Nazifascismo e bolsonarismo: aproximações e diferenciações

Por Mauricio Miléo

O fascismo se caracteriza por ser um modelo de Estado no qual vigora um regime político centralizador, cujos depositários do poder controlam a economia de mercado em benefício dos grupos alinhados com sua doutrina oficial. Assim, o governante se habilita a coordenar todas as esferas da vida social e privada de modo a não permitir qualquer manifestação política ou cultural autônoma. No fascismo impera um sistema de partido único que não concede espaço a oposições,  o que se impõe pela estrita censura à informação e por um rígido controle policial sobre a sociedade, direcionado especialmente a conter demandas das classes assalariadas e a esmagar o pensamento crítico.

Visceralmente conservador, o fascismo é inimigo de ideias e práticas progressistas, contrapondo aos sentidos libertários o projeto de moldar um tipo de consciência nacionalista unitária, em que se rejeita qualquer inclinação ideológica desviante. Busca dissolver todas as contendas inerentes a complexas sociedades humanas por meio da ideia de que nenhum interesse individual ou de um grupo deve sobreviver à premissa de que existe apenas uma nação, um só povo e uma só liderança possível. Por pretender a fusão entre Estado e sociedade, ou ainda, entre regime e movimento político, o fascismo pressupõe a mobilização permanente de suas bases de apoio. Não há paz no horizonte; a violência é regra.

O fascismo surge como alternativa autoritária em meio a agudas crises sociais generalizadas e como reação às tendências políticas liberais ou socializantes às quais atribui todos os males da nação (no caso da Alemanha das décadas de 1920 e 1930, a “culpa” recaiu também sobre os judeus). A Alemanha e a Itália forneceram modelos mais expressivos e catastróficos de regimes fascistas, mas, pela mesma época, as ideias que davam suporte ao fascismo apareceram por todos os lugares na esteira da Crise de 1929, que suscitou a crise do liberalismo e a possibilidade, muitas vezes remota, de revoluções sociais à esquerda.

O advento do Estado Novo, em 1937, sob a ditadura de Getúlio Vargas, expressou a guinada do Brasil à vaga histórica do fascismo, embora aqui nem todas as características dessa ideologia de Estado tenham sido consumadas de acordo com as matrizes europeias. O Integralismo, por sua vez, surgido poucos anos antes sob a liderança de Plínio Salgado, foi um movimento plenamente identificado com as versões italiana e alemã do fascismo.

Atualmente diversas expressões do fascismo têm vindo à tona em meio à crise econômica na qual se mergulha o Ocidente, ainda que seus postulantes, declarados ou não, não tenham ainda força suficiente para um confronto direto com os pilares  dos regimes democrático-liberais de seus respectivos países, nos quais seguem vigorando o sufrágio universal, a representação sindical, uma maior ou menor liberdade de imprensa, judiciário independente, dentre outros componentes.

O Brasil e o fascismo

Não se pode dizer que o Brasil esteja passando pela consolidação de um Estado de tipo fascista. Com efeito, as instituições republicanas seguem funcionando, ainda que o governo Bolsonaro se esforce em expandir cada vez mais seus métodos de controle autoritário sobre elas. Entre os regimes fascistas da Europa do século passado e o bolsonarismo do Brasil do presente há uma enormidade de diferenças e apenas algumas semelhanças, que se situam sobretudo no campo ideológico, repercutindo em alguma medida nas relações sociais. Contudo, não há no país uma ditadura de partido único, e tampouco uma ideologia oficial que seja introduzida à força na vida pública e privada, de modo que consiga desautorizar fatalmente todo e qualquer ideário destoante.

Ainda que quisesse, a elite econômica encontraria diversas dificuldades para forçar tal estado de coisas no Brasil, dentre elas o fato de o país ter uma complexidade social que cria entraves a qualquer tentativa de homogeneização político-cultural, como o fascismo sugere que ocorra. Há também formas de comunicação bem mais dinâmicas do que no passado, dificultando o monopólio da palavra por um único partido político ou setor político organizado. Em termos de partidos atualmente existentes, sequer há um que se apresente como capaz de unificar as muitas tendências afeitas ao autoritarismo existentes na sociedade civil, o que faz com que os anseios mais conservadores geralmente se dirijam às Forças Armadas a fim de se obter respaldo.

