Sobre os silêncios de Carlos Nelson Coutinho: uma defesa de Althusser

Por João Pedro Luques, mestre em sociologia.

Ao lado dos trabalhos de Ruy Fausto, Giannotti, entre outros, a crítica de Carlos Nelson Coutinho à Louis Althusser, publicada pela primeira vez em 1972 em sua obra O Estruturalismo e a Miséria da Razão é uma das principais críticas ao filósofo francês já feitas em solo brasileiro, de tal forma que, não raro, críticas contemporâneas a Althusser não são mais do que argumentos de Carlos Nelson requentados. Por isso, achamos justificável escrever uma crítica à essa parte específica dessa obra que já atinge quase seus 50 anos.


De maneira sintética, consideramos que o maior equívoco de Carlos Nelson não são seus comentários, mas sim seus silêncios, de tal forma que ele realiza toda sua crítica sem especificar de maneira satisfatória nem a conjuntura política (XX congresso do PCUS, Conflito Sino-Soviético) e nem a conjuntura teórica (especialmente sua relação com epistemologia de Bachelard) nas quais Althusser se encontrava, resumindo tudo sob o rótulo de um “estruturalismo” que, para ele, nada mais era do que a “[…] expressão ideológica de um mundo aparentemente ‘seguro’ e não contraditório […] (COUTINHO, 2010, p. 10). É sobre esses silêncios que incidiremos nossa crítica.

Isso dito, um último esclarecimento antes de iniciarmos: nosso objetivo aqui não é blindar Althusser de todas as críticas, mas sim descartar as críticas falsas, visando desbloquear o caminho àquelas que de fato propiciam o desenvolvimento do marxismo, de tal forma, que nosso alvo político não é crítica de Carlos Nelson em si, mas sim sua persistência, seus efeitos político-teóricos que duram até os dias atuais, de tal maneira que nos damos o direito de fazer recurso a textos de Althusser publicados após a publicação de Estruturalismo e Miséria da Razão, pois o que pretendemos aqui não é fazer uma crítica da obra em seu contexto, e sim combater os argumentos que ecoam até os dias de hoje.

Do silêncio da política.

 Comecemos nossa crítica ao grande autor de Existencialismo e Miséria da Razão pelo seu silêncio sobre a conjuntura política na qual Althusser escreve. Silêncio esse que não o inibe de rechear sua crítica com diversos comentários políticos. Lembremos que, para Carlos Nelson, Althusser não só representava “[…] uma posição conservadora ou de direita [no marxismo]” (COUTINHO, 2010, p. 184), como também, para ele, existia uma possibilidade “puramente teórica” de “uma conversão de Althusser no ideólogo do neoestalinismo” (COUTINHO, 2010, p. 231).

 Frente a tais fortes comentários, o leitor pode se perguntar como Carlos Nelson embasa essas críticas. E isso ele faz de algumas maneiras, dentre as quais destacamos três: 1) nos lembrando do fato de que alguns dos próprios alunos de Althusser, como, por exemplo Jacques Rancière, teriam se afastado de seu antigo mestre acusando-o pelo seu direitismo; 2) destacando algumas posições políticas (ou falta delas) do francês, como o caso de seu “prudente silêncio” sobre a invasão da Tchecoslováquia e; 3) baseando-se nas posições teóricas de Althusser: “Recusando o historicismo, o papel criador da práxis, o humanismo como concepção de mundo, o althusserianismo contribui – consciente ou inconscientemente – para reforçar uma concepção burocrática e conservadora do socialismo” (COUTINHO, 2010, p. 184).

 Assim, poderíamos aqui responder que esses alunos se afastaram de Althusser para integrar organizações maoístas pró-revolução cultural (A Gauche Proletarienne, no caso de Rancière), e que, se estar à direita dessas organizações é sinônimo de uma posição conservadora dentro do marxismo, pouca gente escapa à essa caracterização. Talvez nem o próprio Carlos Nelson. Poderíamos também responder que esse suposto “silêncio” de Althusser sobre a invasão da Tchecoslováquia não é verdade, que no seu texto Resposta à John Lewis, por exemplo, ele declara explicitamente que o que houve na Tchecoslováquia fora um movimento “[…] onde as massa checas exprimiram, mesmo se de forma às vezes confusa, seus protestos e aspirações nacionais e de classe” (ALTHUSSER, 1973, p. 67, tradução nossa). Mas, responder a essas questões específicas nos parece ser uma bela maneira de tirar a atenção do principal: O completo silêncio do autor sobre o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), o conflito sino-soviético, etc. Ou seja, a tecedura de comentários políticos sem a devida reconstrução da conjuntura em questão.  Relembramos um pouco essa conjuntura…

