Reflexões sobre o Aparelho Ideológico de Estado Sindical para a atual Crise do Sindicalismo

Por Alexandre Pimenta

“Ao tratar do AIE  [Aparelho Ideológico de Estado] sindical, Althusser se coloca na tarefa de resolver um problema aparentemente sem solução: como esse instrumento de luta de classes proletária, assim como os Partidos Comunistas, podem ser entendidos como “peças” de um Estado burguês, a auxiliar na reprodução das relações de produção?”


Nas últimas décadas, as relações de trabalho no capitalismo passaram por diversas transformações. Junto a isso, há fortes evidências de uma crise do sindicalismo em todo o mundo, ao menos do sindicalismo como o conhecemos. Taxas de sindicalização e quantidade de greves encontram-se em baixa, de forma geral, apesar de significativas diferenças regionais.

Tais questões não apenas têm reorientado as agendas de pesquisas e dos estudos globais do trabalho, como também, não seria exagero afirmar, trata-se de um dos principais desafios políticos contemporâneos. A nosso ver, Althusser guarda potências teóricas e políticas ainda atuais e que podem nos ajudar nessas questões. Mas em sua contribuição há também muitas insuficiências a serem sanadas e desenvolvidas. Ora, dentre as várias arestas deixadas pelas notas de pesquisas sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE), o local teórico do sindicalismo é uma das mais expressivas.

Por isso, nosso objetivo será resgatar os avanços, as contradições e as lacunas desse conceito (AIE Sindical) na obra de Althusser (1977, 1978, 1999), servindo-nos também de algumas contribuições de Edelman. Incluiremos aqui o póstumo Que Faire? (ALTHUSSER, 2018), que traz instigantes reflexões sobre a luta sindical. Os principais questionamentos que nos propomos a responder a partir dessas leituras são: de que forma o sistema dos aparelhos sindicais contribui para a reprodução e transformação das relações de produção? Sob quais práticas e bases materiais aquele se sustenta? E como a luta de classes corta esse sistema e sua história? Por fim, e não menos importante: quais diretrizes políticas o marxismo imprime na militância sindical?

Luta de classes, Legalização e Aparelho Ideológico de Estado Sindical

Ao tratar do AIE sindical, Althusser se coloca na tarefa de resolver um problema aparentemente sem solução: como esse instrumento de luta de classes proletária, assim como os Partidos Comunistas, podem ser entendidos como “peças” de um Estado burguês, a auxiliar na reprodução das relações de produção?

Em Sobre a Reprodução, a luta de classes é o ponto de partida e de chegada dessa teoria, a nosso ver. É recorrendo a ela que Althusser consegue dissolver os aparentes paradoxos que a questão dos AIE sindical e político colocam. Essa luta de classes, relembra o autor, não existe apenas no seio dos AIE, contra todas as acusações de funcionalismo, mas “supera infinitamente todas as formas legais através das quais ela pode chegar também a se exprimir” (ALTHUSSER, 1999, p. 128).

Ou seja, tratar da origem e da existência do AIE sindical e político exige ir para além do terreno do direito, para além das formas legalizadas que esses AIE se revestem e se limitam (ALTHUSSER, 1999, p. 129). É preciso reconhecer e analisar “a mais violenta luta de classes [que] se trava sem interrupção, embora de maneira surda e não visível do exterior, por não ser consagrada pela legalidade existente, em todos os momentos da prática da produção e muito além dessa prática” (ALTHUSSER, 1999, p. 130).

A existência desses estranhos AIE se explica, então, pela violenta, contínua e múltipla luta de classes prévia e “externa” das formas legais/aparelhos. A “consagração” pelo direito, ou sua legalização, precisa ser entendida, em primeiro lugar, como uma conquista, uma imposição e uma realização dessa luta proletária e sua ideologia.

E aqui avançamos mais um passo. Essa consagração pelo direito não é sem efeitos. Nem anula a luta de classes. Ela é mais um lance nesse jogo. Isso porque, e aqui temos uma analogia impressionante com Edelman, toda legalização tem um preço. De uma conquista pode vir uma derrota. As formas legais impõem limites e “pressionam” essas organizações a funcionarem de fato como peças na reprodução das relações de produção, na dominação burguesa. A ideologia proletária, existente no início do processo, pode se converter em reformismo, segundo Althusser, ao se desviar (via cretinismo parlamentar, economicismo…) e, por fim, ser derrotada internamente por essa forma legal/ideologia dominante (ALTHUSSER, 1999, p. 123).

