hoje) e Engels não poupou observações sarcásticas sobre o “Estado Popular” dos social-democratas alemães – Lênin por sua vez dedicou considerável lugar nas suas polêmicas para restabelecer os conceitos revolucionários do marxismo. Hoje, a tarefa se coloca de novo e em escala muito maior. Com a expansão do marxismo desde a segunda Guerra Mundial, (hoje todo mundo é marxista-leninista), o populismo penetrou novamente no movimento operário. E hoje ninguém se dá ao trabalho, ao incômodo de dizer que está “revisando” o marxismo e o leninismo. A profissão de fé de adesão à doutrina dos fundadores do socialismo científico serve de “salvo-conduto” para as “teorias” e práticas mais absurdas.

Sem dúvida esta não é a única porta pela qual o populismo entrou no movimento comunista internacional. Além do revisionismo iniciado por Stálin, que inventou as “Frentes Populares” como pretensa tática de “Cavalo de Tróia” e as “Democracias Populares” para não espantar a burguesia ocidental com Repúblicas Socialistas e Ditaduras do Proletariado, em consequência da guerra se deu o fenômeno de revoluções como as asiáticas, que eram populares de fato, de um ponto de vista marxista e sob o prisma marxista. Eram populares justamente porque não eram proletárias. Eram revoluções agrárias, levadas adiante e realizadas por camponeses em países em que o proletariado era numericamente reduzido demais para chefiar (encabeçar) fisicamente a revolução. Naqueles países era igualmente insignificante o papel da pequena-burguesia urbana, e muito mais reduzida numericamente que esta a burguesia incipiente. Nesses países o campesinato era o povo, a força motriz da revolução.

Entretanto, transportar esses modelos de revolução agrária para sociedades industrializadas, com suas divisões de classes cristalizada e antagonismos em outro nível, choca-se não só com qualquer dialética da luta de classes como também serve geralmente a segundas intenções. Essas tentativas mecanicistas de generalizar experiências podem, consciente ou inconscientemente, serem ocasionadas pelo fenômeno de querer ver o desenvolvimento das lutas de classe em escala internacional como continuação da própria revolução (assim como existiram generais que viram em cada nova guerra o prosseguimento da guerra anterior). Cabe aos revolucionários dos demais países retificar esse erro a tempo.

Mas o modelo também é transportado consciente ou inconscientemente (o resultado será o mesmo) porque convém para sustentar concepções políticas já existentes de antemão. Pois se na China, por exemplo, o papel da pequena-burguesia da cidade, como classe, era insignificante, não sucede o mesmo nas sociedades industriais. Nestas, a pequena burguesia tem reivindicações próprias que pesam na luta de classe, uma delas, e não a menos importante, é representar o povo, falar em nome do povo, estar por cima da contradição trabalho assalariado-capital. E mesmo quando se radicaliza, quando participa de movimentos revolucionários e “aceita” o marxismo, traz consigo suas concepções populistas e procura, agora sob o rótulo “teórico”, opô-las ao “sectarismo” da luta de classe proletária. E é por isso mesmo que as profissões de fé revolucionárias não produzem sempre uma prática consequente.

Para os marxistas, as possibilidades históricas e, portanto, os objetivos de um determinado processo revolucionário, tem que ser definidos com toda a clareza, para que se possa desenvolver uma estratégia correspondente.

Só queremos recordar de passagem a atuação de Marx. Mesmo dizendo na Revolução de 1848 que o proletariado “tenha interesse em tornar a revolução permanente”, deixava claro que a fase então presente era burguesa e elaborava uma estratégia e tática apropriada para a revolução burguesa. O que previa na estratégia era melhorar a situação do proletariado, deixá-lo em situação mais favorável para iniciar a luta pela revolução socialista. O mesmo pode-se verificar na atuação de Lênin, que em 1905 não deixou dúvidas de que se tratava de abrir as portas do capitalismo russo, mas em 1917 formulou clara e insofismavelmente o objetivo da revolução socialista e da Ditadura do Proletariado nas Teses de abril. Ainda que Lênin tenha falado da “revolução ininterrupta”, nunca aceitou a diluição subjetivista da “revolução permanente” de Trótski, por exemplo.

Os dois teóricos do socialismo científico trataram a revolução socialista como duas etapas histórica e qualitativamente distintas, que podiam se encontrar em um processo revolucionário “permanente” ou “ininterrupto”, mas que tinham de ser distinguidos tanto por seus objetivos inerentes como pelas alianças de classe que lhes servem de bases.

Lênin, em o “Estado e Revolução”, se refere especificamente a “revoluções populares” e usa o adjetivo para distinguir o desenvolvimento da Revolução Russa de 1905, um movimento com ampla participação de massas populares, da revolução turca de 1911, realizada por jovens oficiais através de golpes militares.

Não usa o termo para substituir os conceitos fundamentais de revolução burguesa ou socialista, mas sim para distinguir dois modos de realização da revolução burguesa como se deram na realidade. Não aplicou essa distinção para a revolução socialista, pois desta supôs, de antemão, que só poderia ser realizada através da intervenção das massas populares. E nesse sentido nossos populistas são consequentes, pois na maioria dos casos se escondem concepções e objetivos burgueses sob o pretexto da “revolução popular”. Basta dizer que quase todos eles deixaram “aberta uma porta” para que os burgueses nacionais deem sua adesão a tais movimentos.

