Politizar a pulsão de morte

Por Marcus Vinicius Neto Silva

Articulando “Mal-estar na cultura”, texto freudiano de 1930, com “Realismo capitalista”, de Fisher (2020), tentamos levantar algumas hipóteses sobre como o trabalho dos psicanalistas pode atuar no sentido de atacar a estrutura do sistema capitalista ao invés de tratar apenas os sujeitos e seus sofrimentos.

O ano de 1920 marca a produção freudiana pela introdução do conceito de pulsão de morte. Mesmo hoje, 100 anos mais tarde, ainda podemos considerar um conceito atual e que pode contribuir muito para pensarmos as articulações do sistema capitalista em seu uso violento dos indivíduos.

Essa investigação consiste em pensar os usos do conceito de pulsão de morte para além do campo puramente psicanalítico[i]. Mais especificamente, estamos tentando construir uma reflexão sobre algumas formas de organização das sociedades que se assentam em modelos muito marcados por uma ação das pulsões de morte.

O que faremos, na verdade, será levantar algumas questões que ajudem a pensar as sociedades atuais através de uma articulação da pulsão de morte freudiana com o conceito de realismo capitalista de Fisher (2020). Para conseguirmos chegar nesse ponto, contudo, teremos de retornar à obra de Freud e estabelecer algumas bases para o argumento.

1 – Pulsões de morte e sua relação com a agressividade e destrutividade

Freud apresenta o conceito de pulsão de morte em “Além do princípio de prazer”, mas é somente em textos posteriores que consegue extrair dele algumas hipóteses interessantes que ajudam a reformular pontos centrais do pensamento analítico. Se a relação das pulsões de morte com a agressividade e destrutividade já estava posta no texto de 1920, faltava a Freud explorar as consequências disso para o funcionamento dos indivíduos e também da sociedade.

Mas antes de passar a isso, destacaremos alguns pontos presentes em “Além do princípio de prazer” que serão essenciais para nosso argumento. Não esperamos recuperar aqui todo o caminho percorrido por Freud até o estabelecimento das pulsões de morte. Inclusive, é digno de nota que num texto com tantas reviravoltas e explorações que muitas vezes parecem não se conectar, o termo “pulsões de morte” só vá surgir na seção VI, a penúltima do texto.

E após sua apresentação, Freud logo se vê diante do problema de encontrar uma manifestação dessas pulsões. E ele o faz retificando a teoria sobre o sadismo e masoquismo (o que terá implicações também na própria teoria da constituição do aparelho psíquico). A retificação é a seguinte: se antes o sadismo era visto como primário e o masoquismo como a introjeção desse sadismo, agora o masoquismo (pulsão de morte que foi retida no Eu) seria primário e o sadismo serve para proteger a integridade desse Eu ainda precário, expulsando uma determinada cota de pulsão de morte para fora.

É nesse campo, como veremos, que Freud também situará em alguma medida a relação um tanto problemática dos indivíduos com a cultura, já que esse direcionamento para fora nem sempre se encontrará desimpedido.

Um detalhe curioso é que Freud percebe a complexa interação entre os dois grupos de pulsões e que, em dadas condições, “talvez nos seja permitido declarar […] como sendo igualmente narcísicas as células das neoplasias malignas que destroem o organismo”. (Freud, 1920/2020, p.169). Ou seja, nem sempre a captura das cotas de pulsão de morte pela libido garante que ela se tornará inócua, é possível que determinadas formações narcísicas sejam de fato mortíferas.

Mas passemos a “Mal-estar na cultura” (1930/2020). Resumidamente, o argumento freudiano é que os indivíduos anseiam por felicidade, e a buscam através da evitação do desprazer e da busca por prazer. Esse projeto, que é essencialmente o que exige o princípio de prazer, é irrealizável. Cabe aos indivíduos, então, lidar com as fontes de desprazer que vem do próprio corpo, do mundo exterior e da relação com outros seres humanos. Freud nota também que há algumas estratégias e procedimentos que os indivíduos escolhem nessa luta, mas todas têm um grau de sucesso apenas relativo.

