A vitória da extrema direita no brasil e o recrudescimento das ideias do determinismo biológico

Por Luca Mendes Nicola e Edson Pereira Silva*

O texto trata de como a vitória da extrema direita no Brasil, correlato do que vem acontecendo em várias partes do mundo, tem sido acompanhado de um recrudescimento das ideias do determinismo biológico. Um breve histórico da utilização das ideias deterministas é traçado, especialmente, no Brasil. Por último, evidencia o caráter de pseudociência destas ideias, explicitando o seu papel no modo de produção capitalista.

As últimas eleições no Brasil (outubro/2018) deram a vitória, em segundo turno (57 milhões de votos), ao candidato Jair Messias Bolsonaro. Da mesma forma que Donald Trump, nos Estados Unidos da América, trata-se de um outsider, eleito por um partido nanico numa onda anti-establishment (embora ele mesmo tivesse sido um deputado federal obscuro nos últimos 27 anos). Com uma agenda de ultra-direita e matizes fascistas, o atual presidente do Brasil tem, sistematicamente, demonstrado seu desprezo a todas as minorias e grupos marginalizados da sociedade (mulheres, negros, LGBT’s, índios etc.). Ainda durante a campanha, o então candidato, numa palestra no Clube Hebraica (uma instituição judaica no Rio de Janeiro) caracterizou um quilombola (descendente de comunidades formadas por escravos fugitivos entre o século XVI e o ano de 1888, quando houve a abolição da escravatura no Brasil) como um homem que pesava “7 arrobas”, uma medida utilizada para pesar gado. Na mesma circunstância contrapôs os negros (“essa raça que não serve nem pra procriar”) aos japoneses (“raça que não fica pedindo esmola por aí”)[1], explicitando sua posição de que se o Brasil tivesse uma maioria de habitantes japoneses e não negros, as mazelas sociais do país estariam resolvidas.

O menosprezo de Bolsonaro para com as minorias e os grupos marginalizados da sociedade se alinha em muito a de outros líderes mundiais da direita ascendente no mundo. O presidente Donald Trump, com quem Bolsonaro tem estabelecido uma política de alinhamento imediato desde a campanha, também tem se notabilizado por declarações depreciativas em relação à grupos minoritários. Por exemplo, o líder norte-americano tem constantemente atacado a população negra, retratando-a como sendo a porção mais violenta, mais propensa a cometer crimes e mais preguiçosa dos EUA[2]. Na atual pandemia causada pelo COVID-19, Trump combina a negação de dados científicos com o puro preconceito ao se referir ao agente infeccioso como “vírus chinês”[3]. Na Europa, o atual primeiro ministro da Hungria, em resposta à recente onda imigratória proveniente de conflitos de países no Oriente Médio e na Ásia, mandou construir uma cerca de 175 km selando as fronteiras do país e declarando que “nós não queremos ser um país multi-colorido”[4]. Essa onda conservadora tem institucionalizado e radicalizado o discurso preconceituoso para com diferentes grupos humanos.

Na Hungria, um país de baixa diversidade étnica, o discurso racista é voltado para o imigrante, visto como uma ameaça ao estilo de vida europeu. Nos Estados Unidos, o ataque é voltado para os negros que são, ainda, o segmento mais marginalizado da população e vistos como ameaça à ordem social. No Brasil, de forma semelhante aos EUA, os grupos atacados são os não brancos, ressucitando o discurso da degeneração oriunda dos processos de miscigenação do povo brasileiro. Em respeito a isso, o vice-presidente do Brasil, general da reserva Antonio Hamilton Mourão, ao ser questionado sobre as condições de subdesenvolvimento do Brasil, respondeu que a razão para tanto era a herança da indolência dos índios, da malandragem dos africanos e do hábito aos privilégios dos ibéricos[5]. Subjacente a todas essas declarações e vilipêndios está a noção de que é possível reduzir as condições sociais, econômicas e políticas de um país às características físicas dos grupos humanos que o compõe, que essas características são de natureza biológica marcando, portanto, a condição inevitável destes grupos. Essas noções fazem parte de um conjunto de ideias que leva o nome de determinismo biológico.