Não obstante, o recrudescimento da extrema-direita em todo o mundo aponta para ameaças reais à democracia. É partindo dessa preocupação que nos últimos anos alguns livros de destaque vieram a público abordando a temática, casos de Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, e Como a democracia chega ao fim, de David Ruciman. Em ambas as obras os autores sugerem que uma eventual solidificação do domínio de extrema-direita não repetiria as mesmas fórmulas de ascensão ao poder do passado, mas, sim, carregariam elementos bem mais aderentes às sociedades do século XXI. De qualquer forma, revisitar o passado e tecer paralelos com o presente continua sendo uma base importante para os esforços de se impedir que o fascismo aconteça novamente.

É o que se tentará fazer adiante de modo bastante modesto, por meio da correlação entre elementos da Alemanha de ontem e do Brasil de hoje.

Ideologia ultranacionalista

Na Alemanha dos anos 1920, década em que o nazismo iniciou seu caminho ao poder, havia grande ressentimento de uma parcela da população – sobretudo da classe média – em relação à República de Weimar. Naquele tempo, pela primeira vez em sua história, os alemães experimentavam viver sob um regime democrático, o que só se tornou possível após a catástrofe da Primeira Grande Guerra (1914-1918). Desde o princípio, no entanto, os inimigos da democracia insuflavam aquilo que ficou conhecido como a “lenda da punhalada pelas costas”, segundo a qual os termos da paz que puseram fim ao conflito mundial foram aceitos de forma humilhante pelos  negociadores social-democratas alemães, impedindo a vitória nos campos de batalha. É sabido, no entanto, que o Alto Comando Militar da Alemanha havia chegado à conclusão de que a derrota era certa, e que o melhor a se fazer era transferir o governo para os civis para que, dessa forma, se diminuíssem suas responsabilidades pelo fracasso. Sendo àquela altura o mais influente dentre os partidos alemães, o Partido Social-Democrata aceitou a missão de remediar a situação e pôr fim ao guerra, o que finalmente ocorreu com a assinatura do Tratado de Versalhes.

Com o passar dos anos o descrédito à democracia cresceu, chegando ao seu ápice com o agravamento da Grande Depressão iniciada em 1929, que atingiu em cheio a Alemanha. A extrema-direita atribuía as responsabilidades pela deterioração da situação social aos partidos liberais, aos social-democratas e aos comunistas. É somente a partir desse momento que os nazistas se tornaram uma força política preponderante, ofuscando os demais partidos de direita. Em comum os agrupamentos de direita tinham o costume de se remeter ao passado antidemocrático e autoritário, principalmente à era em que o chanceler Otto von Bismarck ocupou o poder (1862-1890), como o período em que a Alemanha foi mais gloriosa.

Bismarck foi o arquiteto da unificação alemã após a qual o país se desenvolveu consideravelmente, expandiu sua força militar e se tornou um forte competidor internacional de mercados. Foi também um período marcado pela intensa repressão política imposta especialmente aos social-democratas (os comunistas surgiriam como força independente somente após a Primeira Guerra). Em um tempo marcado pelos nacionalismos europeus e pela rivalidade entre estes, o surgimento do Império Alemão, sob o comando de Bismarck, inspirou o desenvolvimento do pangermanismo, um movimento político nacionalista que defendia a união dos povos germânicos da Europa Central e que tinha um forte componente antijudaico.

É comum que movimentos políticos se remetam a exemplos do passado em busca de  justificativas para os seus próprios projetos de dominação. Assim, o chamado Terceiro Reich de Adolf Hitler tem seu nome justificado pela ideia de continuidade em relação ao Reich (que significa “império” em alemão) de Bismarck e o Sacro Império Romano-Germânico, vigente durante a Idade Média. A noção implícita nessa operação era a de que a Alemanha fora maior quando perseguia uma “essência” ordeira e autoritária que se supunha que lhe fosse natural.