25 de fevereiro de 1956. Fora nesta data que Nikita Kruschev, durante o XX congresso do PCUS, proclamou seu famoso discurso denunciando os crimes de Stalin. Visando favorecer seu grupo na disputa de poder interna do PCUS, o discurso de Kruschev acabou por, num passe de mágica, transformar a imagem de Stalin de “pai dos povos”, considerado pelo filósofo Alexander Koijève como “[…] encarnação do espírito hegeliano do mundo […] [que] havia sido chamado para unificar e dirigir a humanidade […] (LOSURDO, p. 20, tradução nossa) em um ser desprezível, covarde e ignorante. Um bruto truculento que, supostamente, “[…] preparava suas manobras [militares] num mapa múndi” (LOSURDO, p. 28, tradução nossa). Ambas avaliações, tanto a exaltação acrítica anterior como a posteiror demonização igualmente acrítica, um tanto distantes do marxismo. Enfim, a partir do XX congresso, Stalin passará a ser o indivíduo responsável por todos os erros da União Soviética. Os problemas, erros e crimes do país não eram mais explicados pela luta de classes, pela superestrutura política, etc., tudo era explicado pelo “Culto à personalidade de Stalin”.

É frente e esse contexto que Althusser reage em sua teoria. A introdução de um conceito estranho ao marxismo (“culto à personalidade), de um conceito que além de bloquear uma análise marxista da formação social Soviética, abria as porteiras para uma penetração idealista de direita no campo do marxismo: o humanismo teórico. Nas suas próprias palavras:

“Ao invés de relacionar as ‘violações da legalidade socialista’ 1) com o Estado, mais o Partido, e 2) com as relações de classe e as lutas de classe, o XX Congresso às relaciona com … ‘o culto à personalidade’, isso é, com um conceito que, como eu já disse em Por Marx, fora introduzido na teoria marxista e, como pode-se dizer agora, é perfeitamente ‘encontrável’ em outro lugar: na filosofia e na ideologia psico-sociologista burguesas.

Quando se coloca assim, oficialmente, os filósofos comunistas e outros ‘intelectuais’ comunistas sob a órbita da ideologia e da filosofia burguesas […] não se pode estranhar que esses mesmos filósofos e intelectuais comunistas se engajem na via dessa filosofia burguesa, pois ela estava escancarada diante deles! Não se pode estranhar que eles fabriquem sua pequena filosofia marxista burguesa dos Direitos do Homem exaltando o Homem e seus Direitos, onde o primeiro deles é a liberdade e seu inverso é a alienação. Naturalmente, nos apoiamos aqui sobre os trabalhos de juventude de Marx […] e avançamos em direção ao humanismo “ (ALTHUSSER, 1973, p. 66-67, tradução nossa).

Assim, colocado em seu contexto, a crítica Althusseriana revela o que de fato é, não uma negação abstrata do “humanismo como concepção de mundo”, mas a rejeição à uma infiltração burguesa que interpreta a realidade concreta não pela luta de classes, pelas contradições entre forças produtivas e relações de produção etc., mas sim pela “alienação do homem de suas potencialidades”, por uma filosofia feuerbachiana requentada que deixa claros ecos em Carlos Nelson: “[…] o humanismo marxista, por exemplo, ao projetar o fim da alienação, propõe uma práxis capaz de reapropriar para o homem a totalidade da objetividade social, ou seja, capaz de revelar essa objetividade – que, à práxis manipuladora aparece como um conjunto de ‘coisas’ exteriores ao homem – como o produto da ação coletiva dos próprios homens” (COUTINHO, 2010, p. 225).

