Por Vânia Bambirra, traduzido por Lorena Duailibe
O seguinte excerto consiste no primeiro capítulo do livro “Teoría de la dependencia: una anticritica”, de Vânia Bambirra, no qual a autora debate o contexto histórico de elaboração desta teoria.
NOTA PRÉVIA
Não se pretende analisar aqui um balanço analítico exaustivo das múltiplas abordagens críticas que se tem feito sobre a teoria da dependência. Meu objetivo é fazer uma avaliação de alguns dos mais significativos intentos de questionamento das teses da dita teoria feitos por latinoamericanos.
Nós selecionamos, como objeto de análise, três críticas: as de Agustín Cueva1, Octavio Rodriguez2 e Enrique Semo3. A seleção do trabalho de Agustín Cueva se justifica pelo fato de ser o esforço mais amplo que já se realizou até agora de questionamento das teses da dependência. Por isto, a discussão de suas criticas nos permite discutir, por sua vez, varias das impugnações que foram feitas, por outros críticos, ao dito pensamento. A discussão das abordagens de Octavio Rodríguez (que explicitamente não pretendem ser criticas, sem deixar de ser…), é relevante, pois refletem, em boa medida, como reagiram os integrantes da corrente desenvolvimentista da CEPAL frente à abordagem da teoria da dependência. A consideração da crítica feita por Enrique Semo é importante como expressão de um tipo de impugnação que se trata de fazer a este pensamento por parte de setores dos partidos comunistas.
Porém, devo alertar que em alguns dos partidos comunistas houve uma receptividade favorável da referida teoria. Esse novo pensamento (ao qual deram significativas contribuições alguns militantes do próprio Partido Comunista do Chile) influenciou sem dúvida no programa da Unidade Popular; por outro lado, desde o começo dos anos setenta, quiçá pela grande influência que exerceu a UP na esquerda latinoamericana, alguns partidos comunistas começaram a mudar sua concepção estratégico-tática. Sintomas relevantes de reorientação existem, por exemplo, no Partido Comunista Brasileiro. Essas mudanças apontam para a necessidade de definir como inimigo fundamental ao grande capital monopolista e a explicar o caráter da revolução como socialista. Esta influência se manifestou também de certa maneira na reunião dos Partidos Comunistas da America Latina, realizada em Havana em 1975. Um fator sumariamente importante para essa reorientação em curso é a aceitação favorável por parte do Instituto de Economia Mundial da URSS das teses da dependência. Neste sentido, os excelentes seminários realizados por Kiba Maidanic, na Faculdade de Economia da UNAM sobre revolução e contrarrevolução, são de grande significação.
Também é notável o impacto da referida teoria sobre outros partidos de esquerda na America Latina, entre os quais se destacam o MIR venezuelano e o MIR chileno.
Dada a importância política e acadêmica da teoria da dependência, se faz necessária uma discussão mais ampla das principais críticas, posto que até agora esta discussão somente existiu no nível de resposta específica de alguns autores a impugnações particulares que se lhes fizeram. Assim, se tratou de empreender a polêmica da maneira mais objetiva possível, buscando esclarecer as razões de muitas das confusões e equívocos dos questionamentos na abordagem da referida teoria. A principal dificuldade encontrada reside no fato de que por parte dos críticos esta objetividade, no essencial, jamais havia sido lograda, de tal maneira que muitas vezes tive que tratar de expor sinteticamente o núcleo do pensamento a respeito da dependência (que não foi compreendido por seus adversários) e às vezes recorrer a citações mais ou menos extensas tanto dos criticados como dos críticos. Em algumas oportunidades intentei fazer uma refutação quase minuciosa dos argumentos apresentados posto que – como é o caso da análise de Agustín Cueva – não se logrou captar o essencial da teoria da dependência, não se centrou a crítica em sua armação teórica fundamental (em suas categorias analíticas principais, em sua real metodologia, em seus aportes mais substanciais) e limitou-se a questionar alguns aspectos isolados do enfoque, sob uma interpretação pouco rigorosa. O leitor saberá julgar se este esforço de resgatar o relevante aporte deste pensamento logrou êxito.
