Inconsciente

Por Ian Parker e David Pavón-Cuéllar. Traduzido por Reginaldo Gomes

Tudo o que o “inconsciente” denota em Freud, e mais tarde conota em séries expansivas de investigações à medida que o termo escapa ao controle das instituições psicanalíticas, é irreconhecível em relação a representação clássica do sujeito como ser humano racional governado pela consciência. Essa representação humanista e racionalista sofre um questionamento fundamental, durante os séculos XIX e XX, no qual a concepção freudiana do inconsciente intervém junto com outras operações autocríticas e reflexivas da modernidade, como a análise econômica do trabalho alienado e alguns experimentos artísticas vanguardistas, o que justifica largamente que nos interessemos pela origem histórica, o fundamento cultural e a “produção social” do inconsciente


O presente texto é um verbete para o Diccionario del Pensamiento Alternativo II.

Em sentido amplo, “o inconsciente” denota uma esfera psíquica desprovida de consciência. Podemos incluir nessa esfera, dependendo de qual seja a nossa perspectiva, operações mentais irrefletidas, ações involuntárias ou imparáveis, experiências aparentemente esquecidas ou despercebidas, afetos furtivos, desejos insuspeitos, estruturas latentes, conteúdos implícitos, mensagens subliminares etc.

As primeiras concepções do inconsciente reconhecem uma incapacidade cognitiva que impediria tomar consciência de quatro aspectos do consciente: suas motivações ou causas imanentes (Espinosa, Nietzsche e Eduard von Hartmann), seus elementos constitutivos (Leibniz e Kant), seu horizonte psíquico (Janet) e seu fundamento físico exterior (Schelling) ou interior (Ribot). Distinguindo-se radicalmente dessas concepções filosóficas e psicológicas, Freud introduz uma concepção psicanalítica em que o inconsciente não é mais explicado por uma incapacidade cognitiva inata ou natural, mas por uma capacidade repressiva cultural e adquirida. O termo “inconsciente” designa então positiva e dinamicamente o reprimido, o que é recalcado no quadro de um conflito psíquico, e não apenas negativa e estaticamente o que é desprovido de consciência. No mesmo sentido, o inconsciente de Freud não denota o ausente da consciência e deduzido pela especulação teórica, mas o presente e verificável, através da prática psicanalítica, em sintomas, chistes, lapsus linguae e calami, sonhos e demais indícios de algo que não responde ao que se pode, deve ou se quer conscientemente sentir, pensar ou fazer.

Tudo o que o “inconsciente” denota em Freud, e mais tarde conota em séries expansivas de investigações à medida que o termo escapa ao controle das instituições psicanalíticas, é irreconhecível em relação a representação clássica do sujeito como ser humano racional governado pela consciência. Essa representação humanista e racionalista sofre um questionamento fundamental, durante os séculos XIX e XX, no qual a concepção freudiana do inconsciente intervém junto com outras operações autocríticas e reflexivas da modernidade, como a análise econômica do trabalho alienado e alguns experimentos artísticas vanguardistas, o que justifica largamente que nos interessemos pela origem histórica, o fundamento cultural e a “produção social” do inconsciente (Mario Erdheim).

No vértice do movimento impetuoso de crise e inflexão da modernidade sobre si mesma, a discussão teórica sobre o inconsciente tem girado principalmente em torno do que poderia estorvar, retardar ou reverter o movimento, como a redução do inconsciente aos âmbitos místico-esotérico (Carl Gustav Jung e a psicologia transpessoal), instintivo e espiritual (Viktor Frankl e sua logoterapia), ou pulsional-desadaptativo e defensivo-adaptativo (Heinz Hartmann e a psicologia do ego). Nesses e em outros casos, com a circulação cultural da psicanálise, o inconsciente freudiano foi vítima de seu próprio sucesso, desaparecendo atrás das suas mais banais reinterpretações. Um exemplo claro é o do subconsciente suscetível de assimilação à consciência. Contra essa negação do caráter inelutável do inconsciente, há posições mais pessimistas, como as de Melanie Klein e Jacques Lacan, nas quais se preserva a concepção freudiana do inconsciente como domínio do ser que é Outro que o sujeito e que estará sempre fora de seu alcance.

Embora marque um “corte epistemológico”, a concepção freudiana do “inconsciente” ainda carrega consigo, como observou Louis Althusser, a herança de uma divisão consciente/inconsciente que pode servir para materializar os dois termos da equação. O perigo aqui é que o “inconsciente” seja concebido como outra versão da consciência, outra psique, outra mente que ameaçaria substituir a mente racional. Essa concepção, que estritamente falando não é psicanalítica, funciona como um motivo ideológico nas imagens da “mente grupal” que regeria o perigoso funcionamento das multidões. Falar de “inconsciente” pode também evocar a imagem do sujeito como um receptáculo de fantasias que o médico (ou analista cultural) deveriam adivinhar. Essa representação tem sido a marca distintiva das teorias de Klein e Wilfred Bion, mas também do argentino Enrique Pichon-Rivière, com suas investigações sobre os vínculos internos e a estrutura social interiorizada como fantasia inconsciente. À contracorrente, Lacan insistiu que o mais “íntimo” do sujeito não está “dentro” dele, mas que é o “êxtimo” em relação a ele. É assim “fora” de nós que nos encontramos com o “inconsciente”, e esta exterioridade do que nos é mais importante orienta o trabalho clínico, a teoria psicanalítica e depois também a teoria cultural.

Para a teoria da cultura centrada no inconsciente, Althusser e Lacan são pontos de referência. É a partir deles que o estadunidense Fredric Jameson explora o “inconsciente político” em seu diagnóstico do pós-modernismo como lógica cultural do capitalismo tardio que transcende a consciência dos indivíduos. Esse sentido amplo do inconsciente no debate político foi também retomado recentemente, na Europa e em dívida mais explícita com Lacan, pelos trabalhos de Slavoj Žižek.

Na teoria cultural, se destaca igualmente a tradição paralela da Escola de Frankfurt, na qual se realiza o primeiro grande intento de conectar o inconsciente freudiano com uma crítica social. Infelizmente, “a crítica” optou com frequência pela “psicologização”, e acabou espelhando ao invés de desafiar a cultura burguesa, como pode ser visto nas investigações sobre o “autoritarismo” que desembocaram em simples diagnósticos de quem sofria de “preconceito”. Esse lamentável destino da Escola de Frankfurt, assim como a generalizada conivência da psicanálise com a psicologia como ciência normativa da mente individual sob o capitalismo, fizera alguns analistas do “inconsciente” como “afeto” decidirem aproximar-se de Gilles Deleuze. Nesse ponto, entretanto, as conotações do termo “inconsciente” se tornam demasiado problemáticas, e há até quem proponha apagá-la do vocabulário teórico crítico.


Fontes:

L. Althusser, Écrits sur la psychanalyse, París, STOCK/IMEC, 1993. M. Erdheim, Producción social de inconsciencia, México, Siglo XXI, 2003. S. Freud, “Lo inconsciente”, en Obras completas, volumen XIV, Buenos Aires, Amorrortu, 1996. F. Jameson, The Political Unconscious, Londres, Methuen, 1981. J. Lacan, Le séminaire XVI, D’un Autre à l’autre, París, Seuil, 2006. E. Pichon-Rivière, Teoría del vínculo, Buenos Aires, 2006. S. Žižek, The Sublime Object of Ideology, Londres, Verso.

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