Acostume-se com o vírus (e com as queimadas, e…)? Não, obrigado!

Por Slavoj Žižek, via Crisis and Critique, traduzido por Rodolfo Rodrigues

“Se não fizermos nada, nosso mundo logo se tornará irreconhecível para seus habitantes. E o que estamos fazendo é quase nada – todos os consensos em falas a respeito das medidas contra o aquecimento global apenas mascaram esse nada.”


As últimas palavras de Big Boss ao morrer, do lendário jogo de Hideo Kojima – Metal Gear Solid 4: Guns of the Patriots –, são hoje mais relevantes do que nunca: “Não é sobre mudar o mundo. É sobre fazer nosso melhor para deixar o mundo do jeito que está.” Elas são relevantes, porém com o acréscimo de uma nova torção: com correntes de ar, florestas queimando e o vírus destruindo nossas vidas diariamente, com a pobreza como resultado dos novos ricos, temos que mudar o mundo de forma radical se quisermos ter ao menos uma chance de deixá-lo assim como está. Se não fizermos nada, nosso mundo logo se tornará irreconhecível para seus habitantes. E o que estamos fazendo é quase nada – todos os consensos em falas a respeito das medidas contra o aquecimento global apenas mascaram esse nada: “Na última década, de acordo com um novo relatório devastador da ONU sobre a natureza, o mundo falhou em cumprir uma única meta para conter a destruição da fauna e dos ecossistemas que sustentam a vida.” Para citar apenas um exemplo óbvio analisado por Mike Davis: as queimadas destruindo a vegetação no oeste dos EUA:

No final da década de 1940, as ruínas de Berlim tornaram-se um laboratório onde cientistas naturais estudaram a sucessão de plantas após um período de três anos de incessante bombardeio. A expectativa era de que a vegetação original da região – bosques de carvalho e seus arbustos – iriam logo se reestabelecer espontaneamente. Para o horror dos cientistas, esse não foi o caso. Em vez disso, plantas exóticas, a maioria alienígena à Alemanha, se estabeleceram como as novas dominantes. A persistência dessa vegetação de zona-morta e o fracasso das plantas dos bosques da Pomerânia de se restabelecerem iniciou um debate sobre ‘Natureza II”. A argumentação era de que o calor extremo dos incêndios e a pulverização das estruturas de tijolos criaram um novo tipo de solo que induziu a colonização de plantas como a ‘árvore do céu’ (Ailanthus), que evoluiu nos mantos de gelo do Pleistoceno. A insurgência de uma guerra nuclear total, eles advertiram, poderia reproduzir essas condições!!” em grande escala. Logo após as Queimadas do Sábado Negro, em Victoria, no começo de 2009, cientistas australianos calcularam que a energia liberada fora equivalente a explosão de 1.500 bombas do tamanho da de Hiroshima. As atuais tempestades de fogo nos estados do Pacífico são muito maiores, e seu poder destrutivo deve ser comparado à megatonagem de centenas de bombas de hidrogênio. Uma natureza nova e profundamente sinistra está rapidamente emergindo dos rastros do fogo, as custas de paisagens que outrora considerávamos sagradas. Nossa imaginação mal consegue acompanhar a velocidade ou a escala da catástrofe.

Nós (“a humanidade”, ou seja: nosso modo de produção e comércio) não estamos apenas “destruindo a natureza”, estamos colocando em movimento o advento de uma nova natureza na qual não haverá lugar para nós. E não seria também a atual pandemia um caso exemplar dessa “nova e profundamente sinistra natureza?” Não devemos então nos preocupar muito com a sobrevivência da natureza, de formas naturais de vida na Terra – a natureza sobreviverá, apenas modificada para além de NOSSO reconhecimento. Portanto, levantemos a questão leninista: que fazer? Existem quatro saídas falsas, quatro coisas que devemos evitar tal qual um vampiro evita o alho.

Primeiro, nós NÃO devemos usar o fato de que estamos lidando com uma combinação de múltiplas crises como motivo para tratar essas crises uma por uma e engajar em intervenções particulares, até mesmo uma em detrimento das outras, como aqueles que afirmam que, em nossa luta contra a epidemia, temos o direito de negligenciar um pouco as crises ecológicas, ou que a manutenção da lei e da ordem é mais importante do que conter a pandemia. Os protestos do Black Lives Matter reagem não apenas à brutalidade policial, mas também contra as injustiças econômicas; a vigente pandemia está enraizada em nossa relação distorcida com o ambiente natural; etc. Portanto, quando um oficial da saúde de Trump disse “biologia /é/ independente de política” (no intuito de afirmar que o governo dos EUA não é responsável pelas 200.000 mortes na pandemia), ele com certeza estava errado.