A propósito, é claro que este intento de dirimir algumas das mais significativas confusões criadas pelos críticos da teoria da dependência se faz com base em contribuições dadas e a minha vivência pessoal em ambientes no seio dos quais este pensamento se desenvolveu de maneira intensa nos anos sessenta. Não há pois de minha parte, neste trabalho, nenhuma contribuição nova a referida teoria. Ademais, nossa pretensão aqui não vai além de esclarecer fatos, concepções, intentar resgatar a objetividade que é imprescindível para a compreensão de um pensamento e finalmente discutir formulações críticas que considero equivocadas.
Quero constatar, mais uma vez, meu agradecimento àqueles companheiros com os quais mantenho no curso de vários anos um intenso diálogo sobre o caráter e as perspectivas da revolução latinoamericana e que novamente tiveram a paciência de ler e discutir este trabalho: me refiro a Ruy Mauro Marini e a Theotonio dos Santos.
Meus agradecimentos também pelos comentários e esclarecimentos que me fizeram Samuel Lichtensztein, Pedro Paz e Agustín Cueva, a Orlando Caputo e especialmente às críticas e sugestões de Raimundo Arroio.
A Divisão de Estudos Superiores da Faculdade de Economia da UNAM me outorgou as condições para a realização deste trabalho. A esta instituição, e em particular a seu diretor Pedro Lopez Diaz, devo deixar constatado meu agradecimento.
Qualquer esforço no esclarecimento de aspectos de um pensamento comprometido com a transformação revolucionária de nosso continente está dirigido, em primeira instância, àqueles que estão empenhados praticamente nela. Por isto dedico esta polêmica a todos os que lutaram e necessariamente se equivocaram muitas vezes, mas estão tendo a capacidade de sobrepor-se a derrotas momentâneas e estão tratando de compreender mais a fundo o caráter de nossas sociedades para colaborar decisivamente na superação radical do capitalismo dependente.
Quero terminar esta nota com uma citação de Moisés Moleiro:
Ninguém duvida que para avançar com êxito a tarefa de transformar uma sociedade determinada é preciso caracterizá-la adequadamente, apreender suas determinações essenciais. Noutras palavras, saber com precisão o que é, quais forças se movem em seu seio, onde é possível orientar sua transformação. Em nosso caso, consideramos um importante esclarecimento do movimento popular venezuelano, por parte dos socialistas, ter-se deixado de lado a chamada teoria das etapas e começar a compreender a formação econômico-social venezuelana como se apresenta realmente aos olhos do estudioso: como uma sociedade capitalista dependente. O domínio nela se exerce fundamentalmente através da exploração do trabalho assalariado, e é a base a partir da qual se constrói a ordem. Isso define a luta pelo socialismo como tarefa historicamente atual, inscrita na ordem do possível e do imediato.
Esperamos que a este nível de compreensão ascenda toda a vanguarda revolucionária latinoamericana.
I. CONTEXTO HISTÓRICO DA TEORIA DA DEPENDÊNCIA
O conjunto de estudos sobre as relações de dependência na América Latina – que por seu volume, fundamentação teórica e empírica e pela análise sistemática de suas relações tem sido chamada de teoria da dependência – se realiza a partir da década de sessenta e se desenvolve com uma preocupação fundamentalmente crítica.
Não é o caso de repetir aqui análises feitas por outros, mas vale a pena mencionar que o conceito de dependência utilizado pelos marxistas e pelos que, não podendo ser estritamente definidos como tais, se localizam dentro de uma postura de esquerda, não surge do nada na América Latina. Em seu ponto de partida se dispôs de toda uma tradição histórica polêmica no seio do pensamento marxista ao largo de sua evolução. São pois antecedentes teóricos e políticos as análises de Marx e Engels sobre a situação colonial; a polêmica dos socialdemocratas russos e de Lenin em particular contra os narodnik-populistas; a teoria do imperialismo e seus alcances na situação colonial elaborada por Hilferding, Bujarin, Rosa Luxemburgo e particularmente por Lenin; a polêmica sobre a revolução colonial realizada no II Congresso da Comintern que culmina com a elaboração das teses sobre as questões nacional e colonial por Lenin; as considerações posteriores feitas por Lenin mesmo, de caráter disperso mas de todos os modos muito significativas; a aplicação criadora do marxismo-leninismo exposta por Mao Zedong em várias de suas obras; e, finalmente, o intento de aplicação do método de análise marxista para a compreensão do fenômeno do “subdesenvolvimento” realizado por Paul Baran nos anos cinquenta4.