Semelhante é o que ocorre no Brasil com as tendências políticas autoritárias que apontam o regime militar (1964-1985) como período marco de uma ideologia nacional que pressupõem mais virtuosa. Chegam, assim, a eleger torturadores como heróis nacionais e a sintetizar a desastrosa experiência econômica da ditadura como tendo sido o momento mais formidável do desenvolvimento do país. É lugar comum nesse tipo de discurso pressupor ter sido a corrupção anulada por força da rigidez dos generais. Nada mais enganoso, no entanto, uma vez que foi na ditadura que as relações promíscuas entre público e privado ganharam impulso sistêmico, valendo-se do acobertamento propiciado pelos discretos gabinetes oficiais e sem que houvesse controles democráticos da vida pública, além do reforço da intensa vigilância sobre os meios de comunicação.

Na falta de uma simbologia nacionalista forte o suficiente para se criar com base no passado uma ideia de nação harmoniosa e unida, visto ser o Brasil o país da desintegração e da exclusão por excelência – condição histórica que o slogan de “integração nacional” da ditadura militar jamais reverteu – o ideário autoritário recorre hoje a um cimento ideológico pautado no Cristianismo. Nesse sentido, o enunciado do Brasil como nação cristã cumpriria seu papel na tarefa de moldar a unidade almejada pelo projeto centralizador bolsonarista. Também a fraseologia religiosa esbarra em dificuldades, posto que entre os próprios cristãos o consenso autoritário é impossível, além do fato de que qualquer leitura dos evangelhos haveria de fazer insustentável malabarismo para coadunar aqueles preceitos com a necropolítica intensificada pelo bolsonarismo.

Milicianos

Formada ainda em 1920, as Sturmabteilung – abreviada para SA – foram o braço armado do partido nazista. Seus membros, chamados de camisas-pardas, tiveram papel fundamental na chegada de Hitler ao poder. Agitadores políticos truculentos, torturadores e assassinos, eles concorreram intensamente para deslegitimar a República de Weimar, até que esta entrasse em colapso no início de 1933. Após isso, agiram implacavelmente para trucidar a oposição, não poupando nem mesmo aliados conservadores de última hora. Quando invadiam sedes nacionais ou locais de partidos e sindicatos, empastelavam jornais ou assaltavam residências de opositores, os membros da milícia nazista quase sempre aproveitavam para saquear os bens de suas vítimas, contando com a aquiescência de agentes policiais. Em meio à inoperância da constituição federal diante desses e de outros casos, a ideologia ultranacionalista servia para legitimar toda a espécie de torpeza dos espíritos nazistas. Depois da chegada de Hitler ao poder, as SA tanto fugiram do controle até mesmo do governo nazista que acabaram virtualmente anuladas, em 1934, no episódio que ficou conhecido como Noite dos Longos Punhais, quando alguns de seus membros mais destacados tornaram-se vítimas do próprio ambiente de violência política que contribuíram para criar.

Os vínculos entre o clã Bolsonaro e as milícias cariocas são evidentes. Além disso, o governo federal tem na sua base de apoio, como um importante pilar, uma multiplicidade de entes armados, de militares a agentes civis. Contudo, não há – pelo menos ainda – uma coordenação central desse apoio, de modo que se possa garantir uma mobilização orquestrada de um paramilitarismo pró-Bolsonaro. Por outro lado, é possível identificar que a ideologia autoritária em voga possibilita o respaldo a contraventores e criminosos, incluindo milicianos de toda a espécie e de todas as partes do território nacional.