Diante das exigências da civilização, que exigem renúncia a satisfações pulsionais, alguns indivíduos se refugiam na neurose, incapazes de tolerar os impedimentos impostos pela sociedade. Contudo, a organização da cultura carrega vantagens.

A vida humana em comum só se tornará possível caso se encontre reunida uma maioria que seja mais forte do que cada um dos indivíduos e que se mantenha unida contra cada um dos indivíduos. O poder dessa comunidade opõe-se então como ‘direito’ ao poder do indivíduo, poder esse que vai ser condenado como ‘violência bruta’. (Freud, 1930/2020, p.344).

A cultura deveria ser regida pelo ideal de justiça, que asseguraria que a ordem assim estabelecida não seja infringida em benefício de um indivíduo. Assim, “o resultado final deve ser um direito ao qual todos […] contribuíram com seus sacrifícios pulsionais, e que não deixe ninguém […] tornar-se vítima da violência bruta”. (Freud, 1930/2020, p.345).

Como ficará claro logo adiante, ao abordarmos o pensamento de Fisher, a hipótese freudiana encontra uma limitação: as restrições e sacrifícios impostos aos indivíduos não se distribuem de forma homogênea na sociedade, resultando disso que alguns sacrificam pouco de sua satisfação pulsional enquanto outros sacrificam demasiado.

Mas Freud prossegue interessado em como se sustenta uma sociedade que se baseia exatamente na renúncia exigida dos indivíduos de poderosas forças pulsionais. Essas forças, que pressionam por satisfação, são de dois tipos: Eros e pulsão de morte. Na visão de Freud, o real desafio para a cultura consiste em dar algum encaminhamento às pulsões de morte (que aqui ele localiza como pulsão de destruição e pulsão de agressão, dependendo do momento do texto). No caso da pulsão sexual, alguma satisfação é permitida, mesmo que limitada por certas proibições, e a isso se soma a satisfação que é obtida após uma inibição referente à meta.

Contudo, “a cultura precisa tudo mobilizar para colocar barreiras às pulsões de agressão dos seres humanos, para suprimir as suas manifestações através de formações reativas”. (Freud, 1930/2020, p.364). A cultura “espera prevenir os excessos mais grosseiros da violência brutal, dando a si mesmo o direito de exercer violência contra os criminosos, mas a lei não consegue compreender as manifestações mais prudentes e refinadas da agressão humana”. (Freud, 1930/2020, p.364). Outra saída é recorrer ao chamado “narcisismo das pequenas diferenças”. Através desse mecanismo, “é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade”. (Freud, 1930/2020, p.366).

Nesse sentido, a cultura pende entre permitir algumas manifestações das pulsões de agressão e restringi-las; no segundo caso ela teria de lidar com uma intensificação da autodestruição, uma vez que os indivíduos ficariam expostos a esses ataques vindos de dentro. E no geral, parece que essa segunda via é a que se estabelece como método mais eficaz de tornar a agressividade inofensiva para a cultura.

Desse modo, “a cultura lida, portanto, com o perigoso prazer de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e vigiando-o, por meio de uma instância em seu interior, como se fosse a ocupação de uma cidade conquistada”. (Freud, 1930/2020, p.377).

Freud conclui que “a questão do destino da espécie humana parece-me ser a de saber se, e em que medida, o seu desenvolvimento cultural será bem sucedido em dominar a perturbação trazida à sua vida em comum através da pulsão humana de agressão e de autodestruição”. (Freud, 1930/2020, p.405).

2 – O realismo capitalista e o acesso à satisfação das pulsões de agressão

Se é verdade que Freud não é, em seu texto, um defensor entusiasta da cultura e do progresso, também fica explícito que sua descrição de como a cultura opera se ocupa muitas vezes mais do ideal do que da sua manifestação material. Sua crítica tem dois lados: por um temos a cultura que exige dos indivíduos mais renúncia do que eles são capazes de suportar, por outro temos os indivíduos que resistem em ceder suas parcas satisfações às demandas da cultura.