Porém, pese a que é conveniente ter presente este amplo marco de referência teórica, se se quer compreender profundamente os antecedentes teóricos deste pensamento latinoamericano, seu móvel imediato deve ser buscado no intento de superação de duas grandes vertentes da interpretação do processo de desenvolvimento no continente: a elaboração feita pelos partidos comunistas neste período, sob a influência do kruschovismo, e a da Comissão Econômica para a America Latina (CEPAL).
Cabe perguntar: por que era necessário questionar e tratar de superar essas duas amplas correntes de pensamento que buscavam expressar os interesses das duas classes fundamentais? Sabemos que as teses dos partidos comunistas correspondiam, ou pretendiam corresponder, ao pensamento hegemônico na classe operária e a CEPAL ao da burguesia industrial nacional latinoamericana.
A resposta a esta interrogação deve ser encontrada na profunda crise estrutural que açoita o capitalismo dependente na América Latina e que se manifesta de maneira incontrovertida a partir dos primeiros anos da década de sessenta. Essa crise generalizada – econômica, política, social e cultural – derruba o conceito estratégico-tático dos partidos comunistas, que fundada em uma interpretação dogmática e esquemática da realidade latinoamericana preconizava uma aliança de classes exploradas com a burguesia nacional progressista – dentro da qual o proletariado deveria lutar por sua hegemonia – para alcançar a instalação de governos nacionalistas e democráticos, vale dizer, “antioligárquicos”, “antifeudais” e “anti-imperialistas”. E derruba, também, todos os supostos básicos nos quais se assentava a teoria desenvolvimentista da CEPAL, que foi por demais analisada e criticada exaustivamente mas que vale a pena resumir em linhas rasas: o suposto de um “modelo” de desenvolvimento calcado dos países desenvolvidos ao qual deveria encaminhar-se a América Latina; para isso era necessário – e se acreditava possível – eliminar os obstáculos sociopolíticos e culturais ao desenvolvimento que estavam incrustados nas chamadas “sociedades tradicionais” através da utilização racional dos recursos nacionais por meio de uma abordagem racional; como condição disso era necessária a mobilização e organização da vontade nacional para a política de desenvolvimento. Esse suposto básico de que o desenvolvimento interessa a todos (sem perguntar por certo que tipo de desenvolvimento interessa a cada classe) dava a premissa chave para uma ideologia do desenvolvimento. Essa ideologia já vinha sendo promovida na America Latina através das melhores expressões do nacionalismo populista.
Pois bem, a crise do capitalismo dependente questionava todos esses supostos que se condensavam na ilusão da possibilidade de um desenvolvimento nacional autônomo. A crise desnudou uma realidade que era outra e contradizia os esquemas aparentemente muito lógicos. A crise descobria o novo caráter da dependência na América Latina. Esta, ao gerar novas e mais agudas e irresolúveis contradições, liquidava definitivamente a possibilidade de um desenvolvimento capitalista nacional autônomo no continente. Este novo caráter da dependência, que começa a configurar-se a partir do pós-guerra, provinha do fato de que a penetração do capital externo já não se circunscrevia somente ao setor primário-exportador senão que paulatinamente se dirigia ao setor manufatureiro através de inversões diretas de capital-maquinaria. As burguesias industriais – ali onde tiveram a possibilidade histórica de desenvolver-se como tais – não tem outra opção para sobreviver como classe que associar-se, na condição de sócio menor, ao capital estrangeiro. São muitos os fatores que determinam a marcha inexorável desse processo de associação das burguesias crioulas ao capital estrangeiro, como são vários os fatores que explicam o porquê desta penetração, mas esses aspectos já foram analisados em outras partes por vários autores e por mim mesma; não é pois o caso de repeti-los aqui. Somente interessa sublinhar – uma vez mais – que o resultado da desnacionalização da propriedade privada dos meios de produção deveria determinar o fim dos projetos de desenvolvimento nacional autônomo. A consequência desse processo no plano político foi sem dúvida o abandono realista, por parte das burguesias nacionais, do nacionalismo populista, isto é, da ideologia que preconizava o desenvolvimento nacional anti-imperialista com base na pretendida aliança com as classes dominadas.