Longe de ter surgido nesse momento atual de ascensão da direita ao redor do mundo, o determinismo biológico já foi empregado em diversos momentos da história das sociedades modernas. Hugo Grotius (1583-1645), um dos principais nomes da doutrina liberal do século XVII, afirmava que havia homens nascidos para a escravidão. De forma semelhante pensava Thomas Jefferson (1743-1826), presidente dos Estados Unidos no início do século XIX, que destacava a impossibilidade de brancos e negros conviverem em bases igualitárias, visto que isso desafiaria as suas determinações naturais[6]. As ideias deterministas apresentam um longo histórico de presença nos discursos e ações políticas e, associado a isso, houve uma série de tentativas de legitimação científica dessas ideias. No início do século XIX, por exemplo, a frenologia justificava as diferenças das condições sociais entre as “raças” como sendo produto das configurações distintas do cérebro e do crânio[7]. Um pouco adiante, no ano de 1924, nos Estados Unidos, foi aprovada uma lei que estabelecia cotas de entrada de imigrantes de países do leste europeu, com a justificativa de que esses imigrantes eram geneticamente inferiores e que a miscigenação acarretaria a poluição do conteúdo genético americano[8]. Reproduzido por diversos filósofos, políticos e cientistas do Velho Mundo, o discurso determinista encontrou lugar entre as elites dominantes do Novo Mundo, entra elas as do Brasil.

O desenvolvimento das ideias deterministas no Brasil foi norteado pelo foco na origem miscigenada da população brasileira, o que levou a uma discussão sobre como a miscigenação influenciava no desenvolvimento do país. A partir da incorporação de teorias racialistas, Silvio Romero (1851-1914), um escritor, jornalista, historiador, poeta e político brasileiro, inaugurou o que ficou conhecido como “Paradigma Racial”, um movimento que reconhecia a miscigenação da população brasileira como um fenômeno antes cultural e social, do que biológico. Contudo, o pensador considerava a misceginação como um meio de “branquear” a população. Para ele, a raça branca, por ser superior física e mentalmente, triunfaria entre as outras na batalha da miscigenação e isso levaria a rendenção da nação impura que era o Brasil (e ainda é nos dias de hoje segundo os critérios de Silvio Romero). Diretamente influenciado por Romero, começaram a se formar no Brasil, a partir de 1910, movimentos que concentravam na eugenia a solução para os problemas sociais. O médico Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) foi um dos grandes expoentes desse movimento, acreditando que a solução para melhorar as condições de vida da nação brasileira seria impedir o cruzamento entre as raças branca, negra e vermelha[9]. O movimento eugênico ganhou mais força no início do século XX, com a fundação da “Sociedade Eugênica de São Paulo”, que acelerou o processo de institucionalização da eugenia. Contudo, houve outras interpretações sobre a origem e o papel da miscigenação no Brasil, aquelas que defendiam uma tese contrária à de pureza racial, chamadas de “Paradigma Cultural”.

O “Paradigma Cultural” foi constituído por uma série de pensadores que enxergavam a miscigenação do povo brasileiro como um aspecto positivo que garantiria originalidade à civilização nascente. Gilberto Freyre (1900-1987) foi um escritor, sociólogo e historiador que defendeu a mestiçagem como representação do caráter democrático da cultura brasileira[10]. Outro expoente desse pensamento foi o escritor Jorge Amado (1912-2001) que no seu romance “Tenda dos Milagres” (1967), por exemplo, contrapôs o personagem de Pedro Archanjo, acadêmico defensor da mistura das raças, ao do Professor Nilo Argolo, ávido defensor das ideias eugenistas. Enquanto Argolo não enxergava futuro para um país de mestiços, para Archanjo a mistura trazia um caráter humanista e um ensinamento para o mundo que quase havia se destruído em uma guerra com base no mito da raça pura[11]. Independente da perspectiva acerca das consequências da origem miscigenada do Brasil, é evidente a relação que se estabelece entre a herança biológica da população brasileira e a sua condição social, econômica e política. Em outras palavras, a presença do determinismo biológico é notada em ambas as escolas de pensamento, sendo necessário, portanto, entender os pressupostos e deduções do determinismo biológico.

O determinismo biológico consiste na explicação de que as diferenças sociais, econômicas e políticas existentes entre grupos humanos podem ser reduzidas às características físicas e, portanto, à herança biológica desses grupos. Dessa forma, a existência de desigualdade socioeconômica entre brancos e negros no Brasil, por exemplo, seria o resultado da baixa capacidade intelectual dos negros, predominantes na população. Esse tipo de pensamento se manifesta na política, filosofia, literatura e, também, na ciência. Apesar de já ter sido desacreditado inúmeras vezes, em todas as suas manifestações, o determinismo biológico não foi superado, mas veio mudando seu discurso e sua roupagem ideológica ao longo do tempo. Uma das suas formas mais recentes e contundentes é o determinismo genético que afirma que as diferenças biológicas que causam as disparidades socioeconômicas observadas na sociedade são produto dos genes. Desse modo, codificadas no DNA, elas são inalteráveis e, portanto, inapeláveis[12]. O determinismo genético ganhou maior destaque no âmbito científico conforme foram feitas novas descobertas sobre a estrutura do material genético, culminando na elucidação do modelo de dupla hélice do DNA por James Watson (1928-atual) e Francis Crick (1916-2004).

