Por Ali do Espirito Santo
Venho acompanhando algumas zonas de reclamação surgirem no meio artístico ligado às artes visuais, cênicas e afins. Essas zonas, criadas no facebook através de postagens individuais ou correntes desesperadas para o aumento de seguidores no instagram e divulgação a esmo de trabalhos pessoais, refere-se a chegada de uma suposta crise econômica, a qual resultará em uma série de efeitos colaterais, entre eles o cancelamento de trabalhos devido ao Covid-19 e um certo espanto para um possível fim do horizonte fragmentado da teologia neoliberal e suas consequências para a “classe” artística. Estar preocupado com isso é obviamente legítimo, e sim, o momento é para movimentar-se, mesmo que sem sair do lugar, já que o ciberespaço é o que restou para tal.
O espectro cultural no Brasil habitou um território imensamente produtivo nas últimas décadas: diversos filmes foram produzidos, grupos teatrais ganharam solidez e reconhecimento, museus conseguiram articular exposições com estruturas jamais vistas até então. Mas ao que tudo indica, é que isso acabou, e não há um happy end para tal história. A nomeação de Regina Duarte para o Ministério da Cultura e seu discurso de posse mais trollado que qualquer perfil no 4Chan, onde é o “pum do palhaço” o que caracteriza a cultura como um todo, concretiza de uma vez por todas não só uma derrota do que até então estava sendo acolhido pela versão institucional da cultura, mas o estilhaçamento das antigas premissas da cultura enquanto uma via de acesso ao legado do Humanismo. E mesmo que Bolsonaro caia com a crise do Covid-19 e a recessão que se instaura, seu programa anti-tudo já foi pulverizado no coração de seus followers. Sem signo e nem referente, um vírus mortal não tem equivalência alguma com a morte real, sem signo nem referente, não há presidente, a terra não é redonda e pouco importa se há um grupo de pessoas interessadas em promover a cultura em tempos de crise.
As zonas de reclamação que estão se formando nas últimas semanas referentes a continuidade dos territórios da cultura do passado recente, preocupadas que a água subiu até o pescoço, falham ao acreditar que as demandas da cultura são legítimas (ainda) no mundo atual, não se relacionam consigo mesmas enquanto processos que foram possíveis por estarem ligados a um contexto específico do país, e por ingenuidade, acreditam que os que se encontram fora da bolha da cultura partilham (ainda) dos mesmos preceitos de humanização via estética, via arte, via humanismo. Ou seja, esse Outro forjado nos últimos anos, enquanto destino final das produções culturais, esse “povo” que precisa consumir cultura enquanto alteração do espírito, libertação, ou via de acesso à figuras de expressão até então universais, como o cinema, o teatro, a poesia, a música, se desfez numa velocidade radical rumo a outros territórios de expressão, dos quais traduzir à luz do passado glorioso da cultura humanista é o maior erro que podemos cometer.
O contexto em que se forja a cultura como uma necessidade social no Brasil é do welfare state lulopetista. Anterior a ele, os investimentos eram irrisórios ou não existiam. É importante lembrar como a tradução que esse contexto impôs para a promoção da cultura e da própria política tenha sido o da velha captura. Depois de 2002, ano em que o Partido dos Trabalhadores assume o poder, não foram apenas os movimentos sociais que começaram a sumir de cena, adentrando na retórica de que a partir de então, não haveria mais uma infinidade de mundos possíveis, mas apenas o mundo do Estado e sua social democracia. Esse modo muito específico de articular as demandas, centralizando as possibilidades de acontecimento sob os tentáculos do que as instituições poderiam prover, modificou o que entende-se enquanto cultura e quais são as condições para que ela ocorra. De repente um setor que até então nunca havia recebido qualquer atenção iniciou um processo de altos investimentos.