O beco sem saída freudiano, de que ficamos expostos à revolta, neurose ou infelicidade se aderimos à cultura, mas que sem ela ficamos igualmente expostos à violência de outros indivíduos se traduz, nos nossos tempos, no que Fisher (2009/2020) chama de “realismo capitalista”.

O realismo capitalista pode ser definido como “o sentimento disseminado de que o capitalismo é o único sistema político e econômico viável, sendo impossível imaginar uma alternativa a ele”. (Fisher, 2009/2020, p.10). Ou ainda: “Trata-se mais de uma atmosfera penetrante, que condiciona não apenas a produção da cultura, mas também a regulação do trabalho e da educação – agindo como uma espécie de barreira invisível, limitando o pensamento e a ação”. (Fisher, 2009/2020, p.33).

No período em que Freud escreve “Mal-estar na cultura”, e mesmo nas décadas seguintes, antes da queda do muro de Berlim e da derrocada da União Soviética, “o capitalismo ainda tinha que enfrentar o problema de como conter e absorver as energias externas. Agora, enfrenta o problema oposto: tendo incorporado tudo que lhe era exterior tão completamente, como pode funcionar sem um exterior para colonizar ou do qual se apropriar?” (Fisher, 2009/2020, p.18).

O sistema capitalista em sua conformação atual (Fisher o nomeia pós-fordista) opera transformando todos os objetos da cultura em valor monetário: “as crenças colapsam ao nível da elaboração ritual e simbólica, e tudo que resta é o consumidor-espectador, cambaleando trôpego entre ruínas e relíquias”. (Fisher, 2009/2020, p.13).

Dessa forma, não é surpreendente que esse funcionamento se insinue no próprio inconsciente, que ele colonize nossos sonhos. Como notou Freud na década de 1930, o Supereu se formava como uma contraparte interna das exigências da cultura, e Fisher não ignora que o realismo capitalista produz novos sujeitos[ii] através de processos semelhantes: “Precisa-se ter em mente que o capitalismo é tanto uma estrutura impessoal hiper abstrata quanto algo que não poderia existir sem a nossa colaboração”. (Fisher, 2009/2020, p.28).

A diferença principal entre o contexto atual e o de Freud talvez seja que agora o realismo capitalista conseguiu operar com sucesso e reestruturar a realidade para se apresentar como única alternativa. Desse modo, ele sequer exige que estejamos contentes com o seu funcionamento. Podemos nos indignar, mas permanece a percepção de que há nesse sistema algo de inevitável e natural.

E é aqui que se apresenta uma diferença marcante entre os trabalhos dos dois autores. Freud pretende olhar para a cultura, descrevê-la, pensar em sua influência na formação dos sujeitos, mas não está comprometido a muda-la. Fisher, pelo contrário, se ocupa principalmente disso: como combater essa estrutura, como alterar a forma como se produzem subjetividades. Aqui, embora amparado em Freud, me alinho com Fisher: se fomos capazes de rastrear uma quantidade de sofrimento humano à forma como a cultura se organiza, não seria também nossa tarefa produzir mudança aí?

Um primeiro ponto é o que já apontamos acima, mas que agora cabe retomar. As exigências da cultura nunca recaem sobre os indivíduos e grupos de modo homogêneo. Para além do problema da desigualdade econômica e da propriedade privada (que Freud chega a comentar de modo um tanto ingênuo em seu texto), a questão aqui é a quem é permitido satisfazer suas inclinações, seja no campo das pulsões sexuais ou das pulsões de agressão, e quem deve ser exaurido, sugado, violentado como efeito do funcionamento do sistema.

O combate a essas condições é dificultado por várias estratégias do realismo capitalista: uma descentralização que pode ser sentida (e foi assim descrita por alguns) como declínio da função paterna ou perda da crença no Outro, uma hiper-responsabilização dos indivíduos por seu sofrimento e uma desmontagem das organizações coletivas (como sindicatos, por exemplo).

Submetido a essas condições, o indivíduo-trabalhador se encontra em total desamparo: no nível do trabalho não tem a quem recorrer, a responsabilidade é sempre colocada numa outra esfera distante; ao mesmo tempo, seu sofrimento mental lhe é imputado como um problema individual e qualquer revolta que anteriormente poderia ser reconduzida ao campo da cultura através da associação com outros indivíduos com demandas semelhantes fica dificultada (se não impossibilitada) pela uberização do trabalho[iii].

