Nova hora dos ruminantes

Por Luciano Alberto de Castro, cronista e professor da Universidade Federal de Goiás

A Praça Cívica é um belo espaço público de Goiânia. Um marco da cidade, traçada sob os preceitos do Art Déco. Por isso, a capital de Goiás tem ares de South Beach. Art Déco é arte decorativa, preza as linhas geométricas e harmoniosas. Mas, em março de 2020, a charmosa praça goianiense foi palco de um concerto dissonante. A exemplo do que ocorria em outras cidades brasileiras, manifestantes ocuparam alguns metros da praça para defender o fechamento do Congresso Nacional e do STF, instauração de um regime militar e a cereja do bolo: a reedição do AI-5. Insatisfeita com o regime democrático vigente, aquela pequena multidão queria de volta a austeridade dos anos de chumbo.   

A manifestação não representava nada de novo no front político brasileiro, mas sim um desenlace natural do descontentamento que já grassava entre os cidadãos de bem. O que, ainda hoje, estarrece é que os protestos tenham acontecido no meio da pandemia de Covid-19 que chegara ao Brasil alguns dias antes. Dezenas de pessoas, inclusive idosas, se aglomeraram nas ruas deblaterando que a pandemia era uma histeria, um estratagema econômico. Em Brasília, um homem exibia uma faixa onde se lia “Sobrevivi ao PT… Corona pra mim é cerveja!” Mais internacional, um sorridente casal vestia camisetas com os dizeres “Corona better than corruption (a dama) e Corona better than STF (o cavalheiro).” Inacreditável, mas a funesta pandemia que assolava o planeta era tratada como uma tolice.

No meio do buliçoso rendez-vous, o governador de Goiás, que é médico, interveio. Com sutileza típica da sua prosápia, o mandatário conclamou as pessoas a retornarem às suas casas. Aquela aglomeração — naquele momento — era um ato completamente irresponsável. As palavras enérgicas do governador foram rechaçadas com sonoras vaias e gritos hostis. Munidos de celulares e bandeiras, os manifestantes xingaram o governador de traidor, ditador e outros impropérios. A imagem da multidão enfurecida gritando e correndo por cima dos canteiros, como que enxotando o governador para dentro do Palácio, veio-me como uma alegoria. Imediatamente, fui remetido a Manarairema, a cidade que foi invadida e dominada por bois em A Hora dos Ruminantes, o célebre romance de José J. Veiga.

Publicado em 1966, no governo Castelo Branco, a Hora dos Ruminantes trouxe a narrativa forte, simples e hipnotizante de Veiga para criar Manarairema, a vila interiorana cuja tranquilidade foi abalada por uma sequência de invasões insólitas. Primeiro, vieram forasteiros; depois, cachorros e, por último, bois. Descendo das encostas, cruzando várzeas, os bois lerdos e vadios iam chegando aos magotes e tomando a cidade, numa profusão de chifres e patas. Displicentes e estabanados, os bichos iam pisando em tudo, derrubando cercas, invadindo quintais e espantando porcos e galinhas. Estavam em todo lugar: nas ruas, nas praças, no cemitério, no altar de igreja, nos galhos dos jatobazeiros e até dentro das casas.

Não quero cometer a indelicadeza de comparar os bois de Manarairema aos brasileiros que foram à praça pública manifestar sua indignação seletiva contra o Congresso e o Judiciário. Longe disso. Mas a metáfora insiste. Obviamente, comparo-os não no sentido biológico, mas no comportamental. A obediência é própria da raça ruminante. Quando domesticados, os bois aceitam o jugo e seguem, fiéis, os comandos do carreiro. São bichos estouvados e pouco judiciosos.

Com todo respeito, percebo nos ufanistas “Pra frente, Brasil” algumas características ruminantes, como a obediência cega, o estouvamento e uma certa insensatez. Além das pautas que motivaram as manifestações de março, arrisco-me a conjeturar que outros pensamentos se somem àquelas mentes prolíficas. Eles provavelmente combatem a universidade pública. Alguns contestam a ciência. Declaram guerra à cultura brasileira, ao carnaval, ao samba e à literatura. Apoiam o corte da mata para plantar soja e para a mineração (agro é pop). Apreciam as armas e a caça esportiva. Negam o racismo estrutural. Recriminam o Papa. Odeiam Paulo Freire, Caetano Veloso, Chico Buarque, Roger Waters e Noam Chomsky. É o efeito manada.

Os protestos de 15 de março foram uma centelha perto da fogueira de insanidades que iria arder no Brasil em 2020. À medida que a pandemia progredia inclemente, a agremiação dos homens probos gestava e fazia crescer um movimento contrário que questionava, minimizava e escarnecia da crise sanitária. Surgia o negacionismo ruminante. Os defensores da pátria amada novamente ganhavam as ruas, marchando (literalmente) e protestando contra a televisão, os jornais, a medicina, a ciência, a sensatez e qualquer outra entidade que considerasse a pandemia um problema. Impetuosos e arrojados, os girondinos modernos desfilaram com esquifes de isopor, invadiram hospitais, queimaram máscaras, e hoje não querem a vacina, nem daqui e nem da China.

É notório que a Covid-19 intensificou o proselitismo ideológico e religioso. Para agradar seu líder, eles fazem qualquer coisa: se aglomeram, saracoteiam, protestam, xingam, subvertem, tudo em obediência ao mito. Em Manarairema, os ruminantes eram adventícios: oprimiram o povo e foram embora. Os de agora sempre estiveram aqui, disfarçados como carneiros mochos. Não oprimem o povo, pois são parte dele, mas pisoteiam a democracia e as instituições. E agora, banalizam a vida, a deles e a dos outros.

Goiânia, janeiro de 2021

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