Por Eudes Cardozo
“… As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideada das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação.”
(Marx e Engels, A ideologia Alemã)
A edição de ontem do Jornal carioca EXTRA trouxe em sua capa o Título: “Sua excelência o Ministro Caco Antibes”. Alusão ao personagem de Miguel Falabela no show teatral humorístico Sai de Baixo exibido pela emissora Globo nos anos 90. A provocação parece dialogar com a realidade em alguma medida, levando em conta as ultimas declarações do Ministro sobre a variação cambial e a alta do dólar, o responsável pela pasta das finanças no atual governo demonstrou sua completa falta de empatia pelos pobres e uma certa nostalgia macabra por um tempo em que as coisas “eram como eram” e os pobres não só sabiam seu lugar, mas também se conformavam com ele.
Até aí tudo bem, o famoso “horror a pobre” de Caco Antibes encontra ressonância e se acomoda na fala de Guedes. Mas há mesmo correspondência entre as posições sociais de ambos? Vejamos, Paulo Guedes é desde muito um investidor em ações privadas, “private equity” para os finos, foi sócio do BTG Pactual e também da BR investimentos. A fortuna estimada de Paulo Guedes quando este era ainda sondado para uma futura nomeação para Fazenda nacional já era vultuosa. Guedes na condição de Ministro abdicou de sociedades e participações em investimentos diversos. Sem que seus lucros fossem afetados ou prejudicados. Ou seja, Paulo Guedes ainda possui vasto conforto, segurança e estabilidade financeira.
E Caco Antibes, possuía a mesma estabilidade financeira de Guedes? O personagem de Miguel Falabela representava na realidade uma classe média falida, Caco Antibes era um desempregado, sem teto, sem rendas capitais investidas ou aplicadas e vivia de favor na casa da família de sua esposa, a personagem Magda interpretada por Marisa Orth. O sobrenome de sua esposa garantia ainda algum status social e posição entre a sociedade paulista. Ainda que também em aparente decadência. Cassandra Mathias Sayão (A personagem de Aracy Balabarian), é a viúva de um militar, possível mas não evidenciada renda de todo o grupo familiar. O irmão dela Sr. Vavá vivia as voltas com empreendimentos (sempre frustrados), a fim de resgatar também a antiga bonança e posição do clã.
Caco Antibes é também um pobre. A pobreza que tenta evitar e que abomina, já o atingiu faz certo tempo. O véu que a antiga posição social da família ainda consegue manter o impede de verificar tal fato, talvez o verifique, mas faz esforços contantes para o afastar de si. Mesmo que pela negação. Caco reproduz ao seu modo a ideologia dominante, mas está distante vários milhões de reais de Paulo Guedes, que ao odiar pobres, também o odeia, inevitavelmente. Caco sabe dos pesares, sabe dos reveses da vida dura enfrentada pela grande maioria dos pobres do país, mas não se identifica enquanto um. Dialogango em uma linguagem memetica: Te sobra ódio, pois te falta identidade de classe.
A negação do pertencimento aos excluídos é parte da sátira e também da crítica que o personagem realiza cada vez que enuncia seu bordão. A cada “Eu tenho horror a pobre” é o horror à pobreza quem é verbalizado. Construção ancestral de um país que até as vésperas do XIX amargava ainda a condição de colonia. A elite a qual Caco Antibes e a família de sua esposa pertenceram, um dia, via na pobreza o retrato do total rebaixamento moral. Não se trata, meramente de não frequentar mais os clubes e canapés dos quais sempre fizeram parte, é ser rebaixado a uma condição sub-humana, é estar literalmente, ao rés do chão. Não dispor mais dos recursos materiais que possibilitaram aos personagens não constar entre os pobres, não destituiu o núcleo familiar de suas convicções e crenças.
A família em todos os episódios apresentados nunca recuperou seu status ou fortuna. E nisso consistia parte do humor do seriado. A luta pela permanência em um espaço ao qual foram arrancados é o enredo da peça. Caco, Magda, Vavá e Cassandra retratam um espectro da luta de classes. Quer queira quer não, a peça de Luis Gustavo e Daniel Filho tece um retrato social do país.
A mesma sociedade, ricamente ilustrada pelas criticas de Lima Barreto em sua produção literária é encontrada na obra. Mesmo sem a rispidez, ironia e teor de denuncia do autor carioca. A critica de Lima ao estrangeirismo, aos costumes da nobreza incorporados pela sociedade como um todo, as tentativas dos pobres de escaparem, ao menos, da rotulação de pobre – como se houvesse intenção de um projeto inclusivo por parte da elite ou mesmo do compartilhamento do status de cidadão. Uma caricatura do passado colonial carioca, incorporada no DNA e genes da elite paulista. Caco não trás Guedes em sua persona, ainda que o replique ideologicamente. Caco trás a pobrefobia do pobre contra o pobre, do que encontra alento a sua própria condição de penúria no rebaixamento de outros pobres. Não trás resposta alguma para a resolução de seus problemas, mas há alguém em algum lugar do país em condições piores. Reformulando a máxima de Sartre para a miséria do contexto nacional: O inferno somos nós, e a danação é para o outro. Há mais de nós, dos eleitores de Bolsonaro e de um Brasil que não se encontra em si e que tem dificuldades em se assumir em Caco Antibes que em Paulo Guedes.
Paulo Guedes e sua fala são a representação explicita de quem é, como é, e quem são os proprietários e abonados do país. Caco Antibes é apenas um ventríloquo, indevido e inaceitável entre os mais abastados. A reprodução da ideologia dominante em sua face mais cruel. O horror aos pobres não nos pertence, mas nos foi estendido, a única concessão que a elite nacional foi capaz de realizar ao longo de nossa pobre, triste e compartilhada história.