“Como fazer frente a isso?” – poderíamos nos perguntar. Para Fisher, “o realismo capitalista só pode ser ameaçado se for de alguma forma exposto como inconsistente ou insustentável, ou seja, mostrando que o ostensivo ‘realismo’ do ‘capitalismo’ na verdade não tem nada de realista”. (Fisher, 2009/2020, p.33-4).

Uma das melhores formas de se fazer isso seria exatamente tomar o campo da saúde mental como paradigmático da operação do realismo capitalista. Fisher (ele próprio diagnosticado com depressão na juventude) destaca o aumento significativo dos diagnósticos de depressão e transtornos de ansiedade, devidamente medicalizados, e se interroga se deveríamos tratar as doenças mentais “como se fossem um fato natural, tal como o clima”. (Fisher, 2009/2020, p.37).

Por essa razão,

o que é preciso agora é politizar transtornos muito mais comuns. […] é preciso reformular o problema crescente do estresse e da angústia nas sociedades capitalistas. Em vez de atribuir aos indivíduos a responsabilidade de lidar com seus problemas psicológicos, […] precisamos perguntar: quando se tornou aceitável que uma quantidade tão grande de pessoas, e uma quantidade especialmente grande de jovens, estejam doentes? A epidemia de doença mental nas sociedades capitalistas deveria sugerir que, ao invés de ser o único sistema que funciona, o capitalismo é inerentemente disfuncional, e o custo para que ele pareça funcionar é demasiado alto. (Fisher, 2009/2020, p.37).

Esse adoecimento teria, entre outras causas, a impossibilidade de dar vazão à agressividade que é imposta ao trabalhador. Essa impossibilidade é visível na já referida responsabilização total do indivíduo por seu sofrimento, mas também no efetivo bloqueio de outros encaminhamentos da agressividade.

Para exemplificar, Fisher cita o funcionamento do call center. Quando determinado serviço ou produto funciona, não há qualquer necessidade de recorrer ao call center (que em geral é, ele próprio uma empresa diferente daquela com quem o trabalhador-consumidor quer falar). Porém, quando algo não funciona e é necessário recorrer ao call center, o que se coloca em movimento é um verdadeiro labirinto que exaure até os mais pacientes. É pedido do trabalhador-consumidor que explique seu problema a cada vez que é transferido para outro setor, as ligações são interrompidas, ninguém tem poder de decisão ou apresenta uma solução prontamente. E pior,

a raiva não pode ser mais que uma válvula de escape: é agressão no vazio, dirigida a alguém que é igualmente uma vítima, mas com quem é difícil estabelecer empatia. […] Esta experiência de um sistema que não responde, que é impessoal, sem centro, abstrato e fragmentário, é a experiência mais próxima de um encontro com a estupidez artificial do capital em si mesmo. (Fisher, 2009/2020, p.110).

Diante disso, “não há mais inimigo externo identificável” (Fisher, 2009/2020, p.64), nenhum alvo suficiente para a agressão, ninguém que responda a ela e, portanto, ela nada produz de mudança. O efeito é apenas o desgaste do trabalhador-consumidor e a manutenção do funcionamento do sistema. Outro efeito é obtido ao impossibilitar a empatia entre o sujeito que procura o call center e o que trabalha nele. É por essa razão que, para Fisher, “nosso desafio agora é reinventar a solidariedade”. (Fisher, 2009/2020, p.150).

Mas não apenas isso: “O que precisamos é que esses efeitos sejam conectados a uma causa estrutural. Contra a suspeita pós-moderna em relação às ‘grandes narrativas’, precisamos reafirmar que, longe de serem problemas isolados e contingentes, todos esses são efeitos de uma única causa sistêmica: o capital”. (Fisher, 2009/2020, p.129).