Além disso, Carlos Nelson não suprime apenas o fato do XX congresso, mas também a oposição prática e teórica a ele feita por parte da linha chinesa, oposição, que como bem nos lembra Stuart Schram (1971) se manifesta como uma resposta imediata ao congresso:

“Acima de tudo, a maneira como a ‘desestalinização’ fora realizada não podia deixar de irritar e alarmar os líderes chineses. A razões para sua desaprovação são as mesmas que eles alegam ter exposto aos seus camaradas soviéticos na época: ‘total falta de uma análise de todos os aspectos de Stalin’; ‘falta de autocrítica’; e ‘falta de consulta prévia com os partidos irmãos’” (p. 285, tradução nossa).”

E a supressão não se dá apenas à crítica chinesa ao XX congresso, mas sim à toda influência da experiência da Revolução Chinesa e de Mao Tse-Tung sobre a conjuntura na qual se encontrava Althusser. Supressão essa que é grave pois impede de localizar politicamente a posição althusseriana frente à URSS, afinal, lembremos aqui Althusser avaliava a experiência chinesa como “a única ‘crítica’ histórica (de esquerda) ao essencial do ‘desvio stalinista’” (1973, p. 97, tradução nossa), mesmo que fosse “uma crítica silenciosa, mas em atos” (1973, p. 97, tradução nossa). Ou seja, apagando-se este contexto, perde-se de vista que, ao invés de ser uma expressão do burocratismo no seio do marxismo, como quer Carlos Nelson, o projeto althusseriano representa, na verdade, a tentativa de realizar uma crítica marxista (“de esquerda”, sem conceitos importados do liberalismo) às experiências do socialismo real.

 E para não dizer que Carlos Nelson suprime completamente Mao Tse-Tung, ele faz uma menção sim. Uma vez, como uma espécie de ironia, em uma nota de rodapé fortemente eurocêntrica:

A extraordinária obra do Lukács da maturidade, por exemplo, é descartada em duas ou três linhas como expressão de um ‘hegelianismo envergonhado’ (L. Althusser, Pour Marx. Paris, Maspero, 1966, p. 144). Já os trabalhos ‘teóricos’ de Mao Tsé-Tung, ao contrário, são frequentemente elogiados, apresentados como ‘modelos’ de aplicação da dialética (ibid., p. 184, 204, 212).

E dizemos aqui eurocêntrica não por ele preferir Lukács (para nós, um dos maiores filósofos do marxismo) a Mao, mas por criticar a recusa descuidada de Althusser ao filósofo Húngaro em duas ou três linhas para, na próxima frase, literalmente recusar Mao Tse-Tung nas exatas mesmas duas ou três linhas.

Enfim, acusar Althusser de conservador dentro do marxismo, associá-lo à expressão de uma tendência de direita dentro do marxismo só é possível aos que se submetem a pagar o preço de abstrair o contexto  político.

 Do silêncio da teoria.

E se do silêncio da conjuntura política emerge o rótulo de conservador, do silêncio da conjuntura teórica emerge o rótulo de neopositivista: “[…] [Althusser] substitui a autêntica epistemologia materialista por uma versão up to date da epistemologia formalista do neopositivismo” (COUTINHO, 2010, p. 184). Ou ainda: “Como os neopositivistas em seu tempo, Althusser acredita que a filosofia não tem objeto (ou seja, não diz nada sobre o real, não é uma ontologia), consistindo apenas em uma ‘prática’” (COUTINHO, 2010, p. 192).

Para nós, chamar a corrente epistemológica de Althusser de neopositivismo só pode significar uma ignorância completa da mesma. Afinal, como bem nos lembra Dominique Lecourt (1975), a tradição epistemológica à qual se filia Althusser, a corrente fundada por Gaston Bachelard, se caracteriza exatamente pelo seu não-positivismo. Mais especificamente, pela sua recusa à premissa clássica da epistemologia positivista de que a função verdadeira da filosofia da ciência seria estudar todas as ciências para então criar uma “ciência da ciência”

Seja se a epistemologia é convertida em uma espécie de encruzilhada na qual uma porção de disciplinas heteróclitas com pretensões científicas se reúnem para juntar seus conceitos díspares para formar uma teoria da ciência, seja se uma determinada ciência é eleita responsável por prover essas categorias, o pressuposto filosófico do empreendimento é o mesmo, e é esse pressuposto que me leva a caracterizar esses empreendimentos como ‘positivistas’. De fato, esse pressuposto comum não podia encontrar melhor expressão do que no slogan: ‘uma ciência da ciência é possível” (LECOURT, 1975, p. 121, tradução nossa).