Ademais, essa pretendida aliança era algo quimérico no cenário sociopolítico que se configura na América Latina a partir do começo dos anos sessenta. Nos primeiros anos dessa década gestou-se uma clara situação de ascensão do movimento operário e popular; greves operárias, manifestações estudantis, movimentos camponeses, setores de subempregados que foram chamados “marginais” e que interrompem o cenário político de maneira até então inédita, manifestações de protesto por parte dos intelectuais, intentos ainda precários mas em todo caso significativos de coordenação entre as diversas classes exploradas, surtos de rebelião no seio das forças armadas… A oposição ao sistema enquanto tal tende a configurar-se e busca suas formas de expressão e organização, embrionárias, é certo, mas potencialmente ameaçadoras pois a revolução cubana avança ao socialismo e indica um caminho: para lograr a libertação nacional e social deve-se liquidar a base de sustentação da dominação imperialista, o capitalismo dependente. A revolução cubana demonstra na prática o que teoricamente era óbvio: o socialismo é viável e necessário na America Latina.
Nesse contexto, as burguesias latinoamericanas não tem nenhuma política acessível para propor no interesse dos povos. Somente lhes restam os regimes de exceção, única saída para conter o avanço do movimento popular e revolucionário; para possibilitar a implementação de uma política econômica de estabilização monetária – preconizada pelo Fundo Monetário Internacional – cujo objetivo é conter a inflação, dar segurança aos investidores estrangeiros, gerar, em suma, os pré-requisitos para um novo ciclo de acumulação, com base fundamentalmente na contenção do salário dos trabalhadores e na restrição de créditos da pequena burguesia, o que favorece as grandes empresas controladas pelo capital estrangeiro e acelera o processo de concentração, centralização e monopolização da economia. Esse novo modelo de acumulação, proposto pelo imperialismo, é incompatível com a democracia e somente pode ser implementado por regimes de corte neofascistas.
Em 1964, o golpe militar no Brasil inaugura na América Latina o novo modelo de regime repressivo no político e no econômico: as forças armadas assumem a gestão do governo e passam a implementar, lado a lado com as melhores expressões do grande capital crioulo associado às grandes corporações imperialistas, um “modelo” que logo servirá de inspiração a todo o cone sul do continente, pese a que esta experiência pioneira coexistirá por algum tempo com intentos fraudulentos de desenvolvimento na democracia, como a “revolução da liberdade” de Frei no Chile, e com o intento de superação do capitalismo dependente através da utilização da democracia burguesa, no mesmo Chile de Salvador Allende.
Não foi, pois, ao acaso que os primeiros intentos de elaboração da tese sobre a dependência tenham surgido no Brasil, nos primeiros anos da década de sessenta, por parte dos intelectuais e militantes da chamada esquerda revolucionária. No Brasil, a ideologia nacionalista havia chegado ao auge desde a formação, durante o governo Kubitschek, do Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Em vários ambientes universitários, em setores da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Minas Gerais e no departamento de Ciências Humanas e Filosofia e de Economia da Universidade de São Paulo, começaram-se a questionar a tese do ISEB e a esboçar as da dependência. Da mesma maneira, nas organizações de esquerda denominada Política dos Trabalhadores tratou-se de desenvolver esta tese na busca de uma fundamentação mais sólida para contestar os argumentos que defendiam a aliança de classes que preconizava o Partido Comunista e que havia sido levada à prática no governo de Goulart. Todavia, foi somente no Chile onde essa tese pode ser sistematizada e elaborada de maneira mais definitiva, pois ali as condições eram ótimas para que esta corrente de pensamento se desenvolvesse.
As razões que explicam este fato são várias: no Chile convergiram, a partir de meados dos anos sessenta, militantes e intelectuais revolucionários de diversos países onde o movimento revolucionário havia sofrido uma derrota momentânea ou onde este acumulava forças para uma nova ofensiva. O Chile se transformou, naquela época, em um dos mais importantes centros de resistência latinoamericana contra as ditaduras. A burguesia chilena podia então se dar ao luxo de permitir que regimes repressivos fossem abominados em seu território. Ademais, no Chile também chegou a literatura que era porta-voz das resistências dos povos do continente que refletiam seus reveses, suas esperanças, mas sobretudo a experiência de lutas que se ia acumulando. O Chile era um país muito afetado pela crise econômica e a dominação imperialista se acentuava sob o governo de Frei; mas o movimento popular, pese a derrota do FRAP em 1964, já começa a se preparar para a contenda do ano 1970 e mantinha sua personalidade própria, seu peso específico e ameaçador na sociedade chilena. Havia, pois, uma ampla abertura e o estímulo para o desenvolvimento da ciência social revolucionária.