O exemplo concreto da revolução chinesa

O exemplo clássico em nossa época de uma revolução que pode ser chamada de popular é dado pela revolução chinesa. Trata-se justamente de um processo histórico em que as duas fases, a da revolução burguesa e a da socialista se encontraram, em que uma revolução agrária desembocou no socialismo.

As circunstâncias históricas concretas que possibilitaram a execução da revolução chinesa são conhecidas. A revolução burguesa, cujos inícios se situam nos levantes dos Taiping, foi retomada sob a direção de Sun Yat-Sen, que criou o Kuomintang como instrumento político partidário. Os comunistas chineses, depois de discussões internas, entraram no Kuomintang onde encontraram suas bases de massas e procuraram criar um polo proletário para impelir o processo à diante e radicalizá-lo. Depois da traição do Kuomintang o PC não soube reconhecer o momento adequado para separar-se dele e se tornou vítima do terror contrarrevolucionário. Isso mais as aventuras ultraesquerdistas do fim da década dos anos 20 destruíram não só as organizações comunistas nas cidades como também eliminaram praticamente o numericamente reduzido proletariado chinês como fator político ativo, o qual não interveio como classe senão até o fim da guerra civil. Os comunistas sobreviventes se deslocaram até o interior e criaram as bases camponesas armadas. A revolução se tornou agrária, alimentada pelos remanescentes do feudalismo asiático.

No entanto, as lutas proletárias anteriores haviam criado um Partido Comunista e o fato de que a burguesia chinesa traiu o campesinato e desistiu de uma luta frontal contra o feudalismo no campo, fez com que os camponeses aceitassem a liderança comunista para completar a tarefa da revolução burguesa. Esse aspecto da revolução burguesa, antifeudal, foi completada na China sem e contra a burguesia, como Mao Tse-Tung sublinhou mais de uma vez. Entretanto, o fato dos comunistas terem conquistado essa liderança dos camponeses, mais a influência do exemplo e o escudo material da vizinha União Soviética, permitiu aos comunistas chineses a instauração de um poder socialista, ainda que fosse socialista somente em sua tendência, como ocorreu na própria Rússia Soviética em 1917.

O caráter popular dessa revolução e da República que criou foi proporcionado pelo seu caráter agrário, pelo fato de terem sido os camponeses a sua força motriz, os quais representavam a imensa maioria da sociedade agrária chinesa e pelo fato de que os camponeses em rebelião podiam e tinham que ignorar por muito tempo as divisões de classe nas cidades.

Inseparável de revolução chinesa é o conceito da Guerra Popular Revolucionária que se caracterizou pela prolongada confrontação armada entre unidades guerrilheiras camponesas e o Exército da repressão. Protegidas por bases liberadas, essas unidades guerrilheiras cresceram durante mais de 20 anos de luta, de regimento a brigadas, divisões e exércitos. A revolução vai do campo até as cidades que são cercadas e tomadas no final da guerra e cuja libertação marca o fim da guerra civil.

É duvidosa a interpretação que frequentemente se dá ao papel da burguesia nacional chinesa. Apesar de existirem as já citadas constatações de Mao sobre que a revolução foi feita sem e contra a burguesia, falam mais alto outras versões, igualmente de fonte chinesa que insistem em uma pretensa “colaboração da burguesia nacional”. Nestas versões se apoia Lin Biao, no célebre Viva o triunfo da guerra popular (que leva como subtítulo O significado internacional da teoria do Camarada Mao Tse-Tung sobre a guerra popular) quando recomenda aos povos do mundo capitalista subdesenvolvido a inclusão das burguesas nacionais na luta.

A falta de clareza sobre o papel da burguesia chinesa na Revolução é facilitada provavelmente pelo fato de que os comunistas chineses, durante a guerra contra o Japão, convidaram a burguesia chinesa para a formação de “frentes nacionais” (quando Mao Tse-Tung desenvolvia a teoria dos Quatro Meses). Mas mesmo essa frente surgida com o Kuomintang, que se deu e se manteve sob pressão soviética e norte-americana sobre Chiang Kai-Chek, não passava de um armistício mal disfarçado em uma guerra civil que recrudesceu quando o perigo japonês foi eliminado. Os comunistas nunca conseguiram a formação de um governo de coalizão para a coordenação comum do esforço de guerra.

A burguesia nacional chinesa participou do dispositivo de Chiang Kai-Chek no seu território, ou colaborou forçadamente com os japoneses nos territórios ocupados, da mesma maneira como colaboraram os burgueses continentais europeus com o nazismo. A facção da burguesia chinesa que chegou a colaborar com a Revolução e que continua colaborando, o fez depois da vitória comunista e o fez porque não tinha outra saída levando em conta os meios de coerção que o governo revolucionário dispunha. Isso é o que há de concreto sobre a “colaboração de burguesia nacional”, mas trata-se evidentemente de uma experiência dificilmente aplicável a nosso terreno na atual fase de luta.