Essa tentativa, de remeter os efeitos a sua raiz, visa, entre outras coisas, desnaturalizar o que foi estabelecido como fato. Mas mais do que isso: visa restabelecer o direito à agressividade dos indivíduos, direcionar para o sistema o ódio, “convertendo o descontentamento privatizado em raiva politizada”, ao mesmo tempo que recupera uma sensação de coletividade, nomeada por Fisher como “reconstrução da consciência de classe”. (Fisher, 2009/2020, p.141).

3 – Politizar a clínica e a teoria

Diante disso tudo, um ponto se apresenta como central ao psicanalista: seu trabalho já envolve desnaturalizar aquilo que os pacientes lhe apresentam como fato, trazer à luz as causas que permaneciam ocultas e produzir alguma responsabilização. Ele deve recusar a hiper-responsabilização e incorporar em seu campo a percepção de que o realismo capitalista imprime marcas profundas nos modos de satisfação dos sujeitos. Essas marcas podem vir de formas variadas, já que o poder social opera em vários níveis: raça, gênero, classe, etc. É preciso repolitizar a psicanálise.

Não é como se precisássemos inventar tudo do zero. Há já uma tradição de psicanalistas politicamente engajados desde os contemporâneos de Freud. Mesmo que muito dessa história tenha sofrido um processo de desgaste e apagamento, ligado diretamente a uma guinada à direita das instituições psicanalíticas a partir da década de 1930 e que vai se consolidando nas décadas seguintes, é necessário agora retornar a ela.

Nesse processo, um lugar deve ser privilegiado se quisermos ter participação efetiva na desnaturalização do realismo capitalista: a formação de novos analistas. É essencial termos em mente que os efeitos dessa estrutura sobre nós são muitas vezes discretos, mas restringem e moldam o campo do que consideramos possível na atuação de analistas.

Outro local a ser repensado é o da clínica. Temos de incluir em nosso campo uma reflexão sobre outras causas para o sofrimento daqueles que nos procuram. Isso obviamente não significa uma simples substituição das causas individuais pelas sociais, mas implica numa conjugação desses elementos e na desnaturalização ativa dos efeitos do realismo capitalista sobre os pacientes. É também desejável que nos interroguemos se nossa atuação não vem sendo muito limitada e docilizante, produtora de indivíduos a serem sacrificados no altar do capital. Em minha visão, se o movimento da cultura é o de bloquear a manifestação externa da agressão e força-la para dentro, nossa tarefa será auxiliar os indivíduos a canalizar a insatisfação resultante desse estado de coisas para fora, por caminhos que ainda não são possíveis de prever, mas dirigidos ao núcleo do sistema.

Esses dois movimentos sem dúvida exigem e são também parte de um processo de reorganização da própria teoria, para que possa melhor acolher esse elemento estranho ao nosso trabalho. Aqui, certamente já há esforços importantes em ação, mas que não são viáveis de debater nesse momento. Posso apenas apontar, por exemplo, a reflexão de Zupancic sobre o estabelecimento do princípio de realidade ser mediado pela ideologia, que insere então o funcionamento do sistema no interior dos indivíduos. Nesse sentido, o recente trabalho de Donizete Ferreira (2022) apresenta uma perspectiva de aprofundamento desse debate a partir da obra de Fanon.

Há alguns outros caminhos que podem ajudar a fazer essa vinculação da psicanálise com a política, em especial em aproximação com o marxismo. Um caminho aberto por Siegfried Bernfeld através da noção (que ele não desenvolve com a profundidade que mereceria) de lugar social. A proposta do autor pode ser descrita da seguinte forma: se desde Freud se pensa que as pulsões são como que precipitados de eventos históricos, e o Supereu é a internalização de certos elementos da realidade (também historicamente determinada), as formas de adoecimento e de neurose serão necessariamente social e historicamente determinadas. (Bernfeld, 1929).

O conceito de lugar social deveria produzir uma metapsicologia ampliada, em que se inclui essa incidência de fatores sociais (por exemplo, raça, classe, gênero) como um dos vetores que produz determinada conformação psíquica. Isso abre caminho para pensar que o trabalho do analista visa também a alteração nas condições materiais da vida de seus pacientes. Não que ele tome essa tarefa para si diretamente, mas atua para equipar o paciente para produzir esse tipo de alteração. (Por exemplo, enfraquecendo inibições ou idealizações das figuras de autoridade e, portanto, liberando o caminho para a expressão de seus anseios libidinais e agressivos). (Bernfeld, 1929).

