Por Julio Tude D’Avila
“Ao analisar a famosa frase de Kafka “É claro que há esperança…, mas não para nós”, Giorgio Agamben a coloca como uma clara reinvindicação da necessidade desse processo. Não há esperança para esse modo de vida que levamos, não há horizonte de mudança possível sem que os meios que sustentam nossa forma de viver sejam radicalmente alterados, destruídos enfim. A barafunda absoluta em que o Brasil se encontra é fruto, entre outras coisas, justamente desse modo de existência, absolutamente violento e mascarado, que é o nexo da experiência nacional.”
Antes de chegar à notoriedade com Boi Neon e Divino Amor, Gabriel Mascaro já havia dirigido algumas obras notáveis. Uma delas, Um Lugar ao Sol, é um documentário magnífico sobre donos de coberturas no Brasil. O filme permite observarmos, com exatidão e profundidade, a mentalidade da elite brasileira. Mascaro entrevista uma série de indivíduos fascinantes, retratos exemplares das contradições da experiência social no nosso país. As idiossincrasias expostas mostram-se progressivamente menos peculiaridades individuais e mais sintomas políticos e ideológicos dessa burguesia.
Em uma sociedade como a nossa, burgueses tem uma tendência a, sem que alguém pergunte, explicar o que é a vida, o mundo, o bem e o mal, como funcionam as coisas na batalha do dia-a-dia. Basta que lhes apontem os olhos, em silêncio. No caso, uma câmera, que capta o luxo das coberturas e a favela que surge, como uma intrusa, na vista da janela. A desigualdade e injustiça pairam, na forma de um agressivo elefante na sala[1]. Em alguns instantes, o dono do imóvel começará “não, mas veja bem, a vida é uma luta, esse mundo é uma selva, existe uma justificativa para eu estar aqui etc.” ou qualquer variante do gênero, qualquer explicação moral que reinterprete o mundo de um modo bélico, selvagem ou meritocrático. Não deixa de ser curioso que uma defesa de sua condição financeira implique uma redefinição do mundo e da vida como um todo. Ao filmar Oscar Maroni, Mascaro o provoca da melhor forma possível, fazendo perguntas de alto teor filosófico, e deixa o espetáculo ético nas mãos do dono do Bahamas Hotel Club. Ele discorre sobre poder, responsabilidade e justiça (sobra até pra Nietzsche), e nos deixa com a suave nota de que no avião existe a primeira classe e a “senzala lá atrás”, concluindo que na vida é assim também. Mas não deixa de relatar sua tristeza quando vê um pobre sem um Jaguar. Maroni é o exemplo mais gritante do empreendedor explodindo de som e fúria, que se afirma na violência e na força, a versão desmascarada da elite nacional.
É interessante pensar, nessa chave, a profusão de livros de autoajuda que portam títulos cada vez mais agressivos: “Mais esperto que o diabo”, “A coragem de não agradar”, “Fodeu Geral”, “Enfodere-se” e o campeão, “A sutil arte de ligar o foda-se”. Afirmar o mundo dessa forma habilita e moraliza atitudes ancoradas na ferocidade. Em seu ensaio acerca de Leite Derramado, um romance de Chico Buarque, Roberto Schwarz nota que nossa elite permaneceu a mesma desde a escravidão, excetuando um aspecto. Ela se tornou cada vez mais vulgar: “persistiu a desigualdade, desapareceram o decoro e a autoridade encasacada, e não se instalaram o direito e a lei”[2]. No único momento de tensão do filme, o entrevistador não se segura e ironiza, jocosamente, uma mãe e seu filho, pelo excessivo aparato de segurança do apartamento, que beira a paranoia. Nesse instante, a distância entre as gerações torna-se cristalina. A mãe dispara um olhar virulento para a câmera e, não sem uma dose de cordialidade e sutileza, se recusa a continuar a filmagem. O filho, que havia rido, permanece sentado, ingênuo e estupefato, claramente despossuído da sagacidade e malícia da mãe. Tudo indica que a vulgaridade, a ignorância e a naturalização da estrutura opressiva caminham juntas.
O descaso com a civilidade chegou ao ponto de empossarem o sujeito que hoje ocupa a presidência, mas a autoilusão da fineza perdura. Basta notar como muitos dos que o elegeram agora o consideram um bruto, ignorante. Diferente deles, basicamente. Mascaro também nos ajuda a investigar essa elegância remanescente.