É evidente também que nossos companheiros chineses conhecem esses fatos tão bem como nós. Se continuam sustentando a ficção da “colaboração da burguesia nacional” e recomendam a participação das burguesias nacionais na “revolução anti-imperialista e antifeudal” dos povos da Ásia, África e América Latina, isso tem causas e razões concretas.

Em primeiro lugar, generalizam a situação reinante na China pré-revolucionária a todo mundo capitalista subdesenvolvido e abstraem as condições sociais e históricas reinantes nas diversas regiões. Para eles trata-se evidente e genericamente de vencer as fases burguesas do processo revolucionário (Revoluções Nacional-Democráticas), que desembocará como na China (Nova Democracia) no socialismo, mas que quer ser tratado e iniciado a base de alianças de classe da revolução burguesa. O que, pelo menos no caso da América Latina, já não corresponde aos fatos.

Em segundo lugar, mesmo nos casos onde ainda se coloca na ordem do dia as revoluções burguesas, a participação de burguesias nacionais em revoluções se torna cada vez mais duvidosa. A burguesia hoje prefere o caminho das reformas e dos compromissos, que não põe em risco sua base social. Se, no entanto, a ficção contrária é sustentada deve-se provavelmente ao fato de que no caso chinês ajudou a neutralizar agressões internas e externas a parte revolucionária chinesa. Mas no caso chinês a ficção pôde ser proveitosa aos revolucionários em virtude de condições internacionais particulares, reinantes na ocasião. O armistício na guerra civil se enquadrou na aliança formada entre uma potência socialista, a União Soviética, e parte do campo imperialista, contra outra coalizão imperialista mais agressiva. Esta possibilidade de aproveitamento de contradições inter-imperialistas passou. A situação internacional agora é completamente diferente. Hoje, quando aparece a contradição entre sistemas sociais, isto é, entre socialismo e capitalismo, como a contradição fundamental da política mundial, quem se torna vítima da ficção do papel revolucionário das burguesias nacionais é o próprio movimento revolucionário, como demonstrou, entre outros, o caso da Indonésia.

A experiência chinesa representa um enriquecimento ao marxismo e às revoluções do nosso século precisamente pela capacidade que os comunistas chineses demonstraram em adaptarem as lutas de classe no seu país em situações concretas e novas. Seus ensinamentos são aproveitados e igualmente adaptados em todos as regiões em que predominem condições socialmente similares às da China pré-revolucionária, aonde o campesinato representa a força motriz da revolução por não ter surgido um proletariado industrial, bastante desenvolvido para exercer o papel de coveiro do capitalismo. Entretanto, querer generalizar o modelo chinês como válido para todo o “mundo colonial e semicolonial”, isto é, para o mundo capitalista subdesenvolvido, é atuar tão esquematicamente como atuaram os “conselheiros” de 1927, quando insistiram junto aos chineses de que sua revolução tinha que se comportar à maneira russa. O mundo subdesenvolvido não é tão homogêneo, e hoje muito menos que um quarto de século atrás, quando os exércitos de guerrilheiros entraram em Pequim.

Querer que a revolução no Brasil ou no Chile, se comporte conforme o modelo chinês é desconhecer toda uma realidade de desenvolvimento capitalista nos dois países e no Continente. Propagar nesses países a guerra popular revolucionária, a revolução do campo à cidade, é ignorar o papel que o proletariado já conquistou nas lutas de classe nos citados países e abrir as portas do movimento revolucionário ao populismo pequeno-burguês, que continua ignorando a importância da contradição trabalho assalariado-capital, que domina a vida de seus países e que proporciona a base imperialista do Continente.

Na sociedade capitalista – insistiu Lênin mais de uma vez – já não podemos falar de povo genericamente. O povo se dividiu em classes, que se comportam conforme os interesses sociais criados pela sociedade capitalista. Nosso problema mais urgente é dar consciência de classe ao proletariado e o único caminho para isso é não deixar nenhuma ilusão sobre os interesses de classes existentes na sociedade.

Lutamos contra uma sociedade capitalista

A POLÍTICA OPERÁRIA, desde a sua fundação (pode-se dizer que foi essa uma das razões de sua fundação), defendeu a tese da revolução socialista como única solução possível dos problemas sociais no Continente e especificamente no Brasil. Fomos os primeiros e por muito tempo os únicos no país que se deram ao trabalho de uma fundamentação teórica e que procuraram tirar as consequências práticas da situação. Ainda que, desde logo, devemos muito aos trabalhos pioneiros de companheiros de outros países latino-americanos, como o equatoriano Manuel Agustin Aguirre.

Tínhamos chegado a duas conclusões básicas:

a) que a América Latina não conheceu em sua história revoluções burguesas no sentido europeu ou asiático, onde a burguesia das cidades compactuava e até participava de uma luta popular contra uma velha ordem feudal.