Há outro fator relevante: no Chile estava localizada a sede central dos organismos das Nações Unidas, a CEPAL e o ILPES. Paradoxalmente, foi do seio destas instituições, particularmente da segunda, que proveio boa parte do questionamento de sua própria concepção. Por que isso ocorreu? Estes organismos, nessa época, puderam atrair parte da melhor intelectualidade da esquerda latinoamericana. Tal atração quiçá se explique pelo fato de que esta intelectualidade buscava um ambiente mais livre onde pudesse desenvolver suas ideias. E o Chile oferecia então essa grande vantagem. Trabalhavam, nessa época, nestas instituições pessoas que deram uma significativa contribuição aos estudos da dependência. Penso em Fernando Henrique Cardoso, Aníbal Quijano, Edelberto Torres, Francisco Weffort, Tomás Amadeo Vasconi e outros. O significativo foi o ambiente de discussão que se pode armar através de um conjunto de seminários entre essas pessoas e a equipe de pesquisa sobre imperialismo e dependência dirigido por Theotonio dos Santos, que funcionava na Faculdade de Economia da Universidade do Chile, no Centro de Estudos Socioeconômicos (CESO). No Chile se gerou um ambiente fecundo de intercâmbio de ideias que logo foi enriquecido com a chegada de Andre Gunder Frank e Ruy Mauro Marini ao CESO5.
Ademais, na CEPAL e no ILPES, haviam vários economistas como Pedro Paz, Maria de Conceição Tavares, Carlos Loesa e Antonio de Barros Castro quem, provenientes da tradição de pensamento estruturalista, começou um relevante esforço crítico de suas origens teóricas.
Esse ambiente político e acadêmico foi sem dúvida um forte estímulo para a jovem intelectualidade chilena, da qual surgiram muitas das mais significativas contribuições para a nova abordagem. Penso em Enzo Faletto, Orlando Caputo e Roberto Pizarro, em Alvaro Briones, Sergio Ramos, cujas obras já foram muito divulgadas, mas há muitos outros. Sem dúvida, a intensa polêmica realizada então sobre a dependência, ao influenciar de maneira significativa na elaboração do programa da Unidade Popular, marcou uma evolução qualitativa na estratégia de luta revolucionária na America Latina. O programa da UP contemplava como meta não somente acabar com a dominação oligárquico-imperialista, senão que declarava explicitamente nacionalizar as grandes empresas monopolistas industriais, mineradoras, agrícolas, etc., isto é, golpear o eixo básico da dominação burguês-imperialista e avançar ao socialismo. Desta maneira, a UP tratava na prática de implementar a concepção que havia sido demonstrada pela revolução cubana e confirmada pelas investigações teóricas e empíricas a respeito do capitalismo dependente: que o imperialismo era um elemento constitutivo interno do sistema de dominação e que para realizar uma política consistente de liberação nacional e social, era preciso superá-lo avançando para o socialismo.
Foi, pois, nesse contexto político e acadêmico que se sistematizou, com a ajuda de muitas mãos e muitas cabeças e, sobretudo, de muitas experiências de luta, materiais, datas, etc., a teoria da dependência logo se espalhou pelo continente, e tanto interesse despertou e segue despertando em quase todo o mundo. Por certo, em que pese o fato de que no Chile estava localizado geograficamente o núcleo principal de seus elaboradores, de várias partes vieram contribuições muito importantes para a nova abordagem. Penso, por exemplo, nos trabalhos de Hector Silva Michelana, na Venezuela; de Alonso Aguilar, Fernando Carmona e demais companheiros do Instituto de Pesquisas Econômicas da UNAM no México, assim como de Pablo Gonzalez Casanova; de Norman Girvan do Caribe; de Mario Arrubla da Colômbia; no trabalho do Instituto de Economia da Faculdade de Ciências Econômicas e de Administração da Universidade da República Oriental do Uruguai e muitos outros. Foi nas universidades, não propriamente nos partidos políticos de esquerda, particularmente nas Faculdades de Economia, onde os estudos sobre a dependência puderam se desenvolver, pese a que vários de seus elaboradores eram militantes políticos partidários. Isso é normal, pois desde que as universidades se separaram, ao menos formalmente, da interferência do Estado, pode-se desenvolver em seu interior um pensamento livre, científico e contestatório. No entanto, hoje em dia, visto que o terror se generalizou por todo cone sul do nosso continente, muitas das pesquisas em curso ou em processo foram interrompidas, as equipes de trabalho se dispersaram e os resultados se viram por certo afetados, salvo em algumas poucas partes onde sem dúvida prosseguem-se os esforços para fazer avançar o conhecimento objetivo e sem restrições da nossa realidade.