Em suma, a crítica da corrente bachelardiana vai justamente contra a idéia de uma ciência positivista, uma ciência que suprime a especificidade de cada prática científica, que suprime, assim, a própria história específica de cada ciência. Ou seja, para essa corrente, a função da filosofia da ciência não é ser uma teoria geral que legisla sobre as ciências, mas sim desbloquear o caminho para o desenvolvimento próprio de cada ciência. Para nós, chamar tal corrente de neopositivista só faz sentido se o termo  “positivismo” não servir para indicar uma tradição teórica, mas sim, como é bastante comum na academia, como uma espécie de ofensa para indicar “tudo aquilo que eu discordo”.

Mas, isso dito, devemos acrescentar que, em algumas formulações em Por Marx e em Ler o Capital Althusser tem sim algumas concepções que tentam aproximar a filosofia marxista dessa “ciência das ciências”:

Na verdade, em um novo paradoxo que parece não ter atraído a devida atenção, o efeito da importação de categorias epistemológicas não-positivistas fora de reativar em uma forma nova e inesperada a miragem positivista de uma ‘ciência da ciência’ batizada com o nome de Teoria (LECOURT, 1971, p. 127, tradução nossa).

“Efeito” esse que fora logo em seguida brutalmente retificado por Althusser, por exemplo, em seu texto chamado Lenin e a Filosofia (texto lido e citado por Carlos Nelson, de tal maneira que, ele conhecia essa retificação das primeiras posições Althusserianas de aspecto positivista): “Filosofia representa a política no domínio da teoria, ou, para ser mais preciso: com as ciências – e, vice versa, filosofia representa cientificidade na política, com as classes engajadas na luta de classes” (ALTHUSSER, 1971 , p. 65, tradução nossa). Assim, a partir dessa retificação, para Althusser, filosofia é luta de classes travada no campo da ciência, filosofia é a continuação da política no terreno da ciência, é uma disputa entre posições materialistas e idealistas, na qual (como ele nos conta em sua entrevista à Maria Antonietta Macciocchi): “[…] a filosofia idealista que explora as ciências [que explora toda aparente dificuldade em uma ciência para introduzir nela o idealismo [1]] luta contra a filosofia materialista que serve às ciências” (ALTHUSSER, 1971, 18, tradução nossa).

Ou seja, uma vez feita essa retificação (repetimos, retificação conhecida por Carlos Nelson), Althusser não apenas revela com toda a clareza sua influência bachelardiana, como a reconcilia com o marxismo: a filosofia marxista é a luta de classes na teoria, luta de classes no campo da ciência, luta essa que deve ter como objetivo por parte do proletariado conquistar a hegemonia da teoria materialista, causando assim o efeito de desbloquear e desenvolver as ciências (servir às ciências). Independe dos problemas que encontremos nesta formulação, o fato é que ela passa longe de qualquer positivismo.

E se a corrente bachelardiana é anti-positivista, ela também se constitui contra uma vertente teórica que, se não se identifica exatamente com o positivismo, está sempre próxima a ele: o evolucionismo, a idéia de que a ciência se desenvolve numa marcha constante e progressiva. Exatamente por isso, exatamente para enfrentar esse evolucionismo, essa idéia de um constante e ininterrupto progresso, que tal corrente enfatiza tão fortemente a idéia de rupturas na ciência:

“[…] a tradição epistemológica não-positivista que estou discutindo parte de, e se mantém firme a uma rejeição deliberada de um ‘evolucionismo’. Eu devo dizer que esse não-positivismo se apoia em um anti-evolucionismo. Hoje, todos conhecem o principal termo dessa rejeição na obra de Bachelard, a noção de ‘ruptura’ epistemológica […]. Também não é desconhecido que a proposta de Georges Canguilhem de distinguir o ‘começo’ de uma ciência de sua ‘origem’, incansavelmente denunciando toda tentativa de buscar ‘precursores’ mais ou menos remotos de uma ‘descoberta’, compartilha a mesma preocupação (LECOURT, 1971, p. 125, tradução nossa).”