A América Latina não conheceu o feudalismo como ordem social própria, apesar das tentativas espontâneas dos descobridores e conquistadores de transportar para o Novo Mundo os valores reinantes ainda em suas pátrias. O continente foi conquistado, povoado e desenvolvido (isto é, subdesenvolvido) em função do capitalismo mundial, no inicio principalmente pelo capitalismo mercantil, e formado pelas necessidades deste. Participou passivamente desse sistema capitalista desde o início, fonte de acumulação primitiva para as Metrópoles e reserva para futuras expansões do sistema. Quando se libertou do estado colonial direto, continuou como fornecedor de matérias primas, mercado e domínio das Metrópoles capitalistas até ser absorvido e integrado ao imperialismo, que englobou essas regiões em um sistema mundial sem necessitar destruir a decompor velhas relações feudais, como na Ásia por exemplo. A miséria latino-americana, tal como a conhecemos através de sua história, já é miséria da própria sociedade capitalista.

O problema da transformação social, que encontramos na América Latina, se desenrolou dentro do quadro de uma sociedade capitalista. Trata-se do deslocamento do peso da burguesia do campo para a cidade, fenômeno que foi acompanhado pela destruição dos chamados governos oligárquicos, como no Brasil em 1930.

A “revolução burguesa”, na medida em que se deu, não foi tanto uma luta contra o feudalismo, mas sim uma luta entre a burguesia industrial nascente contra a antiga estrutura mercantil e rural. A sociedade “pré-revolucionária” era formada por um capitalismo primitivo e primário, mas que apesar de tudo já era capitalismo na sua essência. A “revolução burguesa” no Brasil, acabou em compromissos com a bênção do imperialismo e é característico que o movimento “revolucionário” não chegou a tocar no campo. A facção rural da classe dominante ganhou tempo para se transformar em industrial e para adaptar o primitivo capitalismo rural às novas necessidades. Isso quer dizer que a revolução burguesa no Brasil (e em geral na América Latina), em termos de transformação social, não se deu como “negação” de uma sociedade pré-capitalista, mas sim “como transformação de quantidade em qualidade” a base da ordem social existente. Dentro do compromisso das classes dominantes, a hegemonia da burguesia da cidade foi assegurada pelo crescimento de seu poder econômico.

Foi Andre Gunder Frank quem analisou melhor e aprofundou mais os estudos do desenvolvimento capitalista na América Latina. Mostra concretamente, nos casos do Brasil e Chile, as origens e o crescimento das classes dominantes nativas e suas relações com as burguesias da Metrópole capitalista. A grande contribuição de Frank consistiu em demonstrar com base em investigações históricas e de análises da sociedade atual: a) que durante quatro séculos a função de nosso subdesenvolvimento dentro do capitalismo mundial como fornecedor de recursos para a acumulação nas metrópoles não mudou; b) porque não há perspectivas de libertação dos países subdesenvolvidos dentro de relações de produção capitalistas. A classe dominante do Continente não fez mais e não faz mais do que se adaptar às necessidades do capitalismo mundial, sem poder superar seu papel de dependente. Esta “continuidade na troca”, representa um fator fundamental na análise histórica e dialética. Mas no instante de realçar o fenômeno da “continuidade na troca”, Frank deixa em segundo lugar o significado do salto qualitativo, que representa a transformação das economias agrário-mercantis, de características coloniais, em capitalista industrial subdesenvolvidas dentro do contexto geral das lutas de classes em escala internacional. Entretanto, não se apercebeu da importância do surgimento do proletariado industrial o de sua intervenção no cenário da política latino-americana e isso explica porque apesar de ver claramente a incapacidade da burguesia de encabeçar ou participar de qualquer movimento revolucionário e de ver a solução socialista como a única saída para os problemas vitais do Continente considera, entretanto, essa luta sob o ângulo da “libertação nacional”.

Para a discussão em termos de uma estratégia revolucionária, tal como se está dando atualmente, é importante ter em mente o quanto essa situação contém de elementos que podem ser levados em conta. Tanto a revolução russa como a chinesa, em escala ainda maior, tiveram tarefas da revolução burguesa para cumprir. A mais importante era a da transformação do campo, que havia sido o baluarte do antigo regime. Em ambos os casos – na China novamente em grau muito maior – essa ingerência da revolução burguesa influiu ativamente para assegurar a vitória socialista.

A situação na América Latina já não é a mesma. Ainda que o campo conserve toda sua potencialidade revolucionária e a aliança entre operários e camponeses (e entre operários e trabalhadores do campo – isso varia de país para país) seja uma das bases fundamentais de qualquer estratégia revolucionária, existem características próprias que influem no transcurso da luta.

Em primeiro lugar a não existência de uma sociedade feudal no Continente faz com que tampouco haja, na maioria dos países, tradições de “guerras camponesas”, como se deram na história europeia e asiática. Uma exceção a essa regra está representada pelos países que antes da conquista já dispunham de uma ordem agrária tática, destruída pelos brancos. A rebelião das populações indígenas e mestiças não restabelece, evidentemente, a antiga ordem, mas torna-se um elemento da revolução burguesa, lhe dá o caráter popular o contribui ao restabelecimento do poder burguês-capitalista nas cidades, ainda que contra a vontade da burguesia. O grande exemplo é o México, mas a revolução boliviana de 1952, mesmo não contando com a participação ativa camponesa na fase de luta, trouxe resultados não menos radicais. A atual reforma do Peru, de caráter preventivo, mostra que a força da pressão indígena não se esgotou ainda. Nesses países, a transformação do estatuto agrário deu-se principalmente pela criação do minifúndio. Entretanto a burguesia peruana está procurando outro caminho, o da formação de cooperativas agro-capitalistas.

