Cinco ideias lacanianas sobre a história para pensar na atual conjuntura latino-americana

Por David Pavón-Cuéllar, via David Pavón-Cuellar blog, traduzido por Rodolfo Rodrigues 

O texto que segue é uma intervenção do autor na mesa de debate “América Latina para as ruas: a luta dos subalternos contra a direita neoliberal”, em 27 de novembro de 2019, na Faculdade de História da Universidade Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, em Morelia, Michoacán, México.


O discurso no real

A história, tal como Lacan a representa, resulta de uma “certa forma de irrupção de um discurso no real”. Essa irrupção possui consequências: o espaço coletivo latino-americano se abala, se desloca e se recompõe quando é penetrado pelas demandas dos golpistas bolivianos ou das multidões que se levantaram contra o neoliberalismo no Haiti, Equador, Chile, Panamá, Costa Rica e Colômbia. Em todos os casos, a articulação discursiva do que é necessário transmuta-se em enredo histórico. De repente, vemos aparecer multidões e confrontos onde havia apenas palavras.

Como as palavras podem se encarnar em multidões e provocar confrontos? O que lhes dá esse poder, segundo Lacan, é a verdade, a verdade onipotente que Lenin atribuiu ao marxismo, que, como o próprio Lacan entende, deve ser desvendada na enunciação – no ato de enunciar, e não no enunciado, não no que se enuncia. Não que as palavras digam a verdade, mas que existe uma verdade em seu dizer que dá todo o seu poder ao que dizem.

Se as palavras da direita boliviana foram tão poderosas para derrubar o regime de Evo Morales, foi pela verdade implacável de suas condições materiais de enunciação, do exército e da polícia, da vontade estado-unidense, da violência dos opositores, das ameaças contra os funcionários e da explosão de uma fúria classista e racista que se mantinha contida durante vários anos. Tudo isso, que está no dizer e não no dito, é o que assegurou o êxito do que foi dito. Do mesmo modo, no Haiti, Equador, Chile e Colômbia, a efetividade histórica dos protestos contra o neoliberalismo não se apoiou na ideia em que se afirma, mas em sua materialidade literal, na força com que se afirma, na sua verdade medida em praças aglomeradas e ruas bloqueadas, em barricadas e pedras atiradas, em centenas de milhares de punhos erguidos, em anos de frustrações e humilhações, de indignação retida e por fim esmagada.

O corpo, com seu gesto, faz parte da materialidade histórica. O materialismo lacaniano é um materialismo da enunciação corporal, gestual, e não só econômica, estrutural. Em todo caso, existe uma certa materialização do significante que impacta a história.

 

O cenário da linguagem

Que aquilo que é historicamente decisivo resida no peso material da reivindicação e não no sentido preciso do que é reivindicado não significa, é claro, que a história seja um campo real em que apenas a força vale e no qual não há espaço para palavras ou ideias. Na verdade, como Lacan reconhece, o espaço histórico é um “cenário” simbólico. Esse cenário, configurado pelo tecido da linguagem do que pensamos, dizemos e agimos, é, para o mesmo Lacan, a “dimensão da história”.

Fazemos a história com a mesma linguagem com que a escreveremos mais tarde. O neoliberalismo e o neofascismo, assim como o feminismo e o socialismo, são palavras que não apenas servem para narrar o que está acontecendo na América Latina, mas que também nos permitem agir sobre isso e, por conseguinte, fazer acontecer. As mobilizações no Chile tecem significantes como palavras, lemas e declarações, mas também corpos e gestos, manifestantes e policiais, escudos e capacetes, pedras e gases e tantos outros.

Não há nada carente de valor simbólico nos protestos das chilenas e dos chilenos. Há, aqui, significantes por todos os lados. Tudo significa, mas não sabemos exatamente o que significa e por isso podemos lê-lo de tantas maneiras diferentes, até mesmo contraditórias, dependendo se interpretamos de cima ou de baixo, da esquerda ou da direita, do ponto de vista de Piñera ou de qualquer outro.