Em 2019, um episódio ocorrido no coração da Amazônia ilustra bem a nova situação de maior impunidade gerada pelo atual governo Bolsonaro em favor de interesses mafiosos espúrios. Vislumbrando tirar proveito da especulação imobiliária na vila de Alter do Chão, no Pará, um destino turístico cada vez atrativo, agentes não identificados provocaram um incêndio numa Área de Proteção Ambiental que destruiu mais de 100 hectares de floresta. Surpreendentemente, a polícia atribuiu a responsabilidade pela queimada a quatro membros da Brigada de Incêndio local, que postos em prisão preventiva, foram liberados em seguida diante da inconsistência das “evidências” levantadas. Assim, recusando atuar contra a grilagem de terras, as autoridades locais se negaram a procurar os verdadeiros autores do crime ambiental. Para isso corroborou um forte discurso, que é o mesmo do presidente, contrário a presença de ONGs na região, e que credita a estas o papel de obstáculos aos supostos verdadeiros interesses do desenvolvimento nacional.

O exemplo é válido conquanto demonstra um procedimento de caráter potencialmente sistêmico, inclusive afastado geograficamente do eixo central em que se presencia as relações mais íntimas entre os Bolsonaro e as milícias. Quanto à milícia carioca, esta nunca se sentiu tão à vontade para expandir seus domínios territoriais como no atual cenário, comercializando moradias e serviços de forma ilegal e espalhando medo entre moradores de diversas áreas do Rio de Janeiro.

Violência política e policial

O Estado fascista é em essência um Estado policial. Em 1933, a repressão policial na Alemanha se intensificou numa escala inédita na história mundial. Opositores do nazismo passaram a lotar as cadeias e a preencher os novos campos de concentração inaugurados logo após a ascensão de Hitler ao poder. As polícias alemãs, que haviam conservado em larga medida uma posição de desconfiança em relação ao regime democrático da República de Weimar, se sentiu encorajada a deflagrar as maiores arbitrariedades no cenário de liquidação do estado democrático de direito. À criminalização da oposição política se juntou um intenso aumento da repressão a crimes comuns. Nos bairros pobres, onde se encontrava a pobreza criminalizada pelo Estado, uma coisa estava associada a outra, uma vez que lá viviam eleitores, trabalhadores e sindicalistas comunistas e social-democratas. Elites e classes médias entoavam apelos por punições mais severas a uns e outros, encontrando resposta na escalada de violência das políticas repressivas.

No Brasil atual a violência policial é importante elemento de manutenção das desigualdades sociais e do racismo estrutural. Durante a ditadura militar desenvolveram-se métodos de repressão a opositores políticos que seriam mantidos na guerra aos pobres após a redemocratização. Em cenários de recrudescimento da intransigência política conservadora, a repressão policial se intensifica contra todos os inimigos do establishment, como se observa nas operações policiais que frequentemente vitimizam a população negra e pobre e na criminalização de movimentos sociais, como os que demandam terra e moradia. Os tiros a esmo que assassinam crianças a caminho da escola no Complexo do Alemão, ou aqueles disparados do alto de helicópteros sobre as favelas cariocas, se assemelham aos que ecoavam no Bairro Celeiro – Scheunenviertel – na Berlim dos anos 1930, onde vivia uma imensa população pobre, dentre ela muitos judeus, e onde também se imiscuía uma diminuta parcela de criminosos dentre a massa desamparada.

Alarmada pela violência social inexorável a uma das economias mais desiguais do planeta, elite e classes médias brasileiras apelam, como na Alemanha de 1933, por medidas punitivas mais severas. Rebeliões em penitenciárias, verdadeiros infernos em que se deposita uma gigantesca massa negra e pobre, são comemoradas em maior proporção quanto maiores forem os saldos de mortos. E certamente não haveria descontentamento por parte da privilegiada parcela da população dominante se para lá também fossem direcionados os que contestam politicamente todo o atual estado de coisas, como pretende a sanha da esquizofrenia anticomunista.