O documentário conta com uma variedade curiosa de pessoas. Chama atenção a figura que rompe o que chamaremos de “pacto da elegância”. Uma mulher que, com algum receio, admite que se sente incomodada ao ver seus funcionários chegando e se instalando na cozinha, mexendo nas panelas e afins. Ela gosta da solidão e do silêncio, conferidos pela porta que separa a área de serviço da área de vivência. Prefere não ver o pessoal responsável por sua subsistência. Em momentos como esse, um combinado é rompido. São casos recorrentes na mídia nacional. Desde o indivíduo que antes de ser cidadão é engenheiro civil (o que deve complicar suas idas ao Poupatempo), um desembargador afoito para fazer as vezes de picotadora humana e um empresário que parece acreditar que Alphaville proclamou independência em relação ao país, o que não faltam são episódios como esse no noticiário.
Esses casos geram enorme rebuliço nas redes sociais, agitam conversas das pessoas na sala de jantar e jornalistas esgotam em uma semana todos os trocadilhos possíveis, mas a indignação não é compartilhada com a classe mais pobre do país. No geral, a reação vinda de baixo não é de surpresa, mas de naturalidade, que considera esse comportamento previsível, vindo de quem manda no país. “É terça-feira”[3], o esperado e cotidiano. A indignação das elites não vem de um desgosto ou discordância com o ocorrido, mas de raiva pela pessoa que quebrou o pacto de elegância. Como se dissessem “é claro que nós estamos acima da lei, que podemos agir como bem entendemos sem as consequências implicadas no restante do povo, mas não ajam com tanta desfaçatez!”. O pacto da elegância sustenta a visão de mundo de uma classe que precisa se ver como humanista para operar em um sistema tão violento, opressivo e desigual quanto o nosso. Sustentar a posição de opressor é factível por duas vias. O modo Maroni e o modo elegante. Os adeptos do último incomodam-se com os primeiros, que acusam sua hipocrisia ao se portar de forma tão cruenta e compartilhar de seu status e lugar social.
Resta, depois dessa análise e vislumbre providos por Mascaro, refletir sobre as formas de manifestação e impacto desse setor da sociedade brasileira, e extrair possibilidades e consequências políticas desse quadro. Um outro filme, de Pier Paolo Pasolini, pode nos ajudar.
Em Teorema, observamos uma família burguesa italiana, que recebe em sua casa um jovem sedutor (papel que Terrence Stamp cumpre com perfeição). Aos poucos, cada pessoa da casa sente algo pelo rapaz, que vira suas vidas ao avesso, oferecendo-lhes uma experiência de paixão e sexualidade que nunca tiveram. De repente, tão fugazmente quanto chegou, ele vai embora. E agora? Que faz a família sem ele? Cada um declara para o rapaz quanto suas vidas foram alteradas, quanto eles sentiram, com ele, algo único e inédito, como se sentirão vazios agora. Muito se debate a respeito da figura de Stamp, com a oposição anjo/demônio sendo proeminente na discussão. No entanto, mais interessante seria questionar o que aconteceria se ele não fosse embora. Seu sumiço faz com que os afetados por ele busquem formas de satisfazer os vazios que ele lhes deixou, sempre de modo falho e ineficaz. Longe de representar uma figura teológica, Stamp é a incontingência, o incerto, a experiência radical de se viver, nada mais distante da realidade burguesa. Como um confete repentino, ele pode até ser bem-vindo, gerar uma falsa crise de consciência e reflexão. Eles anseiam pela volta de Stamp, mas a verdade é que, se ele retornasse, em breve seria dispensado. A radicalidade de uma experiência de vida é a denúncia daquilo que se chamou de ennui burguês: o tédio, o marasmo e o conforto. Eventualmente, com a mesma frequência com que se fazem as malas para ir à Disney ou fazer turismo em um país subdesenvolvido, uma figura como Stamp é bem-vinda, ansiada e apreciada. Mas isso tem um prazo de validade.