Nossa interpretação pressupõe e revela um posicionamento político. Não há neutralidade possível aqui. Não há informação objetiva como as que a CNN e outros meios de comunicação oferecem de forma enganosa. Tampouco há lugar para uma crítica distante, mais transcendente que imanente, como aquela com a qual Rita Segato julgou o golpe na Bolívia. Só podemos ler esse golpe de nossa posição política no universo da linguagem. Um universo como o simbólico, sendo um universo, não deixa nenhum lugar de fora, nenhum lugar para julgá-lo imparcialmente, julgando-o de fora. Não há saída da linguagem porque não há metalinguagem.

O passado no presente

Não há um exterior da situação. Tampouco existe, pelo mesmo motivo, um passado que se encontra fora do presente, antes dele, atrás dele. Como bem notou Lacan, “a história não é o passado”, mas “está presente”. Ela é, no presente, uma “restituição” do passado, e não uma simples “rememoração”.

Quando o povo chileno evoca o pinochetismo, não está recordando de algo confinado no passado, mas, ao contrário, o está ressignificando de tal forma que o descobre implantado em tudo que o rodeia. Esse descobrimento é verdadeiramente um descobrimento. As chilenas e os chilenos descobrem que o neoliberalismo segue sendo a ditadura, que a batalha contra Pinochet ainda não terminou, que a derrota de Allende ainda não foi revertida, que ainda devem se abrir as grandes avenidas por onde passa o homem livre para construir uma sociedade melhor.

O que está acontecendo no Chile nos mostra que a feroz luta entre as duas forças históricas personificadas por Allende e Pinochet, respectivamente, não terminou. Esta luta continua nos confrontos entre manifestantes e policiais nas ruas e praças de Santiago do Chile e outras cidades. Allende, cumprindo sua promessa, está sempre com quem se manifesta. Da mesma forma, cada ataque violento da polícia é um eco do ataque de 11 de setembro de 1973 ao Palácio de La Moneda. O mesmo se aplica a assassinatos, desaparecimentos, apreensões, tortura, lesões corporais e estupro.

Tudo continua. Pinochet não foi vencido nem derrotado. Ninguém ganhou o que está em jogo. O jogo ainda não acabou. A história não ficou para trás, no passado, mas está presente, restaurando o passado no presente. Seu resultado está em suspenso. O fim ainda está para ser visto.

Síntese presente do passado

Não estamos apenas na história, no passado que está presente, mas nós mesmos somos feitos de história. Somos um precipitado histórico: uma condensação do passado que se revive e se continua a cada momento através de nós, o que fazemos, o que somos, o que nos guia. Nosso “centro de gravidade”, segundo a bela expressão de Lacan, é “a síntese presente do passado”.

Cinco séculos de colonialismo e de imperialismo se encontram sintetizados no coração do mestiço boliviano que se lança com um desprezo enfurecido e implacável sobre os indígenas quíchuas ou aimarás. A mulher de saia é vítima de um sujeito racista, classista e sexista, claro, mas esse sujeito é animado no mais êxtimo, no mais íntimo e radicalmente exterior de seu ser, pelo patriarcado em sua versão extrema indo-europeia e por toda história colonial e imperialista de que foram vítimas os povos originários e latino-americanos. O agressor boliviano só obedece ao mesmo que obedecem Lenín Moreno no Equador, Iván Duque na colômbia, Sebastián Piñera no Chile e seus milhares de subordinados, partidários e correligionários animados pelo mesmo que eles.

Os expoentes e defensores da nova direita latino-americana são presenças ativas e efetivas de cinco séculos de imperialismo, colonialismo, de capitalismo e de um patriarcado indo-europeu especialmente violento. Se queremos nos libertar do poder patriarcal, capitalista, colonial e imperial que segue dominando a América Latina, devemos irremediavelmente enfrenta-los, aqueles que o perpetuam, que o mantêm em vigência através de suas atitudes machistas e sexistas, classistas e racistas, entreguistas e malinchistas, complexados e branqueados, dóceis frente ao capital e servis perante o senhor estrangeiro. Essas atitudes repetem o passado. O repetem como farsa, diria Marx, mas a questão é que o repetem, repetem incessantemente, mantendo-nos presos à sua farsa.