O trabalho de Watson & Crick (1953) significou, para muitos, a revelação da causa material aristotélica da herança e, assim, o desvelamento daquilo que somos no mais profundo da nossa existência, o segredo da “natureza humana”, a nossa “essência”. Nesse sentido, diversos trabalhos surgiram associando aspectos sociais e comportamentais à herança do conteúdo genético de grupos humanos específicos. Em 1967, por exemplo, foi publicado um artigo que associava a inteligência, medida na forma de testes de QI, e a sua transmissão genética com o sucesso (e fracasso) de diferentes grupos étnicos[13]. Igualmente, na década de 1990, foi publicado um livro que defendia que a condição de marginalizados na sociedade era mera expressão dos genes de baixa inteligência que esses indivíduos possuíam[14]. A aspiração determinista encontrou sua máxima no Projeto Genoma Humano (PGH), uma iniciativa multimilionária que buscou sequenciar o genoma dos seres humanos e, assim, diria a maior parte da propaganda em torno desse projeto, elucidar os segredos da “natureza humana”. Sobre essa iniciativa, Watson, seu idealizador, declarou que:

“…um livro de instruções mais importante do que esse nunca será achado em seres humanos… que irá, não só nos ajudar a entender como funcionamos como seres humanos saudáveis, mas também explicará o papel de fatores genéticos numa série de doenças como câncer, Alzheimer e esquizofrenia…” (Watson, 1990, p. 44)[15].

Percebe-se que, partindo desse pressuposto do determinismo genético, todas as mazelas sociais poderiam ser resolvidas por meio da limpeza do conteúdo genético da sociedade. Isso se constitui não só em equívoco científico, como também favorece um posicionamento ideológico de caráter conservador, desqualificando qualquer tipo de investimento na mudança da ordem social, política e econômica. Ou seja, dando à desigualdade um status ontológico de inscrição na própria natureza. O determinismo genético, dessa forma, é a atualização pseudocientífica mais recente do pensamento determinista biológico. Essa reciclagem de teorias que buscam justificar a realidade desigual serve a uma função de controle social num sistema que produz cada vez mais disparidade socioeconômica.

Marx dizia que a burguesia tem como característica o constante desenvolvimento dos meios de produção[16], estabelecendo sempre novas formas de gerar mais valor. Esses ciclos são observados, também, para a justificação ideológica da ordem capitalista, que assumiu diversas roupagens ao longo da história, sempre estando de acordo com os avanços técnico-científicos da época. Por exemplo, uma das primeiras falácias do determinismo biológico esteve ligada ao uso da anatomia que, durante muito tempo e com a utilização de diferentes técnicas, tentou demonstrar diferenças nas medidas de cérebros de homens e mulheres, brancos e negros. Para resumir uma longa história, o abandono desse programa de pesquisa se deu devido não só ao fato de que assumia uma série de pressupostos errados (identificar tamanho de cerébro com inteligência, não possuir uma definição do que seja inteligência etc.), como também devido a alguns resultados desagradáveis (dependendo da medida mulheres apresentavam cérebros maiores que homens, como também orientais em relação a brancos americanos), evidenciando os verdadeiros motivos por trás do programa de pesquisa (Gould, 1981). A partir do desenvolvimento da genética, o determinismo encontrou, talvez, sua versão mais robusta. Contudo, mesmo aí a falácia foi desmascarada, uma vez que os resultados do Projeto Genoma Humano deixaram a todos perplexos com a incapacidade de definir adequadamente até mesmo o que seja um gene[17]. No século XXI, os avanços no campo da epigenética pareciam anunciar o fim definitivo do programa determinista genético. Contudo, mesmo aí o determinismo contrabandeia o seu ideário[18], incorporando às manchetes expressões do tipo “código epigenético”, que seriam os mecanismos epigenéticos que programam os indivíduos para se desenvolverem dentro de uma trajetória pré-determinada de respostas aos estímulos externos, lembrando em muito o livro (Levin, 1976) e o filme (Schaffner, 1978) “Meninos do Brasil” ainda do “século do gene” (Keller, 2002).