Longe de me filiar a qualquer purismo anti investimentos no setor cultural, reconheço que eles foram importantes, no entanto, não fomos capazes de prever o seu fim, tampouco de articular os efeitos que os mesmos produziram. As forças de atração que a maquinaria burocrática da cultura nesse contexto lançaram, foram desastrosas do ponto de vista de uma possível autonomia e existência para além do que o Estado tinha para oferecer. Num passe de mágica ilusionista, a criação artística só se contornou enquanto tal nesse contexto, assumindo a forma de megaestruturas, grandes espetáculos, hiperexposições de arte. Foi o momento em que a maioria dos artistas se viram ou se tornaram grandes. O imenso número de editais disponíveis proporcionou em equivalência uma elitização da “classe”, tanto dos que nada tinham como dos que sempre acumularam capital. Uma minoria abastada de artistas apenas potencializou seu alcance técnico e burocrático, visto que já estavam na frente em vários quesitos para disputar os editais. Artistas oriundos de camadas mais pobres vivem até hoje a consequência de nunca terem conseguido se equiparar ao modelo meritocrata criado pela era lulopetista na cultura. Muitos diretores de cinema, que hoje choram o fim da Ancine, sempre estiveram em posição de disparidade com seus colegas de profissão, pois além de terem acumulado capital simbólico e econômico nesse período, já iniciaram essa disputa burocrática com vários pontos à frente.
Pensar a existência da arte para além de sua correlação com o Estado não é uma premissa romântica, tampouco é abster-se em levar em conta o que essa aliança trouxe em questão de possibilidades. Mas há aspectos que não conseguimos olhar, ou que ao menos fingimos hipocritamente não nos afetar. O modo como a máquina estatal convocou o desejo nesse contexto, por exemplo, não está exímia de uma análise crítica. Como não pensar sobre os efeitos que a burocratização ao acesso a verbas destinadas a cultura tenha se concentrado na mãos dos mesmos até então, ou que concomitante a isso, a neoliberalização da subjetividade tenha adentrado nessa mesma estrutura de redistribuição? Os artistas preocupados com a recessão e os efeitos do Covid-19 no Brasil precisam voltar algumas casas atrás, e o jogo está recém começando.
A neoliberalização da subjetividade não é um privilégio da esfera coach ou das startups. Muitas vezes, a esquerda artística consegue ser pior. Preocupados em manter o status quo patrocinado até então pelo decadente welfare state dos anos 2000 no Brasil, muitos não conseguem entender que as questões de classe sempre estiveram presentes, mesmo que acobertadas por uma esfera de relação abstrata (privilégio dos artistas ricos agindo sobre os artistas pobres), sendo elas o que torna possível a visibilidade e execução de projetos para grupos e indivíduos. Nessa linha, a classe enquanto diferenciação entre os que possuem muito e os que pouco tem, foi substituída por uma espécie de tensãozinha simuladora de uma política chique, operada por instituições artísticas, as quais só sabem exaltar um multiculturalismo fincado na Teoria Cultural, ou, em um cenário mais recente, na versão fashionizada da Teoria Decolonial, acreditando que transpor o conflito social, racializado, sexualizado ou generificado para os espaços da cultura como se conhecia até então, basta para traçar um horizonte prático e político na arte.
Evidenciar que a classe esteve sempre aí nos ajuda a tentar entender que há primeiramente uma implicação de trabalho a priori no que o/a artista produz, e que o/a artista quiçá, seja uma das primeiras figuras do trabalho precário do mundo pós-industrial, aquele que sempre circulou sem um chão seguro ou vantagens sólidas no mercado de trabalho. E segundo, que pensar desde o recorte de classe evita que em momentos como esse tenhamos que perder tempo juntando os cacos e os pedaços para compor um corpo que se reconheça enquanto categoria. No entanto, quase nunca se ousou falar desde esse aspecto para interpretar as relações de poder no campo da arte. Nessa nova configuração dos mundos que se aproxima, conseguirá a arte se articular para além de suas zonas de conexão simplória?