De todo modo, eu não creio que hoje, se fizermos um balanço rigoroso do que se tem avançado, e não uma ausculta superficial de contribuições parciais, como costumam fazer os críticos, no essencial as bases da teoria da dependência foram lançadas, isto é, sua formulação teórica e sua comprovação empírica estão elaboradas de maneira coerente, sistematizadas e demonstradas num conjunto de obras fundamentais cujo conhecimento é indispensável para todos aqueles que estão preocupados e comprometidos, não somente com a compreensão da realidade senão sobretudo com sua transformação. É por isso que considero que os estudos a respeito da dependência adquirem um status de teoria. Obviamente não no sentido de uma teoria geral do modo de produção capitalista, pois isso foi feito por Marx; nem tampouco do “modo de produção capitalista dependente”, pois isso não existe; senão do estudo das formações econômico-sociais capitalistas dependentes, isto é, uma análise a um nível de abstração mais abaixo, capaz de captar a combinação específica que coexiste na América Latina sob a hegemonia do capitalismo.
No meu entendimento, a teoria da dependência deve entender-se como a aplicação criadora do marxismo-leninismo à compreensão das especificidades que assumem as leis de movimento do modo de produção capitalista em países como os latinoamericanos, cuja economia e sociedade, conformadas depois da destruição das sociedades indígenas, foram produtos do desenvolvimento do modo de produção capitalista primeiro na Europa, em seguida nos Estados Unidos, e são redefinidas em função das possibilidades estruturais internas, isto é, da diversificação do aparato produtivo. Uma abordagem desse tipo não permite de maneira nenhuma – e aqui estamos contestando uma crítica feita à teoria da dependência – interpretar tal postulação como não marxista por supor que isso significa partir da circulação e não do processo produtivo. As formulações mais rigorosas a respeito do condicionamento exercido pelos países capitalistas mais desenvolvidos do século XIX sobre a formação econômico-social dependente capitalista exportadora trataram de fundamentar este condicionamento em função das mudanças substanciais que ocorreram no sistema produtivo daqueles países.
Na minha pesquisa sobre o processo de acumulação e reprodução dependentes, abordei a questão claramente, e obviamente, minha abordagem não era nova porque estava enquadrada nas análises que estavam sendo feitas e que eu tratei no meu livro de apresentar da maneira mais didática possível. Assim eu dizia: “Que fatores impulsionaram a formação das relações de produção capitalista e do mercado interno desses países?” (Me referia ao México, Brasil, Argentina, Uruguai e Chile nos finais do século XIX). “A resposta final a esta questão está nas transformações que ocorrem no processo produtivo dos centros mais desenvolvidos do sistema capitalista mundial – particularmente na Inglaterra – a partir da segunda metade do século XIX.”6
Tratamos em seguida de mostrar as modificações que ocorrem no seio desses países no sistema produtivo com o objetivo de adapta-los às novas necessidades da nova etapa de expansão do capitalismo mundial. Logo analisamos como o sistema produtivo dependente tende a diversificar-se em função dessa divisão internacional do trabalho; como surge e se desenvolve a indústria e como isso em longo prazo tende a rearticular o sistema produtivo criando as condições para a superação dessa divisão internacional do trabalho, isto é, entre países produtores de matérias-primas e produtos agrícolas e países manufatureiros.