Partidos políticos e interesses econômicos

A partir da chegada dos nazistas ao poder, em 1933, todos os demais partidos políticos, e não apenas a esquerda e a centro-esquerda, passaram a sofrer algum grau de perseguição até que fossem dissolvidos ainda naquele ano. A favor dos nazistas estava o profundo desgaste do sistema de representação partidária, dado o elevado grau de desapontamento e desconfiança nos partidos por parte da população, sobretudo da classe média e da burguesia. Nos anos finais da República de Weimar, partidos mais ou menos liberais que haviam se comprometido com o regime democrático em 1918 debandaram para o lado da direita reacionária, desistindo de disputar o poder por meio do voto popular. Quando seus membros notaram que as novas circunstâncias impostas pelo nazismo não favoreceria a manutenção de sua existência enquanto agrupamentos independentes, aceitaram quase sem protestos incorporar-se ao regime de partido único.

A elite econômica da Alemanha, nenhum pouco simpática a consignas democráticas – e geralmente favoráveis à reintrodução da monarquia, anseio ao qual Hitler não fez concessões – logo percebeu as vantagens do novo cenário, posto que não haveria mais agitação da classe trabalhadora e nem entraves parlamentares aos seus interesses. Ainda que Hitler não fosse seu representante dileto, essa elite aceitou a nova liderança contando que isso traria ordem à Alemanha e prosperidade aos negócios. Hitler, por sua vez, aceitou de bom grado a confiança não criando obstáculos às empresas e bancos alemães que fossem “arianos”. Pelo contrário: nos anos seguintes o ditador implementou uma agenda de privatizações que muito agradou a elite econômica, propiciando um apoio ainda maior e decisivo ao nazismo.

Nos estertores do governo Dilma Rousseff, sobretudo no fatídico ano de 2016, diversos partidos políticos ampliaram o coro a favor do impeachment da presidenta, incluindo aqueles que outrora haviam sido fiadores do regime democrático que sucedeu o regime militar, como o PSDB e o PMDB. Este último, que até então formava a base dos governos petistas, abandonou o barco governista para se antecipar as circunstâncias, buscando, assim, se descontaminar da crise política. Virando as costas para as lições de 1964, os partidos de centro-direita vislumbraram somente a possibilidade de se beneficiar da derrocada do PT, pouco se importando para o fato de que a onda reacionária que tomava as ruas, por força sobretudo de uma classe média amedrontada pelo fantasma da proletarização, já trazia em si um forte conteúdo antidemocrático, ainda que desconexo.

As eleições de 2018 vieram mostrar então que um novo dilema político se impunha ao país: democracia ou autoritarismo. Enfim, os partidos tradicionais passaram a perceber que se lhes colocava um novo desafio de conquistar eleitores sem se pretender valer do reacionarismo que solapa as bases da própria existência do sistema de representação partidária. Atualmente, porém, como o bolsonarismo não é forte o suficiente para liquidar a questão soterrando de vez a democracia, o chamado “centrão” do Congresso Nacional tem admitido negociar cargos com o governo federal, tentando levar vantagem de uma situação em que o presidente, após ter tentado se sustentar por meio do mero personalismo, se afunda na inércia e na incompetência para gerir o país, necessitando enfim dialogar com os partidos políticos.

Por outro lado, o preenchimento de funções administrativas por oficiais das Forças Armadas, fora os desmandos em pastas ocupadas por civis de currículo questionável, demonstra que ainda é tênue o equilíbrio entre as regras do jogo democrático-liberal e o projeto autoritário bolsonarista. Entretanto, um fator que desequilibra tal jogo em favor do status-quo reacionário, é o apoio praticamente indiscriminado dos grupos de pressão com projeção nacional a favor das políticas econômicas do governo, ressaltadas na cordialidade de tratamento para com o ministro da Economia. E não só na grande mídia, como também na euforia esbanjada pela enxurrada de vendedores de sucesso financeiro que pululam no Youtube, parece se confirmar a ideia de que o mercado, sob os ditames neoliberais, mantém uma consistente autonomia em relação à política. Na opinião de muitos indivíduos torna-se defensável qualquer modelo de Estado que se comprometa com a retirada de entraves sociais à acumulação capitalista, o que favorece que o debate sobre projetos de país se torne, por sua vez, presa fácil das aspirações antidemocráticas que negam a própria política – coisa que o fascismo faz por excelência. E é um erro supor que o ministro Paulo Guedes não seja parte de tais aspirações.