A burguesia não é uma família, é uma classe. E a família do filme está dentro desse grupo, estruturalmente inserido nesse contexto. Sejamos claros: o que estamos afirmando é que a força da estrutura, a violência do sistema, não cessará de subscrever esse grupo a sua posição estrutural. Uma experiência real será recodificada, uma epifania reificada, um conflito reprimido. Pasolini termina o filme apostando em algo distinto, afirmando que a vida dessas pessoas nunca será a mesma, que nada será como antes. Na última cena, vemos o pai de família vagar desesperadamente por uma espécie de deserto e gritar, apavorado. Mas, novamente, devemos inverter o que está em jogo, pensar um destino oposto. Se o filme não terminasse ali, por exemplo. Não é difícil imaginar um amigo do pai de família, ou um sócio, indo lhe buscar nesse deserto e reinserindo-o em algum emprego, devolvendo-lhe uma função. Depois de um tempo desejando a volta de Stamp, a família naturalmente voltará ao trabalho, às festas, à inexistência subjetiva e metafísica, eternamente fugindo de qualquer confronto que lhes atinja na estrutura que de fato lhes sustenta: o material. Pensar um ato político que gere a epifania e a mudança estrutural: eis nosso desafio.
Ao analisar a famosa frase de Kafka “É claro que há esperança…, mas não para nós”, Giorgio Agamben a coloca como uma clara reinvindicação da necessidade desse processo. Não há esperança para esse modo de vida que levamos, não há horizonte de mudança possível sem que os meios que sustentam nossa forma de viver sejam radicalmente alterados, destruídos enfim. A barafunda absoluta em que o Brasil se encontra é fruto, entre outras coisas, justamente desse modo de existência, absolutamente violento e mascarado, que é o nexo da experiência nacional.
Em um romance recente, Marcelo Vicintin nos sugere que, aqui, o tédio burguês pode ser muito mais pernicioso do que imaginamos. O protagonista de As Sobras de Ontem relata uma consternação insuportável com seu dia-a-dia sofrível. Não que ele não tenha sucesso em todas as esferas alçadas à mais alta relevância em nossa sociedade. Pelo contrário, é um empresário bem-sucedido (com antecedentes familiares que lhe deram o convencional auxílio) com vida social e sexual ativa e destacada. Mas tudo isso o entedia. Não tem emoção, nem risco. Aborrecido, resolve aventurar-se da forma mais brasileira que consegue fabular, e envolve-se em negócios ilegais. Especificamente, no esquema desvendado pela Lava-Jato. O maior crime de corrupção da história do país como corolário da monotonia diária da elite brasileira, essa é a hipótese cínica e por isso provavelmente correta de Vicintin. Nosso maior intérprete já mostrou que o tipo social brasileiro tem o público como espaço de seu recreio privado. Respondendo ironicamente à pergunta de Göran Therborn, “O que a classe dominante faz quando ela domina?”, podemos propor: “bom, depende… quanto tempo livre ela tem?”
Notas:
[1]É interessante notar como essa relação também aparece na constituição do intelectual e no seu papel público. Em um controverso ensaio, Fredric Jameson nota que, em países de 3º Mundo, todo intelectual tem papel político. Não existe intelectual puro, que se resigne a sua área. Podemos especular que isso se dá porque chegar à condição de intelectualidade implica em ter condições de fazê-lo, condições sustentadas por estruturas de opressão e desigualdade. É como se o intelectual tivesse uma dívida moral com a sociedade, posto que ele obteve capacidade de observa-la de modo crítico em um sistema desigual, no qual essa condição só é acessível a parcelas privilegiadas da população. Privilégios obtidos a partir da exploração dos demais. Em países onde a educação de alta qualidade é de fato universal, tal relação de “dívida” não existiria. É interessante pensar na formulação do pensador palestino Edward Said, de que o intelectual tem o dever de falar a verdade ao poder, como um corolário dessa situação. Complacência com a estrutura injusta que organiza a sociedade é inaceitável quando se parte dessa circunstância. Ou seja, a questão chave nessa relação é o dever. O intelectual deve, precisa, só pode estar nessa condição em países de terceiro mundo. Não é que em outros países eles estejam escusados de fazê-lo, mas não tem a obrigação.
[2] Roberto Schwarz, Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p.150
[3] Agradeço a meu amigo Santiago Oliveira pela precisa definição.
* A arte que ilustra o texto é de de Beatriz Serra