Mas nossos estudos sobre a dependência, realizados em equipe de pesquisa do CESO, foram mais longe ainda e tratou-se de demonstrar como não se pode analisar o processo de reprodução do sistema capitalista dependente desvinculado do sistema capitalista mundial simplesmente porque a reprodução dependente do sistema passa pelo exterior, isto é, num primeiro momento os setores I (bens de produção) e II (bens de consumo manufaturados) estão no exterior, logo, com o desenvolvimento do processo de industrialização, o setor II se desenvolve no seio de várias das economias latinoamericanas, mas o setor I, não; para que o sistema se reproduza tem que importar maquinaria. A partir dos anos cinquenta o setor I começa a ser instalado na América Latina (em alguns casos antes), mas segue dependendo, para seu funcionamento próprio e expansão, de maquinaria estrangeira. Essa maquinaria, a partir desse período, não chega como mercadoria-maquinaria senão como capital-maquinaria, isto é, sob a forma de inversões diretas estrangeiras. Essa é a especificidade da reprodução dependente do sistema: a acumulação de capitais passa pelo exterior através da importação de maquinaria; logo, quando esta começa a ser produzida internamente – somente em alguns países e com muitas limitações, pois os setores de ponta, como eletrônica, energia solar, etc., são monopólios dos países mais desenvolvidos –, está controlada diretamente por grupos estrangeiros, e embora já comece a suprir as necessidades de máquinas do setor II – que por certo também passa a ser controlado em grande parte pelo capital estrangeiro – segue dependendo da maquinaria-capital do setor I dos países capitalistas desenvolvidos.
A compreensão desse processo de reprodução dependente é crucial para vislumbrar as limitações específicas e objetivas do desenvolvimento do capitalismo dependente, sobretudo quando se logra perceber como atuam sobre ele os mecanismos acumulativos da dependência como são a descapitalização, provocada pelas múltiplas formas de remessas de lucros, os consequentes déficits das balanças de pagamentos, a necessidade crescente de novos empréstimos e “ajudas” do capital estrangeiro, e seu resultado: o crescimento do serviço de débito, um déficit progressivo e o círculo vicioso da necessidade de mais capital estrangeiro. E é este marco que nos permite compreender em toda sua magnitude o porquê das dívidas colossais externas dos países mais desenvolvidos da América Latina, como Brasil, México e Argentina.
São todos esses elementos os que permitem explicar o agudo quadro de crise que atravessam nossos países e questionam radical e definitivamente a possibilidade de um desenvolvimento nacional autônomo, tal qual preconizava a CEPAL e no qual acreditavam os partidos comunistas.
Sim, a teoria da dependência se desenvolveu na América Latina como uma teoria essencialmente crítica. Mas dentro desse estilo positivo de crítica que, como dizia Cardoso, “destrói os enganos, incorpora os avanços e supera a posição anterior”.
Uma reflexão acerca da incorporação dos avanços: nenhum pensamento novo surge do vazio. Assim como os estudos da dependência assimilaram uma vasta tradição do pensamento marxista (como dissemos, não mergulharemos nela aqui, pois essa análise já foi feita por Theotonio dos Santos), da mesma maneira teve que incorporar avanços provenientes do pensamento nacionalista de esquerda e desenvolvimentista. Seria absurdo e grotesco negar que os teóricos dos partidos comunistas como um R. Arismendi, ou historiadores que buscam aplicar o materialismo histórico como Caio Prado Junior, Nelson Werneck Sodré, Sergio Bagú, entre outros; ou desenvolvimentistas como Celso Furtado, não contribuíram nada ao conhecimento da realidade latinoamericana. Obviamente o contribuíram e muito. No caso dos da esquerda, em que pese a várias limitações que se podem encontrar em sua obra, tratavam de fazer as análises mais objetivas possíveis a fim de compreender para transformar. No caso do desenvolvimentismo, que foi a expressão mais elaborada no continente da ciência social burguesa, a propósito da visão de mundo burguesa tinha que tratar de ser o mais objetiva possível, pois a burguesia, sobretudo enquanto é revolucionária necessita, para o funcionamento e afirmação de seu sistema, do conhecimento objetivo. Por isso, para prestar serviços eficientes a sua classe a CEPAL buscava sempre objetividade, obviamente dentro de seus limites, que estão dados pelo fato de que sendo uma instituição do sistema, enquanto tal não pode questioná-lo e, por isso, suas análises tendem a perder objetividade e adquirir um corte nitidamente ideológico. Em 1949, quando surgem às primeiras análises dessa instituição o novo caráter da dependência ainda não estava plenamente configurado e era a própria burguesia latinoamericana quem sonhava com um desenvolvimento nacional autônomo. Nos anos sessenta, consumada a mudança de situação e de posição da própria burguesia, a teoria “cepalina” deixa de corresponder aos interesses próprios da classe que buscava orientar e passa a corresponder a um utópico sonho pequeno-burguês. Mas muitas das análises sobre aspectos parciais da realidade que esta instituição havia realizado, muita da documentação empírica que havia organizado e processado e inclusive muitas de suas categorias de análises, correspondiam a uma descrição mais ou menos objetiva de seus objetos de investigação. O que havia de ser questionado a fundo eram seu método de análise, seus pressupostos teóricos e políticos, o foco dos problemas e desde logo as soluções que preconizava. A respeito dessas últimas a própria prática econômica e política foi o melhor juiz.