No resto da América Latina a transformação se dá principalmente pela chamada racionalização e modernização dos latifúndios, isto é, a inversão do capital em base de um cálculo industrial, na agricultura. Neste sentido, Cuba pré-revolucionária representa provavelmente o exemplo clássico no Continente. Isso significa a existência de um proletariado assalariado e de um semiproletariado (meeiros) no campo capaz de desenvolver formas de luta próprias, que se aproximam das do proletariado industrial.

Ambas as formas de transformação burguesa no campo não resolvem o problema agrário. A sociedade capitalista na América Latina não assegura a existência nem do pequeno camponês, nem do assalariado rural. E a luta no campo, que se agrava e se aprofunda a longo prazo já se desenrola no terreno da economia e sociedade capitalista, isto é, em um nível mais alto, como demonstrou Cuba.

Em termos gerais pode-se constatar que a revolução burguesa, tal como se deu na América Latina tinha duas tarefas essenciais a cumprir:

a. levar a burguesia urbana ao poder e isso com todas as consequências de adaptação do aparato estatal a sua necessidade;

b. a transformação do campo, cuja estrutura criada pelo capital mercantil-colonial já não corresponde às necessidades da expansão da burguesia industrial e urbana, integrada ao sistema imperialista.

E isso indica que as tarefas que a revolução burguesa deixou para nós já não têm o mesmo peso na revolução como tiveram na China e ainda na Rússia. Pesarão, na verdade, na construção do socialismo, quando sentimos a incapacidade da burguesia de criar uma sociedade industrial que nos facilite a expansão das forças produtivas em bases socialistas.

O papel do Imperialismo

O auge do processo de industrialização da América Latina deu-se em uma fase do imperialismo que foi caracterizado por August Thalheimer, em 1956, como sendo de “cooperação antagônica”, sob a égide dos Estados Unidos.

O resultado da Segunda Guerra Mundial trouxe para o mundo capitalista uma situação em que as contradições inter-imperialistas, que dominam as relações internacionais desde a fim do século passado, se tomaram secundárias em vista de uma contradição mais profunda e fundamental entre os dois sistemas sociais que dominam o globo.

A expansão do campo socialista e o predomínio material e tecnológico dos Estados Unidos no mundo capitalista fazem com que as potências imperialistas mais débeis se submetam às mais fortes, em uma pirâmide invertida, que é dominada pelos Estados Unidos, a superdotada potência imperialista e policial do sistema capitalista. Essa integração do mundo imperialista não elimina nem supera nenhum dos antagonismos existente no sistema, entre as potências imperialistas e entre elas e as não imperialistas, as quais são objeto da exploração imperialista. Sem dúvidas, evita que esses antagonismos cheguem às últimas consequências de confrontações armadas entre potências imperialistas, em virtude de uma cooperação que predomina contra a ameaça do socialismo e da revolução mundial.

A cooperação antagônica entre as potências imperialistas encontra sua prolongação lógica nas relações entre essas e as burguesias nacionais do mundo capitalista subdesenvolvido. Na América Latina e no Brasil, isso teve como consequências gerais:

  1. que ficou limitado o campo de manobras para as burguesias nativas, que periodicamente souberam explorar as contradições entre potências imperialistas (Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha etc.) para melhorar suas próprias posições;

  2. uma aceitação e crescente dependência do domínio do imperialismo norte-americano em uma associação econômica, na qual o capital imperialista participa na industrialização, ocupa posições de mando virtual e influi decisivamente no ritmo das atividades econômicas.

A “cooperação antagônica”, não libera o mundo capitalista de choques internos em todos os níveis, altos e baixos. Há momentos em que o antagonismo parece predominar, em que as burguesias nacionais ameaçam com uma política externa “independente”, se rebelam contra os esquemas do Fundo Monetário Internacional e nacionalizam empresas estrangeiras particularmente impopulares. O mesmo fenômeno se dá entre as próprias potências imperialistas nos momentos de relaxamento periódico da tensão internacional. Desaparece quando surge um novo recrudescimento da tensão internacional e, como na França em 1968, quando o regime capitalista está posto em cheque. A prazo prevalece a cooperação pela manutenção do sistema.

Na América Latina o fenômeno é particularmente presente nas cidades e no campo e nas crises econômicas agudas. Nos momentos em que os antagonismos vem à superfície, a oposição burguesa, entretanto, não visa o sistema em si e é limitada de antemão pelos interesses de autoconservação. A oposição é dirigida unicamente contra o sistema de distribuição da mais valia produzida pelo proletariado do Continente, da qual o imperialismo leva a parte de leão.

Quando consegue melhorar sua posição na sociedade com o imperialismo (o que nem sempre acontece na realidade), a burguesia nativa continua colaborando com o imperialismo em novos termos.