Outro autor que também não leva muito longe algumas interessantes proposições é Alfred Adler. Em uma apresentação na Sociedade Psicanalítica de Viena, em 10 de abril de 1909, ele afirma que a consciência de classe libera a pulsão de agressão para que essa possa ser direcionada a outros objetos, disponível inclusive para ser dirigida ao mundo externo, atacando as causas da opressão. Mesmo sem elaborar melhor, fica colocado o efeito de rearranjo na economia pulsional produzido pelo trabalho político, efeito que também será sentido pelo próprio sujeito. O trabalho político tem, aqui, efeito terapêutico. (Nunberg & Federn, 1962).

De toda forma, repensar as formas que consideramos legítimas para as manifestações das pulsões de morte é um trabalho urgente. E os psicanalistas podem contribuir para produzir mudanças nesse campo, se forem capazes de interrogar não apenas indivíduos, mas também o próprio sistema. Nossa intenção, nesse breve texto, talvez tenha sido provocar alguma fagulha, produzir algum desconforto com nossa apatia e cansaço diante de um sistema tão opressor e que se apresenta como incontornável. Podemos tomar novamente Fisher para manifestar nossa singular combinação de indignação e otimismo: “Freud nos ensinou que os impulsos libidinais são ‘extraordinariamente plásticos’. Se o desejo não é uma essência biológica fixa, então também não há nada como um desejo natural pelo capitalismo. O desejo é sempre composto. […] A luta contra o neoliberalismo exigirá que saibamos construir um modelo alternativo de desejo capaz de competir com aquele empurrado pelos técnicos libidinais do capital”. (Fisher, 2009/2020, p.151).

__________

[i] Para pensar esse conceito no interior da psicanálise, um bom caminho é a recente edição bilíngue crítica lançada pela editora Autêntica. Essa obra conta com um dossiê que explora as diversas conexões do texto freudiano com psicanalistas de sua época, com as pesquisas em Biologia e com a Filosofia.

[ii] Por exemplo, ao discutir a voz interior na depressão, que assegura ao sujeito que ele é incapaz: “É claro que não se trata bem de uma voz ‘interior’, e sim da expressão internalizada de forças sociais reais, algumas das quais tem um interesse oculto em negar qualquer conexão entre depressão e política”. (Fisher, 2009/2020, p.137-8).

[iii] Além disso, como aponta Pávon-Cuéllar (2010), “Em uma cultura na qual não se deixa de trabalhar, é o inconsciente que trabalha sem cessar e o que assim mantém permanentemente nosso mal-estar. Explicamos desse modo que o mal-estar possa continuar mesmo quando o sujeito esteja descansando. Mesmo que o sujeito tenha terminado consciente e meticulosamente seu trabalho, o inconsciente não para de trabalhar e de provocar a renúncia ao gozo na qual radica o mal-estar na cultura”. (p.41).

Referências:

Bernfeld, S. (1929). Der soziale Ort und seine Bedeutung für Neurose, Verwahrlosung und Pädagogik. Imago, 15(3-4), 299-312.

Ferreira, P. D. (2022). A recepção da psicanálise em Frantz Fanon – uso e implicação para o campo psicanalítico. Dissertação de mestrado, 106p. Belo Horizonte: UFMG.

Fisher, M. (2009/2020). Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária.

Freud, S. (1920/2020). Além do princípio de prazer. Belo Horizonte: Autêntica.

Freud, S. (1930/2020). Mal-estar na cultura. Belo Horizonte: Autêntica.

Nunberg, H., & Federn, E. (1962). Minutes of the Vienna Psychoanalytic Society (Vol. 1). New York: International Universities Press.

Sobre o autor: Psicólogo, psicanalista, membro do Travessias – Percursos em Psicanálise e filiado à Unidade Popular pelo Socialismo.

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