Universidade e cultura

Em 1933, o já então prestigiado filósofo alemão Martin Heidegger assumiu a reitoria da Universidade de Freiburg depois de uma eleição interna ocorrida sob especial observância por parte do governo nazista e sem a participação dos professores judeus que haviam sido previamente expurgados daquela instituição. Em sua posse, Heidegger se prontificou a liquidar o preceito de “liberdade acadêmica” que havia sido, até então, base regimentar comum das universidades da Alemanha, todas elas estatais. Dessa forma o novo reitor prometeu fazer com que sua universidade corroborasse a “transformação espiritual” que os nazistas pretendiam impor a toda população. A exemplo de Freiburg, as demais universidades alemãs caíram também na teia nazista, perdendo, num processo irresistível, seu próprio sentido de existência, a não ser como partes de uma engrenagem belicosa. Como resultado, as melhores mentes foram expulsas da academia ou tomaram o rumo do exílio.

Até a primeira metade do século XX o conservadorismo era, em suas várias tendências e vertentes, inclinação ideológica dominante nas universidades alemãs. De modo geral, professores e estudantes sentiam-se baluartes daquilo que era frequentemente identificado como sendo a “alma nacional”. Com a ascensão do nazifascismo tal sentimento ganhou um corpo mais bem definido. Já no Brasil de hoje, se por um lado o conservadorismo autoritário percebe a universidade pública como um empecilho à realização de seu projeto, por outro, lhe falta ainda a base para atuar  contra ela e por dentro dela.

É evidente que já há alguns anos muitos jovens e alguns professores não mais se acanham em desfraldar seu protofascismo nos corredores das academias brasileiras. Também é verdade que o Ministério da Educação foi confiado há até pouco tempo ao sombrio Abraham Weintraub, cujas competências acadêmicas e intelectuais são mais do que questionáveis, e que se esforçou diariamente para deslegitimar Academia e acadêmicos, ao passo que subtraiu recursos que eram anteriormente direcionados ao setor.

Contudo, indivíduos inclinados a acatar os termos do tipo de conservadorismo em voga na sociedade brasileira são até agora em número relativamente pequeno nas universidades, e não possuem em suas fileiras figuras notáveis – e não medíocres – para que possam se lançar em luta contra as premissas democráticas que regem a autonomia universitária, consagrada pela Constituição de 1988 em seu artigo 207. Em vista disso, Bolsonaro baixou no Natal passado uma medida provisória que pretendia aumentar o controle da Presidência sobre a escolha de reitores em universidades federais, e que acabou perdendo validade recentemente. Sintomaticamente, o bolsonarismo mantém no antiacadêmico Olavo de Carvalho seu bizarro guru intelectual.

Quanto à cultura, o esdrúxulo episódio da demissão de Roberto Alvim da Secretaria de Cultura, após divulgar vídeo sinistro em que parafraseia Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha Nazista, deveria demonstrar o quanto se está longe da possibilidade efetiva de se pôr em prática um política cultural com objetivos fascistas no Brasil. Contudo, na justificativa para a demissão do secretário, Bolsonaro disse ter sido motivado pelo respeito ao povo de Israel, e não pela contrariedade à fantasia totalitária de cultura nacional unitária – que afetaria também a cultura judaica, dentre a diversidade cultural existente no país.

Por tudo que representa, é difícil supor que o bolsonarismo possa oferecer, em termos de política cultural, algo diferente do que propusera o Goebbels brasileiro, quando este afirmara seu desejo de uma cultura “heroica e nacional” – em que pese a efêmera passagem da não menos sinistra Regina Duarte na pasta da Cultura, supostamente mais aberta ao diálogo com representantes do setor. Assim, por exemplo, na famigerada reunião ministerial divulgada recentemente pela imprensa, a inclinação ultranacionalista que pretende dissolver a diversidade existente na sociedade ficou evidente nos discursos contrários a própria existência de povos indígenas e quilombolas.