Que esse processo está vivo no Continente, demonstram os exemplos do Peru e da Bolívia de antes do golpe de Banzer. O Peru, na mesma semana em que expropriou a empresa de má fama “Internacional Petroleum Co”, outorgou outras três concessões de exploração petroleira a companhias norte-americanas “independentes” em condições “mais vantajosas” e não deixou de entregar novamente suas minas de cobre ao imperialismo norte-americano. Na Bolívia, aonde o processo parecia tomar rumos mais radicais, pouco antes do golpe de Banzer, houve um recesso que indicava que a burguesia boliviana não estava disposta a correr o risco de provocar um choque com o imperialismo que poderia pôr em perigo sua precária estabilidade interna. Tanto na Bolívia como no Peru, o regime oscilou entre ditadura militar aberta e tentativas de um populismo controlado. Seu instrumento de “cooperação antagônica” nas suas diversas fases é o Exército e este tem seu papel específico a desempenhar nos governos burgueses do Continente.

Exército e revolução burguesa

Na maioria dos países da América Latina o papel desempenhado pelo Exército está em estreita dependência do desdobramento da revolução burguesa. No Brasil, por exemplo, o processo de transformação das tropas coloniais em exércitos a serviço da nascente burguesia urbana começou cedo. É conhecido o papel de Deodoro da Fonseca na questão dos escravos fugidos e do Exército na instalação da República. Se a consciência burguesa dos oficiais se expressava através do positivismo isso refletia o estado de espírito da burguesia da época, que não nasceu sob signos revolucionários. Esse aburguesamento do corpo de oficiais foi facilitado pelo fato de que a classe média e a pequena-burguesia foram as fontes de recrutamento. E se por um lado, a carreira da hierarquia militar possibilitou um ascenso na escala social e abriu perspectivas da integração de uma minoria nas classes dominantes, por outro lado, o grosso dos oficiais trazia consigo a ideologia da classe média isolada do poder. O fenômeno persiste até hoje e os exércitos, desde sua formação no sentido moderno, desempenham o papel de tropas de choque da burguesia, em sua ascensão como em sua decadência.

A Revolução de 1930, no Brasil, se deu sob o signo do “tenentismo” e representou de certo modo o auge de um movimento que esses jovens oficiais iniciaram em 1922. Entretanto, mais importante que o signo em si foi o fato da revolução ter se dado praticamente sob a direção de uma parte do Exército, que não perdeu o controle do movimento em âmbito nacional e, onde o perdeu localmente o recuperou em seguida. Ainda onde houve armamento da população civil, isso se realizou sob a vigilância de unidades do Exército e sob o mando de oficiais. Mas os tenentes revolucionários não continuaram sendo tenentes para sempre e tampouco “revolucionários”. Acompanhando o desenvolvimento de sua classe de origem, deram lugar aos coronéis e generais que prepararam o realizaram o Golpe de Estado em 1964.

O Brasil, seguramente, não é o único exemplo nesse sentido. Na Bolívia o processo foi mais rápido e mais radical. Nesse país o Exército foi praticamente extinto na Revolução de 1952. Os oficiais foram mortos ou fugiram para o exterior, com exceção de uma pequena minoria que havia participado da tomada de La Paz. Os governos revolucionários, que no início representavam uma coalizão entre representantes da pequena-burguesia nacionalista e cujas bases foram proporcionadas por camponeses, que continuavam apoiando o regime. Esse exército criado “para proteger a revolução e a democracia” a princípio débil, começou a crescer e se fortalecer tornando-se um dos pilares do Estado e, finalmente, o próprio árbitro do Estado, quando a burguesia já não soube governar com os recursos populistas.

O Peru nunca conheceu uma revolução burguesa como a boliviana nem ainda nos moldes de brasileira de 1930. A lembrança dos governos oligárquicos está entretanto presente. A situação do campo peruano continua mais explosiva ainda do que na Bolívia, por exemplo, que teve uma válvula de escape em 1952, com a divisão das terras. Nestas circunstâncias, a atuação do Exército peruano tem um duplo caráter:

a. reformador, no sentido de adaptar a estrutura social do país às necessidades da burguesia urbana, e

b. preventivo, no sentido de eliminar o potencial revolucionário existente, principalmente no campo, para garantir o desenvolvimento da sociedade burguesa-capitalista.

O que os oficiais “revolucionários” peruanos e bolivianos tem em comum é sua ideologia nacionalista, que pode adquirir matizes os mais diversos, mas que se situa no terreno da defesa da sociedade burguesa. Isso, dito de passagem, é também característica de um grande setor da oficialidade brasileira, de mais baixa graduação (a “interdependência” de Castelo Branco nunca chegou a ser popular entre eles). Mas as consequências práticas desse nacionalismo latente dependem das necessidades objetivas de suas burguesias, às quais estão servindo, e o nível da “cooperação antagônica” que está prevalecendo. E neste sentido não há diferença entre os militares peruanos e bolivianos, a não ser que estes mataram a Che Guevara, e aqueles “só” mataram De La Puente. Em ambos países os guerrilheiros continuam presos e as forças armadas matarão de novo se a ordem social for ameaçada.

O que os regimes militares entendem por política nacionalista é que todas as decisões nacionais passem por suas mãos, que sejam eles que cuidem dos termos e das condições de cooperação com o imperialismo. Entendem que são eles mesmos os “donos em sua casa” sua própria polícia, que serão eles os que prendem e matam seus próprios operários revolucionários e guerrilheiros. Que são eles mesmos os que oprimem e governam a seus próprios povos, de acordo com a hierarquia de sua oficialidade.