Em segundo lugar, nós NÃO devemos concluir que, uma vez que vivemos em tempos sombrios e enfrentamos muitas crises de dimensões globais, algum tipo de progresso moral é necessário. Os que estão no poder sempre adoram tais apelos para uma nova ética como meio de sair da crise, eles amam conceber a crise como uma crise ética. Quando o colapso financeiro de 2008 explodiu, figuras públicas como o Papa nos bombardearam com lições para combater a cultura do excesso, da ganância e do consumo – esse hediondo espetáculo de moralização barata foi sem dúvida uma operação ideológica: a compulsão (a expandir) inscrita no sistema em si é tratada como um pecado personalizado, uma tendência psicológica privada, ou, como um dos teólogos próximos ao Papa colocou: “A crise atual não é uma crise do capitalismo, mas uma crise da moralidade”. Hoje, novamente, vozes similares são ouvidas: intervenções econômicas e políticas específicas não são suficientes, apenas uma nova ética global pode nos mostrar o caminho…

A terceira saída equivocada é a falsa sabedoria ouvida frequentemente em nossa mídia: não há saída fácil, infecções virais e aquecimento global são fatos da vida e nós devemos simplesmente aprender a viver com eles, o que, em última instância, significa se acostumar com a “natureza nova e profundamente sinistra”. Essa sabedoria é falsa, visto que infecções, aquecimento global, etc., não são simples fatos da vida, eles surgem a partir de nossa interação com a natureza e com nós mesmos – apenas lembrem-se de como a poluição do ar mudou durante o lockdown em março e abril.

Quarta saída falsa. O que seria necessário hoje é uma percepção clara de todas as dimensões da crise em que estamos, e uma mudança social múltipla e radical coordenada por tal percepção. Ação vem depois do pensamento, ela deve seguir o pensamento. Mas nosso inimigo também pensa, ainda que em sua própria maneira – a relação que eles veem entre diferentes crises é bem exemplificada pela perigosa metáfora de curtos-circuitos; vejamos, em paralelo às “zonas-livres de covid”, os conservadores poloneses falam sobre “zonas-livres de LGBT” (ou “zonas-livres de ideologia LBGT”) que já foram declaradas em um terço do país. Similarmente, a pandemia é associada a misturas multiculturais, para que uma forte identidade nacional seja vista como forma de defesa.

Então, qual a maneira correta de agir? Não devemos esperar por um grande ato global, devemos nos engajar totalmente em nossas lutas particulares e coordená-las a outras lutas: para enfrentar o aquecimento global e a poluição, precisamos de Assanges, para enfrentar a pandemia, precisamos de uma forma de saúde global, para lutar contra o racismo e o sexismo, precisamos de mudanças econômicas. E sobre a forma dessa luta?

Em seu Lógicas dos mundos, Alain Badiou elaborou a Ideia de política da justiça revolucionária em ação desde os antigos “legistas” chineses, passando pelos Jacobinos, até Lênin e Mao – ela consiste em quatro momentos: voluntarismo (a crença de que se pode “mover montanhas” ignorando leis e obstáculos “objetivos”), terror (um ímpeto implacável para esmagar o inimigo), justiça igualitária (sua rígida imposição imediata, sem concessões para as “circunstâncias complexas” que supostamente obrigam que procedamos gradualmente), e por último, mas não menos importante, confiança nas pessoas.

A atual pandemia não nos obrigou necessariamente a inventar uma nova versão desses quatro elementos? Voluntarismo: até mesmo em países onde forças conservadoras ocupam o poder, decisões que claramente violam leis “objetivas” do mercado estão sendo tomadas, como o estado intervindo diretamente na indústria, distribuindo bilhões para prevenir a fome ou para medidas de saúde. Terror: liberais estão certos em seu medo, os estados não apenas são forçados a ordenar novos modelos de controle social e regulação, como também as pessoas são solicitadas a denunciar para autoridades médicas os membros da família e vizinhos que estejam escondendo sua infecção. Justiça igualitária: é comumente aceito (apesar de que é e será violado na realidade social) que a eventual vacina deveria ser aceita por todos, e que nenhuma parte da população mundial deve ser sacrificada ao vírus – a cura ou é global ou é ineficiente. Confiança nas pessoas: nós todos sabemos que a maioria das medidas contra a pandemia apenas funcionam caso as pessoas sigam as recomendações – nesse ponto, nenhum controle de estado é capaz de fazer o trabalho.


Bibliografia:

Badiou, Alain 2006, Logiques des mondes, Paris: Editions du Seuil

Davis, Mike 2020, California’s Apocalyptic ‘Second Nature’, September 11.

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