Aliás, na própria subsunção da Cultura ao Ministério do Turismo estão as pistas do tratamento dispensado àquela área. Na impossibilidade de o governo submeter aos seus ditames a intensa pluralidade que sustenta a força viva da cultura brasileira,  nega-se a esta os subsídios, inserido-a na lógica imediatista e utilitarista do mercado. Assim, a cultura capitalizada e admoestada passa a se circunscrever a par de debates mais rasteiros como, por exemplo, a liberação de cassinos e de jogos de azar.

Moral sexual e saúde pública

Nos anos 1920 a Alemanha vivia o pleno deslanchar dos movimentos progressistas. Gerações desprendidas do passado militarista e conservador celebravam a conquista de um grau maior de liberdades individuais. Gays e lésbicas sentiam-se um pouco mais à vontade para interagir em sociedade, embora ainda muitas vezes confinados a seus redutos. Muitas mulheres passaram a exigir equidades nas relações públicas e privadas, e não foram poucas as manifestações públicas exigindo reforma da lei sobre o direito ao aborto.

Quando os nazistas subiram ao poder, em 1933, a reação veio em cadeia, não poupando nenhum desses grupos e vitimando também diversas categorias de profissionais da saúde. De modo truculento, centros de pesquisa e informação sobre doenças sexualmente transmissíveis foram fechados, combateu-se métodos anticoncepcionais com a alegação de que era necessário elevar as taxas de natalidade de “arianos”, fortaleceu-se o discurso da necessidade de se preservar a família tradicional. Garotos e garotas de programa foram cruelmente perseguidos e a relação sexual entre pessoas do mesmo sexo passou a ser legalmente punida. Mesmo o oficial Ernst Rohm, que costumava fazer incursões fora do armário quando não estava comandando os aproximadamente dois milhões de camisas-pardas das SAs, não foi poupado da perseguição e acabou morto na Noite dos Longos Punhais, em 1934, mas pelo motivo principal de ter se tornado um empecilho para a política militar nazista.

Não é difícil, nesse tema, traçar um paralelo entre a Alemanha de 1933 e o Brasil atual. Aqui, impõe-se uma política banhada no conservadorismo religioso que reconhece somente um padrão de família tradicional; a homofobia está presente de forma deliberada nos discursos de quem dirige o país; as políticas de combate ao HIV, que conferiam ao Brasil reconhecimento mundial, são atacadas frontalmente pelo governo; e até mesmo as campanhas de vacinação são alvo de tentativas de boicote por parte de apoiadores do governo – novamente aqui, cabe o exemplo do bizarro guru de Bolsonaro, fábrica incessante de teorias da conspiração desde Miami.

Como na Alemanha de Hitler, a guinada conservadora na área da sexualidade e da moral privada surge no Brasil precedida por anos de intensas transformações culturais em que as pessoas, de forma individual ou coletiva, passaram a se expor mais e questionar preconceitos enraizados que as atingiam, mudanças às quais contribuíram também o afluxo de muitos jovens negros às universidades. No polo oposto, a imagem clássica da reação, tanto aqui como alhures, é a da frágil masculinidade que não consegue se conservar dentro apenas de si mesma.

Por fim, o descaso do governo Bolsonaro com a saúde pública, tão marcante no período de pandemia do Coronavírus, tem a marca do genocídio aos pobres. Se estes não são os únicos atingidos nesse caso, são quem mais sofre os efeitos do processo de sucateamento do SUS e de condições de saneamento mais precárias. Tanto na Alemanha Nazista quanto no Brasil de Bolsonaro não se deve ter dúvidas de que, a título de promoção da “dignidade nacional”, o cálculo sobre aqueles que podem viver e aqueles que podem morrer é ainda mais explicito.