O que nos prende é a repetição. Os evangelizadores da Espanha se repetem nos evangelistas bolivianos que agitam a cruz e a bíblia conta a Pachamama. O loiro e a soberba da Europa se repetem na atitude e nos cabelos de Jeanine Áñez. A armadura do conquistador espanhol também se repete nos capacetes e uniformes de proteção dos policiais ou nas jaquetas de couro e metal dos que espancam as mulheres de saias. A guerra pela prata e pelo ouro, entre os séculos XVI e XVIII, se repetiu mais tarde na guerra pelo guano do século XIX, que mais tarde foi repetida pelo petróleo, o ouro negro do século XX, e agora pelo famoso lítio, o ouro branco do século XXI.

Subversão da repetição

Devemos considerar a repetição para entendermos algo, mesmo que seja pouco, do que está acontecendo na América Latina. A atual conjuntura histórica do continente, assim como a história em geral para Lacan, é algo que só se “ordena” pela repetição que nos permite pensar sobre ela. Aquilo que se repete, com efeito, é a única coisa para a qual a história tem um padrão que lhe confere uma ordem inteligível, uma lógica, um enredo, uma estrutura, a “estrutura das estruturas”, como Althusser uma vez a chamou.

Embora os eventos históricos ocorram de acordo com o padrão do que se repete, nem tudo neles obedece ou é estruturado por esse padrão. Temos também o contingente, o surpreendente, o inesperado que Lacan “esperava” da história. Não é isso que nos devolve a esperança diante da série de tumultos no Haiti, Equador, Costa Rica, Panamá, Colômbia, e principalmente no Chile?

É verdade que o que aconteceu recentemente em vários países latino-americanos, como tudo o que é imprevisível na história, surge dentro do previsível, como acontece na América Latina com o elemento patriarcal, o autoritarismo, a opressão, a desigualdade, a reação oligárquica, a repressão excessiva, o pacto de impunidade, a demagogia governamental, a manipulação da mídia, a interferência estado-unidense, o oportunismo europeu e tudo o mais que não para de se repetir sem cessar. Contudo, no que se repete, o que não se repete pode ocasionar um deslocamento, um desvio, um clinâmen, e no final, talvez, uma ruptura, como aquela que representam agora as mulheres e os povos originários com seu protagonismo e sua vanguarda que poderiam mudar tudo. É precisamente aqui que Lacan situa os “pontos decisivos da articulação simbólica” que rompem a “continuidade” e para os quais há algo que podemos chamar de “história”. É por causa dessas soluções de descontinuidade que o próprio Lacan vai acabar pensando que “a história é a histeria”.

Se a história é tão imprevisível quanto a histeria, se é literalmente a própria histeria, é porque só podemos realizá-la histericamente, desafiando qualquer saber com a razão de nossa verdade e com a força de nosso desejo. É porque estamos em condições de recordar o que nos anima e não apenas condenados a repetir o que nos aprisiona. Claro, a repetição, como Freud notou com perspicácia, é uma forma de recordar. É recordar agindo e não rememorando, mas é precisamente a única forma de recordar que resta quando não temos a possibilidade ou a coragem de recordar algo que deve imperativamente ser recordado.

Existem eventos, como a conquista da América Latina, que são tão cruciais, tão memoráveis, que simplesmente não podem ser esquecidos. Quando deixamos de trazê-los à consciência, temos de repeti-los agindo sobre eles inconscientemente. Porém, se conseguimos recordá-los, de repente deixamos de repeti-los, agimos de forma imprevisível, surpreendemos, desestruturamos a história, subvertemos sua estrutura e abrimos assim a possibilidade revolucionária de reestruturá-la de maneira diferente. É o que poderíamos estar fazendo agora mesmo, nesta conjuntura histórica, por ousarmos recordar a nossa persistente subordinação colonial, mas também o infame legado patriarcal do homem ibérico, o imperialismo de sempre e de agora do FMI, a continuação da ditadura sob uma forma neoliberal, e todo o resto que talvez, ao fim, deixemos de repetir.

David Pavón-Cuellar é um dos autores da obra Contribuições Psicanalíticas a uma Política dos Afetos (Ed. LavraPalavra).

 

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