E aqui a luta de classes aparece no ponto de chegada. Ela estava lá, no aquém, nos primórdios da formação desses AIE. E está acolá, além dos limites das formas legais, também a garantir a existência desses AIE enquanto instrumentos de fato da luta proletária pela tomada do poder de Estado e desmanche dos aparelhos de Estado. E quem está nesse lado externo da luta de classes? Althusser agora nomeia: as massas. Retomaremos esse ponto na próxima seção, mas, de novo, estamos diante de uma nova aproximação com Edelman (2016): além do direito, da classe operária legalizada, estão as massas, as hordas, o “fato”.

Vejamos rapidamente agora no que é, a nosso ver, uma das principais limitações desse texto de Althusser no que se refere ao funcionamento desse aparelho. Ao focar na leitura do sindicalismo muito geral, e centrada nos problemas políticos, ele pouco se debruça sobre esse aparelho em si. Em um rápido trecho ele avança nesse ponto, mas muito superficialmente. Ele reconhece que o sindicalismo não é um fenômeno apenas do proletariado. Outras classes, e até mesmo a burguesia, criam organizações que defendem os “interesses da profissão”, por exemplo. E aqui está um dos principais elementos de interpelação de uma possível sub-ideologia sindical: o corporativismo. Essa ideologia, inclusive, tem uma complexa história “pré-capitalista”, sobre a qual Althusser não se detém.

Arriscaríamos dizer que uma categoria ou profissão poderia ser entendida, na própria teoria althusseriana, como um Sujeito que interpela trabalhadores ou membros dessa profissão/categoria para defenderem seus interesses corporativos, participarem de suas assembleias e eleições, reconhecerem-se na direção sindical etc. Tais práticas sindicais fundam uma burocracia, em suma (EDELMAN, 2016, p. 111), que se entende superior à base, e normalmente tem seu cotidiano marcado por práticas de gestão, inclusive. E os sindicatos proletários, Althusser mesmo reconhece, estão em companhia com os sindicatos de outras classes, numa forma de sistema – e, poderíamos acrescentar, sob forte pressão para funcionarem da mesma forma que os outros.

E por falar em interpelação ideológica, o aspecto repressivo, mesmo que secundário do AIE sindical, parece ser esquecido por Althusser. Em Edelman podemos identificar melhor os dispositivos repressivos que o AIE sindical traz em sua própria forma. E como esses dispositivos são cruciais para o funcionamento desse aparelho e sua sub-ideologia. Segundo o jurista, a legalização significa também mais exposição, no sentido de apreensível pela classe e poder burguês. O poder jurídico do capital se impõe também sob a forma de tornar visíveis – e, por isso mesmo, dialogáveis, cooptáveis, mas também puníveis, “penalmente imputáveis” – os proletários em luta. O AIE sindical serve, objetivamente, assim, para filtrar as massas, impondo a necessidade de representá-las sob as formas legais. Legalizar é existir para o direito, expor-se ao campo inimigo.

A nosso ver, Edelman, nesse ponto, pode ser complementar à Althusser na análise do AIE sindical. Não só no sentido de uma maior compreensão de como o direito do trabalho age e interpela no AIE sindical, mas também alertando para o fato de que os perigos das formas legais podem ser maiores do que se imaginava (e de fato o foram): “a burguesia tentou – e, de certa forma, conseguiu – negar às massas qualquer palavra e qualquer existência fora da legalidade” (EDELMAN, 2016, p. 111).

Luta econômica, luta política, militância comunista e iniciativas das massas

Em Que Faire, ao discorrer sobre o “nível de consciência” das massas operárias, de seu limite teórico, da metodologia correta de ouvir e agir com elas, Althusser (2018, p. 36-37) afirma “o primado das massas sobre as classes, e o primado das massas e as classes sobre as organizações de luta [de] classes, sobre o sindicato e sobre o partido”. Lembremos que a luta de classes “externa”, no Sobre a Reprodução, é a base decisiva para a luta de classes nas formas legais (e suas “conquistas”). É essa esfera decisiva da luta de classes que hierarquiza e gera primados na luta marxista. A subordinação à luta de classes de massa (ALTHUSSER, 1999, p. 136), portanto alcança o patamar de princípio político.

A partir daí, Althusser reencontra a suposta tese marxista de secundarização da luta econômica (ALTHUSSER, 1999, p. 142). O autor reconhece que um processo revolucionário só pode ocorrer na fusão e na unidade entre as lutas econômicas e políticas do proletariado, e o poder de Estado é o fator decisivo para a vitória do processo, mas é a luta de classe econômica que ataca “diretamente a base material da existência do capitalismo, portanto, da sociedade burguesa e da dominação política da burguesia” (ALTHUSSER, 1999, p. 150). A luta política é a que pode dirigir o processo revolucionário, mas apenas sob a base da luta de classe econômica, que precisa ser “empreendida cotidianamente, infatigavelmente, a fundo e segundo uma linha justa” (ALTHUSSER, 1999, p. 154), “nos mínimos detalhes” (ALTHUSSER, 1999, p. 157). Sob as reivindicações materiais que a política comunista se constrói (ALTHUSSER, 1999, p. 155). E apenas focando nelas é que as massas “aceitarão” a direção comunista (ALTHUSSER, 1999, p. 156).