Considerações finais

É evidente que enormes diferenças separam o nazismo alemão do bolsonarismo. Uma e outra realidade estão determinadas por condicionantes históricas singulares, impossíveis de serem reproduzidas nas mesmas diretrizes. Uma das diferenças básicas é que ideário nazista e ideário bolsonarista não se confundem, tanto mais quando este último se constitui por meio de elementos desorganizados, nas circunstâncias próprias do ascenso da extrema-direita no Brasil. Se na República de Weimar o nazismo surgiu como alternativa organizada à crise da democracia, no Brasil, foi a desorganização ativa da democracia que propiciou a tentativa de unidade, sempre incompleta, do reacionarismo. Uma demonstração de que a organização em torno de um ideário é precária sob o Bolsonarismo, é a dança das cadeiras dos Ministérios.

Quanto à sua dimensão de programa político, o bolsonarismo é incapaz de pôr em prática um assalto sistemático às instituições públicas de modo a impor-se como fonte única de poder, expurgando assim a inconveniência dos intelectuais, sindicalistas, professores e diversos outros atores indomesticáveis. Não há, por parte dos bolsonaristas, detrativas sérias à Constituição e aos poderes constitucionais, embora vez ou outra suas munições, escassas, se voltem contra o STF ou o Congresso Nacional. Há, é óbvio, todo um palavrório que efetivamente atenta contra direitos e garantias constitucionais, sem que, contudo, favoreça um clima de generalizado questionamento às normas gerais que regem o país. É justo indagar-se, no entanto, em que medida o bolsonarismo carrega dentro em si o golpe final à democracia como potência, visto que a realização daquilo a que propõe seus discursos mais radicais dificilmente encontraria aderência à realidade porquanto permanecesse o atual modelo de Estado.

Nesse sentido, parece justo se antever similaridades entre bolsonarismo e fascismo. Elas se nutrem, em grande medida, dos condicionantes econômicos e políticos que aproximam as duas experiências. E é essa abordagem – que se pode dizer estrutural – que permite comparações tendo em vista compreender a dinâmica dos ciclos autoritários nas sociedades contemporâneas. Assim, crise econômica e desgaste político podem ser poderosos desencadeadores das “soluções autoritárias” que, sobrepujando as saídas possíveis por via do debate político, se apresentam como renovação e promessa de se colocar no prumo o estado crítico das coisas. Via de regra, elege-se motivos pátrios e/ou religiosos na tentativa de se dissolver as diferenças político-sociais inexoráveis às sociedades atuais, reforça-se o discurso do modelo de indivíduo e de família desejável, determina-se o inimigo comum (sempre difuso) e, com isso, tenta-se suprimir toda e qualquer voz opositora.

Ocorre, porém, que enquanto nas experiências fascistas do passado tais elementos tomam forma acabada, em países que atualmente flertam com o fascismo – como o Brasil – eles aparecem como tendências de um projeto não bem definido. O que parece central é entender como e o quanto as forças do poder econômico, em nome do qual a desventura do autoritarismo se realiza, estão dispostas a abrir mão da salvaguarda das instituições democráticas que lhes garantiram a sobrevivência e o domínio político-econômico até aqui. Há que se estar atento, portanto, às inovações do autoritarismo no contexto de crise da economia, tirando lições do passado, mas sem descuidar de aperfeiçoar permanentemente o olhar para o presente. E há que se preocupar, sobretudo, com  as tentativas – desde as menores até as maiores – de liquidação do espaço da política.

Para aqueles interessados em aprofundar a compreensão sobre a instalação, estruturação e derrocada do nazismo na Alemanha, a leitura da trilogia de livros de Richard Evans, professor aposentado da Universidade de Cambridge, é, com certeza, extremamente valiosa. Evans é retratado no filme “Negação”, lançado em 2016, que conta a história real da batalha no tribunal inglês entre uma estudiosa do holocausto e um sujeito que tenta negar o genocídio praticado pelos nazistas. Há também importantes obras que se preocupam com as bases econômicas, políticas e sociais que propiciaram a ascensão do fascismo, entre elas destaca-se: Como nasce e morre o fascismo, de Clara Zetkin, e Sobre o fascismo, de August Talheimer. Ambas estão disponíveis na Internet.

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