Ou seja, o foco aqui não é encontrar o germe de uma teoria científica nos seus mais distantes precursores, mas sim identificar as rupturas que dão origem à ciência. Rupturas essas, que não se dão no vácuo, que se dão justamente contra um passado ideológico, pré-científico. “De fato, se conhece contra uma consciência anterior, destruindo consciências mal feitas […]” (BACHELARD, 1947, p. 14, tradução nossa). De tal maneira, que essa ruptura é sempre difícil, pois pressupõe a criação de todo um novo conjunto de conceitos científicos, pressupõe luta para que essa ruptura não se feche.

É só tendo essa tradição teórica em mente, que podemos entender o que Althusser almeja quando, visando defender que a tese de que Marx fundara uma nova ciência, ele busca mostrar uma ruptura epistemológica na obra marxiana, mostrar que, em um dado momento (Na obra A Ideologia Alemã), Marx incia um processo de substituição de uma problemática (questões organizam a teoria) feuerbachiana por uma problemática própria do materialismo histórico. Ou seja, o que faz Althusser é nada mais do que trazer para o campo do marxismo (e desenvolver) os preceitos epistemológicos de Bachelard, para os quais, uma ciência se funda contra um conjunto de erros, contra um passado ideológico.

E assim, justamente ignorando toda essa tradição epistemológica na qual Althusser se encontra, Carlos Nelson resume essa complexa teoria das rupturas da seguinte maneira:

“O método althusseriano, que opera por meio de cortes, não pode compreender, por exemplo, a evolução do pensamento marxiano como uma explicação e concretização de verdades inicialmente formuladas num nível abstrato; as ‘problemáticas’ do jovem e do velho Marx seriam absolutamente distintas, cada uma formando uma unidade homogênea, a primeira inteiramente ideológica e a segunda inteiramente científica (COUTINHO, 2010, p. 211).”

“[N]ão pode compreender […] a evolução no pensamento marxiano”. Abstraindo-se  a teoria bachelardiana, o que dá a entender é que o método de Althusser não possui a devida sensibilidade, a devida sutileza, para identificar a presença de questionamentos do jovem no velho Marx. Com isso, ignora-se que não é essa, em absoluto, a questão. Se ignora, que fazer boa epistemologia não equivale a identificar as reminiscências da alquimia em Lavoisier ou da física aristotélica em Galileu, mas sim marcar o que diferencia uma ciência de seu passado ideológico, entender o novo que emerge e não quais resquícios do velho que o novo carrega em si, que não se funda uma ciência através do Aufhebung, mas sim do corte, que o problema em questão é, justamente, identificar a novidade de Marx.

Mas o silêncio de Carlos Nelson vai ainda mais fundo. Pois Althusser não apenas se inspira em Bachelard e postula uma ruptura epistemológica em Marx, ele demonstra efetivamente (concordemos ou não) diferenças nas teorias de Marx e de Hegel que apontam para uma ruptura de fato em Marx com seu passado hegeliano, ruptura em um ponto essencial para o marxismo: na dialética. Para citarmos o mais célebre exemplo, no seu artigo Contradição e Sobredeterminação, fortemente inspirado no texto Sobre a Contradição de Mao Tse-Tung, Althusser defende a tese de que, enquanto a dialética de Hegel seria orientada pelo princípio de que uma única essência determina os demais fenômenos, pelo princípio de que uma contradição determina as demais (“A simplicidade da contradição hegeliana não é possível senão através da simplicidade de um princípio interno, que constitui a essência de todo o período histórico” (ALTHUSSER, 1996, p. 102, tradução nossa)), a dialética marxista, se orientaria pela não redutibilidade de uma contradição à outra: “[…] certas [contradições] são radicalmente heterogêneas, e […] não possuem todas a mesma origem, nem o mesmo sentido, nem o mesmo nível de aplicação […], não é mais possível falar de uma virtude simples da ‘contradição’ geral” (ALTHUSSER, 1996, p. 98-99, tradução nossa).

E, para Althusser, postular a diferença entre uma dialética hegeliana (para ele, essencialista) e uma dialética marxista (que preza pela não redutibilidade de uma contradição à outra) não significa afirmar que em Marx as contradições sejam indiferentes uma às outras, mas sim que elas se sobredeterminam, ou seja, são “determinante[s] mas também determinada[s] em um único e mesmo movimento” (ALTHUSSER, 1996, p. 99-100, tradução nossa). Em suma, Althusser apresenta aqui uma criativa importação de um conceito da psicanálise (sobredeterminação), um conceito já usado por Freud justamente para lidar com fenômenos determinados por múltiplas causas irredutíveis uma à outra [2] (ÍPOLA, 2018, p. 38).