Houve nos estudos da dependência duas grandes vertentes: uma, que tratou de incorporar criticamente os avanços do desenvolvimentismo refletidos, por exemplo, em algumas categorias de análises que sem dúvida ajudaram a compreender determinados fenômenos, mas sempre tratando de especificá-las em função de um maior rigor analítico. Do ponto de vista estritamente marxista, não há nada de deplorável nisto: foi o mesmo Marx quem melhor soube “roubar” várias das categorias analíticas burguesas e especificá-las de acordo com sua concepção. Todos sabemos que o marxismo é, em boa medida, um produto da assimilação crítica e da superação da economia clássica burguesa. Mas houve também uma segunda vertente nos estudos da dependência. Esta não logrou uma ruptura com o desenvolvimentismo. Uma de suas expressões está contida nas obras de Oswaldo Sunkel. Essa é a corrente chamada estruturalista dos estudos sobre a dependência. Os problemas da dependência foram abordados por essa corrente sob a ótica desenvolvimentista e homens como Aníbal Pinto, por exemplo, jamais chegaram a compreender os aspectos essenciais que distinguem suas abordagens das da teoria da dependência. Essa é, em geral, a atitude de quem dessa corrente considera que à CEPAL cabe o mérito de haver não somente investigado como também resolvido as questões da dependência. O trabalho de Octavio Rodriguez é outra expressão da tal interpretação que discutiremos posteriormente. É claro que os “cepalinos” trataram, e inclusive primeiro que os outros, da temática da dependência. Mas como a trataram? Descreviam e analisavam os fenômenos como “deterioração dos termos de troca”, as “inversões estrangeiras”, o “endividamento externo”, a “dependência externa”, desenvolveram inclusive toda uma metodologia para a análise da balança de pagamentos, analisaram a situação social da América Latina, etc., mas por limitações teóricas, metodológicas e políticas de sua abordagem jamais lograram captar os aspectos essenciais da situação de dependência. Isso porque, no fundo, eram objetivos na descrição dos fenômenos e sempre ideológicos quando buscavam explicá-los.
Há casos também de estudiosos da dependência que trataram de superar o pensamento “cepalino” e inclusive desenvolver uma análise marxista com a melhor das intenções, não obstante sem lográ-lo em aspectos fundamentais. Gunder Frank tem sido muito criticado a esse respeito e algumas com procedência. Mas vamos às críticas.
[…]
[1] Agustín Cueva, “Problemas y perspectivas de la teoría de la dependencia”. Centro de Estudios Latinoamericanos, Faculdade de Ciencias Politicas y Sociales, Universidad Nacional Autonoma de México.
[2] Octavio Rodríguez, “Informa sobre las criticas a la concepcion de la CEPAL”. Programa Nacional de Capacitación Tecnoeconómica de la Secretaria de la Presidencia, Curso de Planificación e Desarrollo, México, 1974.
[3] Enrique Semo, La crisis actual del capitalismo. Ed. de Cultura Popular, México, 1975.
[4] Uma análise desses antecedentes o fez Theotonio dos Santos, “Antecedentes teóricos del concepto de dependencia”. Imperialismo y dependencia. Ed. Era, México, 1978, cap. VI.
[5] A tentativa da dependência se deslocou também a outras instituições como o Centro de Estudos da Realidade Nacional (CEREN), a Escolatina e à Faculdade Latinoamericana de Sociologia (FLACSO). Ademais, surgiram significativas abordagens, em especial sobre o caso chileno, entre os que merecem destaque a pesquisa de Alberto Martínez e Sergio Aranda sobre monopólio e concentração no Chile, assim como a pesquisa de Oscar Garretón sobre as grandes empresas no Chile. Tais trabalhos foram antecedentes valiosos para o programa econômico da Universidade Popular, elaborado por um grupo de economistas sob a direção de Pedro Vuscovic.
[6] Vania Bambirra, El capitalismo dependiente latinoamericano. Santiago de Chile, 1973, y Ed. Siglo XXI, México, 1974, p. 33.