O caminho mais longo nessa direção foi percorrido pelo Exército brasileiro. De “guardião das tradições democráticas” se tornou símbolo continental de gorilismo, fazendo sombra até a seus inspiradores argentinos. Hoje, o Exército brasileiro instalou uma máquina de terror em moldes fascistas, a qual se distingue de seus precursores italianos e alemães somente pelo fato de não haver conseguido uma mobilização de massas como sustentáculo de seu regime. A estrutura e a situação geral do país ainda não gerou o fenômeno fascismo. Somente permitiu copiar os métodos de repressão.

Entretanto, o que a ditadura militar brasileira tem em comum com o fascismo (e ainda com o bonapartismo populista) é que se trata de um governo indireto da burguesia. Ainda que haja deixado cair a máscara democrática e a ditadura está aberta e nua, foi necessário que ela fosse confiada ao Exército quando, no momento da crise, a própria burguesia se sentiu incapaz de exercê-la de maneira tradicional e velada. Lançou mão do instrumento que já havia servido no passado, no caminho de ascenso ao poder.

Nesse sentido, a ditadura militar no Brasil não passa de um capítulo a mais da “revolução burguesa”. Esperemos que seja o último.

Processo revolucionário e governo de transição

Dissemos que a revolução no Brasil será socialista por não restar alternativa para que o processo revolucionário se imponha no país.

Dissemos também que a constatação do caráter socialista da revolução não quer dizer que a situação já esteja madura para desencadeá-la e, implicitamente, colocar o problema da formação de um governa socialista.

Que significado tem isto na prática? Significa que não estamos interessados nas lutas que não tenham objetivos socialistas? Significa que não estamos interessados em derrubar a ditadura militar se esta derrubada não conduzir ao estabelecimento de um governo socialista no país? E, finalmente, significa que não podemos mais apoiar a nenhum governo se não for socialista?

Evidentemente que não. Uma tal conclusão seria contrária a toda a experiência da luta de classes e a todos os ensinamentos do marxismo revolucionário.

Em princípio apoiamos todas as lutas parciais, todo o movimento que ajude de fato a objetivos socialistas, quer dizer, nossa estratégia atenta a melhorar a situação do proletariado e de sua vanguarda na luta de classe, para colocá-la em posição favorável ao enfrentamento da revolução socialista. No caso concreto do Brasil, nas atuais circunstancias, não podemos partir da premissa que a derrubada da ditadura militar já leve automaticamente a uma solução socialista. Isso não corresponde às relações das forças sociais existentes no país. Além disso, a experiência geral ensina que o processo revolucionário é mais complexo.

Não seremos nós evidentemente, que engrossaremos o coro da oposição burguesa e pequeno-burguesa da “redemocratização”. Ao contrário, o combatemos. Em primeiro lugar porque não temos interesse em restabelecer o antigo “status quo”, que consolidará novamente o domínio da burguesia com uma folha de parreira “democrática”. Em segundo lugar porque, se houver uma derrocada do presente regime militar, o equilíbrio artificial da sociedade burguesa estremeceria tanto que qualquer nova experiência em termos de república democrática não passará de um intervalo para que a classe dominante prepare outra forma de ditadura aberta. Qualquer democracia real e duradoura que seguir a derrubada da ditadura militar, para impor-se, terá que ter um caráter revolucionário, isto é, terá que se apoiar nas classes revolucionárias do país – inclusive militarmente.

Em outras palavras, pode e deve surgir uma fase de transição em que a velha ordem burguesa esteja estremecida, mas o salto qualitativo para uma nova ordem não foi dado e não pode ser dado ainda de imediato. Como deve se comportar o proletariado e seus aliados frente ao poder que a burguesia já não está em condições de exercer, ainda que o momento da revolução socialista não esteja madura?

Isso coloca o problema do governo de transição.

Trata-se de uma das noções de estratégia de luta do marxismo revolucionário que se perdeu durante os anos do reformismo stalinista e que foi definida justamente em uma época em que Lênin e os comunistas procuraram elaborar, pela primeira vez, uma estratégia global da revolução mundial: nos quatro primeiros Congressos da III Internacional Comunista. A resolução adotada (no IV Congresso), prevê que o proletariado e os partidos comunistas, que não integram e nem apoiam os governos burgueses, podem se encontrar em situações nas quais se impõe a participação e a sustentação de governos não socialistas, sob a condição que esse ato leve adiante o processo revolucionário (como foi a perspectiva naquele momento) e evite a vitória de um movimento de direita que tenda a destruir o movimento operário (fascismo). Tal governo já não será burguês, será um “Governo Operário” nos países altamente industrializados, onde os partidos operários estiverem em condições de formá- lo, e será um “Governo Operário e Camponês” nos outros onde o proletariado não poderá governar sem o apoio efetivo do campo. Adverte a resolução do Congresso que não se trata ainda de um governo socialista nem da Ditadura do Proletariado e não deve ser confundido com eles.

Nós, no Brasil, levando em conta as particularidades do país, definimos esse Governo de Transição como o “Governo Revolucionário dos Trabalhadores” a ser formado por uma Frente dos Trabalhadores da Cidade e do Campo.