Considerando a luta econômica como base material da luta de classes, e a centralidade da luta de classes externa às formas legais, no terreno das massas e suas reivindicações concretas, Althusser lança luz para os pilares de uma teoria da direção política e militância comunista, inclusive no AIE Sindical.

Em seus escritos sobre a “crise do marxismo”, ele anuncia a possibilidade de outras organizações de luta econômica não sindicais que poderiam agir no nível das massas. E, curiosamente, isso abre brechas no diagnóstico edelmaniano de corrosão da luta proletária via representação sindical. Ora, Althusser lança, assim, bases para reverter a subordinação das massas aos aparelhos de Estado, tentando refinar o princípio comunista.

Em texto de 1977, numa crítica ao PCF, ele trata da palavra de ordem “união do povo” em contraposição à “união da esquerda” (partidos e sindicatos). Falar de união do povo seria: “Dizer a elas [às massas populares], ainda que apenas como uma sugestão, que terão que se organizar por elas mesmas, autonomamente, em formas originais, nas empresas, nos distritos urbanos e nas vilas, em torno das questões de trabalho e condições de vida, questões de moradia, educação, saúde, transporte, meio ambiente, etc.; para definir e defender suas demandas, primeiro para se prepararem para o estabelecimento de um estado revolucionário, depois para mantê-lo, estimulá-lo e, ao mesmo tempo, forçá-lo a ‘desaparecer’. Tais organizações de massas, que ninguém pode definir com antecedência e pelas massas, já existem ou estão sendo procuradas na Itália, na Espanha e em Portugal, onde desempenham um papel importante, apesar de todas as dificuldades.” Althusser afirma explicitamente uma multiplicidade de demandas “econômicas” que vão além da luta e organização propriamente sindical.

Já em texto de 1978, Althusser dá mais sinais sobre essas formas originais das massas: “como podem ser estabelecidas relações com o movimento de massas que, transcendendo a distinção tradicional entre sindicato e partido, permitirão o desenvolvimento de iniciativas entre o povo, que geralmente não se encaixam na divisão entre as esferas econômica e política (mesmo “somadas”)? Pois estamos testemunhando cada vez mais movimentos de massa do povo que surgem sozinhos, fora dos sindicatos e partidos, trazendo – ou capazes de trazer – algo indispensável à luta”.

A nosso ver, Althusser não estava a se iludir com um espontaneísmo romântico, mas sim a ressaltar o princípio do que acima chamamos de militância e direção comunista. Essa direção não é vanguardismo, pois quer se ligar às massas. Não é espontaneísmo, pois assume a necessidade de direção do processo. Mas esse processo só se faz possível, através de uma linha de massas, no sentido maoísta do termo.

Considerações finais

Vimos que, para Althusser, foi a luta de classes externa aos aparelhos de estado, a luta para além do nível legal, que possibilitou a legalização do sindicalismo, sua constituição enquanto aparelho ideológico reconhecido. Tal passagem apresenta diversos riscos políticos para a luta proletária, advertência melhor desenvolvida na obra de Edelman, inclusive focando aspectos repressivos do AIE sindical, ignorados por Althusser. A superação desses riscos se relaciona com a defesa da ideologia proletária nesses aparelhos e a construção de um uso apenas tático e instrumental do direito. Ambas práticas possíveis através de uma vinculação àquela luta de classes externa às formas legais e à política revolucionária.

Essa política revolucionária, segundo Althusser, tem como princípios a primazia das massas e a luta econômica como base da luta política. São esses princípios que devem guiar uma ação e direção comunista, inclusive nos sindicatos, a seu ver.

Importante destacar que, em Althusser, tanto a análise do fenômeno sindical quanto à proposta de atuação no mesmo se afastam de qualquer dogmatismo ou esquematismo. Ora, é a conjuntura da luta de classes, o movimento de massas real que cria possibilidades ou não para a luta revolucionária. Dependendo assim dos comunistas aplicarem seus princípios e construir alternativas concretas a cada momento histórico, a cada formação social específica – alternativas hoje que podem não passar pelo retorno do sindicalismo como o conhecemos.


Referências

ALTHUSSER, Louis. On the Twenty-Second Congress of the Communist Party. 1977. Disponível em:  https://www.marxists.org/reference/archive/althusser/1977/22nd-congress.htm

_________. Sobre a reprodução. Petrópolis, Vozes, 1999.

_________. The Crisis of Marxism. Marxism Today. 1978. Disponível em http://banmarchive.org.uk/collections/mt/pdf/07_78_215.pdf

_________. Que Faire? Paris: PUF, 2018.

EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo, 2016.

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