O contexto capitalista atual tem estabelecido circunstâncias nas quais uma série de lideranças populistas de direita tem surgido no cenário político mundial com agendas abertamente contra a classe trabalhadora e as minorias. Juntamente com isso, tem havido um recrusdecimento de discursos deterministas que buscam atribuir as persistentes condições de desigualdade presentes na sociedade e entre os países às diferenças biológicas e genéticas dos grupos humanos, numa tentativa de justificar as falhas sociais do sistema capitalista. Assim, a tarefa que está posta no campo progressista é instruir a classe trabalhadora e os grupos marginalizados da população sobre as falácias da politica populista e seu discurso determinista que buscam extremar a pauperização pela manutenção das taxas de mais valor obscurecendo seus objetivos com (pseudo)ciência.

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[1]Retirado de https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/bolsonaro-quilombola-nao-serve-nem-para-procriar/.

[2]Retirado de https://www.vox.com/2016/7/25/12270880/donald-trump-racist-racism-history.

[3]Retirado de https://www.aljazeera.com/programmes/newsfeed/2020/03/trump-defends-calling-coronavirus-chinese-virus-200323102618665.html.

[4]Retirado de https://af.reuters.com/article/worldNews/idAFKCN1GI272.

[5]Retirado de https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,mourao-liga-indio-a-indolencia-e- negro-a-malandragem, 70002434689.

[6]Todas as citações podem ser encontradas em Losurdo, D. 2006. Contra-História do Liberalismo. 2ª edição. Editora Idéias e Letras, São Paulo.

[7]Retirado de Bank, A. 1996. Of ‘Native Skulls’ and ‘Noble Caucasians’: Phrenology in Colonial South Africa. Journal of Southern African Studies 22(3):387-403.

[8]Retirado de Allen, G. 1997. The social and economic origins of genetic determinism: A case history of the American Eugenics Movement, 1900–1940 and its lessons for today. Genetica 99:77-88.

[9]Retirado de Bechelli, R. 2009. Metamorfoses na Interpretação do Brasil: Tensões no Paradigma Racial. 420 p. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Brasil.

[10]Retirado de Santos, R.V. & Maio, M.C. 2004. Qual “Retrato do Brasil”? Raça, Biologia, Identidades e Política na Era da Genômica. MANA 10(1):61-95.

[11]Retirado de Silva, E.P.; Duarte, M.R. & Nicola, L.R.M. 2019. Distopia e Utopia do Nacionalismo Vira-Lata: Herança Biológica e Determinismo Genético. Revista Seda 4(10):92-106.

[12]Retirado de Lewontin, R. 1982. Biological Determinism. Pp. 147-183. In: The Tanner Lectures on Human Values. Realizado na Universidade de Utah, Estados Unidos.

[13]Retirado de Jensen, A. (1967). How Much Can We Boost IQ and Scholastic Achievement. Harvard Educational Review 39:1-18.

[14]Retirado de Herrnstein, R. & Murray, C. (1994). The Bell Curve: Intelligence and Class Structure in American Life. Nova York: The Free Press.

[15]Retirado de Watson, J. (1990). The Human Genome Project: Past, Present and Future. Science 248(4951):44-49.

[16]Retirado de Marx, K. & Engels, F. 1848. O Manifesto Comunista. Zahar Editores, Rio de Janeiro.

[17]Retirado de Keller, E. 2000. The Century of the Gene. Harvard University Press: Massachusetts.

[18]Retirado de Waggoner, M.R. & Uller, T. 2015. Epigenetic determinism in science and society. New Genetics and Society 34(2):177-195.

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* Luca Mendes Nicola (Bacharel em Ciências Biológicas pelo Instituto de Biologia da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do Laboratório de Genetica Marinha e Evolução. E-mail: luca.nicola2233@gmail.com)

Edson Pereira Silva (Pós-doutor em Genética Molecular pela University of Swansea; professor do Instituto de Biologia da Universidade Federal Fluminense; Grupo de pesquisa: Laboratório de Genética Marinha e Evolução (LGME-UFF). E-mail: edsonpereirasilva@id.uff.br)

Versão de divulgação do artigo acadêmico Nicola, L.R.M. & Silva, E.P. 2021. Extrema Direita e a Ideologia do Determinismo Biológico. Germinal: Marxismo e Educação em Debate 13(1):623-635. (DOI: http://dx.doi.org/10.9771/gmed.v13i1.41897).

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