Levando em conta, igualmente, as particularidades do país, acreditamos que o surgimento desse governo não pode ser produto de um processo eleitoral e terá, para se impor, que resultar da intervenção ativa e violenta das massas trabalhadoras.

Acreditamos que tal governo não pode exercer seu poder por intermédio dos instrumentos “democráticos” tradicionais – Congresso, Judiciário, Polícia, Exército etc – os quais têm que ser neutralizados e eliminados. Tem que se apoiar diretamente nas organizações de massas dos trabalhadores e suas forças armadas e estimular seu crescimento.

Esta é a característica principal que distingue o Governo Revolucionário dos Trabalhadores dos governos “populares” e “democráticos” que sob rótulo radical procuram salvar e conservar o aparelho estatal burguês e governar com ele. Estes serão “governos de transição” da burguesia e para a burguesia e procurarão fazer com que a estrutura básica da sociedade burguesa passe ilesa pelas convulsões até que possa ser nova e abertamente consolidada.

Tomemos os exemplos já clássicos de governos de transição na América Latina: Bolívia e Cuba. O Governo Revolucionário de La Paz, em 1952, foi de transição. Mas o já mencionado predomínio da liderança pequeno-burguesa que, além disso, soube assegurar-se o apoio camponês e, por outro lado, a falta de perspectiva e clareza da representação do proletariado, que ficou isolado, fez com que os sucessivos governos se tornassem de “transição” para o restabelecimento da ordem burguesa.

Em Cuba, por outro lado, o Governo de Transição encontrou sem maiores dificuldades o caminho mais curto para a revolução socialista. Realizado a base da aliança entre os trabalhadores da cidade e do campo e apoiado nas forças armadas revolucionárias – do exército convencional não sobrou uma pedra em pé – a revolução marchou para frente apesar e graças a defecção da ala pequeno-burguesa do Movimento 26 de Julho.

A prática das lutas sociais na América Latina comprovou que o Governo de Transição, entretanto, não é um poder socialista, nem a Ditadura do Proletariado, assim como a democracia revolucionária não se identifica com a democracia socialista. Representa uma encruzilhada no caminho revolucionário. Se este governo se limita aos métodos de democracia burguesa, ou tenta restabelecê-la, prepara o caminho para a restauração do poder burguês. Para se impor e se manter deve lançar mão de métodos democráticos que sobrepassem e destruam a democracia burguesa, ainda não sendo, entretanto, socialista.

Pode-se perguntar por que o proletariado, se está em condições de estabelecer tal governo, não institui imediatamente a Ditadura do Proletariado e o socialismo. Mas, essa pergunta abstrai as relações de forças existentes em cada momento concreto do processo revolucionário. Abstrai a situação de seus aliados nos diversos momentos do processo e dos termos em que estão dando seu apoio à classe operária. Abstrai, finalmente, a situação do próprio proletariado, de sua atuação objetiva e de sua consciência nas diversas fases de luta.

O Governo de Transição se justifica e se impõe em um momento da luta de classe em que as massas já se encontram em rebelião contra a velha sociedade mas ainda não alcançaram as consequências práticas para enfrentar a construção de uma nova. Quando ainda não compreendem que para garantir a expropriação das propriedades imperialistas é necessário também expropriar, econômica e politicamente, a própria burguesia. Quando não compreendem ainda que para acabar a exploração e a miséria é necessário trocar as relações de produção com toda sua superestrutura. Isto é, se justifica e se impõe em um momento em que já há rebelião contra a ordem burguesa mas essa rebelião se dá ainda dentro do quadro ideológico burguês herdado da velha sociedade. Mas será a própria agudização das contradições sociais durante o Governo de Transição e o papel impulsor que a vanguarda revolucionária desempenhará em seu meio, o melhor e mais rápido meio de elevar a consciência das massas trabalhadoras ao nível necessário para uma revolução socialista.

Está também implícito aqui que o Governo de Transição não representa uma solução social a longo prazo. Seu tempo de vida está limitado, de um modo natural. Nenhuma classe operária pode governar por muito tempo com base em uma estrutura social burguesa capitalista. Ou dá o passo decisivo para a Ditadura do Proletariado ou será vencida pelas leis econômicas sociais capitalistas e terá que ceder o lugar novamente às forças burguesas aliadas ao imperialismo.

O papel que o Governo de Transição desempenhará (será importante porque decidirá se situações potencialmente revolucionárias desembocarão em transformações sociais ou serão contornadas pela classe dominante) estará na dependência direta da possibilidade desse governo mobilizar e se apoiar nas massas trabalhadoras e da situação da classe que teoricamente representa a força matriz e hegemônica do próprio processo revolucionário: o proletariado.

E isso quer dizer que todo processo revolucionário depende do nível e dos rumos que as atividades das vanguardas estão tomando atualmente no país. Para que desempenhemos o papel de vanguarda hoje não basta mais as profissões de fé sobre objetivos socialistas. Ao fim e ao cabo todo mundo “quer” o socialismo. Ser vanguarda marxista-leninista no Brasil é saber tirar as consequências práticas da caracterização socialista do processo revolucionário. Significa, pelo menos, contribuir na prática parta a maturação dos fatores que levam à revolução socialista.

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