E aqui, frente a um novo conceito importado da psicanálise Freudiana , frente à uma nova leitura da dialética marxista, tudo que Carlos Nelson enxerga é, ou a expressão de um marxismo conservador/positivista (pelo menos é o que parece indicar sua comparação de Althusser com Bernstein):

“Althusser considera essa posição Hegeliana como ‘empirista’ (e, portanto, como ‘ideológica’), denunciando ainda a concepção hegeliana da dialética, que ele distingue radicalmente – de modo injustificado – da concepção marxiana. (Será uma simples casualidade que Bernstein e Althusser partam igualmente de uma completa recusa da herança hegeliana?) (COUTINHO, 2010, p. 196).”

 Ou uma recusa à totalidade histórica que ele afirma já ter identificado em Sebag e em Foucault:

“Já vimos como, em Sebag e em Foucault, dissolve-se a noção de história como totalidade, surgindo em seu lugar uma justaposição ou ‘combinação’ de totalidade parciais, descontínuas e formalizadas.

[…] Não nos interessa, aqui, discutir quem influenciou quem, ou seja, se Althusser assimilou a concepção de Foucault ou vice-versa. (COUTINHO, 2010, p. 215).”

Assim é encerrado o caso. O conceito de sobredeterminação, um dos principais conceitos Althusserianos não aparece em nenhum momento da crítica de Carlos Nelson, a crítica à filosofia hegeliana como um essencialismo [3]  não é nem discutida.

Conclusão

Em suma, na nossa avaliação, a crítica de Carlos Nelson, silenciando sobre o contexto teórico-político, não toca no que consideramos o fundamental tanto da posição política (sua crítica ao XX congresso), quanto da posição teórica (crítica ao suposto essencialismo hegeliano, conceito de sobredeterminação) de Althusser. Desta forma, apesar de terem críticas justas ao longo de seu texto (como, por exemplo, a crítica à separação brusca entre “processo real” e “processo de conhecimento”), nos parece que, de modo geral, a crítica de Coutinho, ignorando o fundamento do construto althusseriano, acaba, mesmo se quebrando uma janela ou outra,  deixando o edifício de pé…


[1] Althusser se refere aqui aos momentos quando o idealismo explora uma revolução científica em curso para reforçar suas posições, por exemplo, quando, no contexto de surgimento da relatividade e da física dos átomos, o idealismo explorou a oportunidade para defender que a inexistência de matéria

[2] Mais especificamente, o conceito fora usado pela psicanálise para indicar duas coisas: 1) que uma formação inconsciente é resultado de diversas causas; 2) que essas formações são formadas por elementos que são “organizados em diferentes sequências de significado, cada um tendo sua coerência específica em determinado nível de interpretação particular” (LAPLANCHE e PONTALIS, 1967 apud ÍPOLA, 2018 p. 38).

[3] Crítica que consideramos que é mais compatível com uma certa leitura francesa de Hegel (Kojève, por exemplo) do que com Hegel, de fato.


Referências:

ALTHUSSER, Louis. Contradiction et surdetermination. In: ALTHUSSER, Louis. Pour Marx. Paris: La Découverte, 1996.

ALTHUSSER, Louis. Lenin and philosophy and other essays. Nova Iorque: Monthly Review Press, 1971.

BACHELARD, Gaston. La Formation de L’Esprit Scientifique. Paris: J. Vrin, 1947

ALTHUSSER, Louis. Réponse a John Lewis. Paris: François Maspero, 1973.

COUTINHO, Carlos Nelson. O Estruturalismo e a Miséria da Razão. São Paulo: Expressão Popular, 2010, 2 ed.

ÍPOLA, Emílio. Althusser, The Infinite Farewell. Londres: Duke University Press, 2018.

LECOUR, Dominique. Marxism and Epistemology. Londres: NLB, 1975.

LOSURDO, Domenico. Stalin Historia Y Crítica de una Leyenda Negra. EL Viejo Topo.

SCHRAM, Stuart. Mao Tse-Tung. Penguin Books, 1967.

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