Por Juliana Mota e Rodolpho Borges*
A contradição dessa estratégia fundamentada na ideia de representatividade reside em dois elementos que se conjugam. O primeiro é que a conquista de espaços na mídia de massas é positiva, e bastou-se nisso. Imagine só, o Jornal Nacional apresentado apenas por negros? A democracia racial enfim seria conquistada, à suculentos lucros para a Rede Globo. A segunda se configura na ilusão de que a representatividade, inequivocamente, mobiliza. Como se todos, ao verem um suposto semelhante, mobilizaram-se e se motivariam para alcançar, senão o inalcançável, mas a exceção à regra.
Muitos se satisfazem em pregar que se deve trazer para a cultura pop (cinema, televisão, música etc.) as expressões culturais dos oprimidos. Basta, na lógica da cultura de massas, criações “artísticas” que conjuguem elementos das minorias, que as representassem. A representatividade foi evocada como pressuposto da transformação social baseada numa identidade que se formava numa individualidade tão utópica que via a possibilidade de uma realização plena da liberdade individual, que não poderia ser maculada. Uma olhada nas estatísticas mostra a completa ineficiência dessa estratégia, somos o país que mais mata LGBT no mundo, há um genocídio negro histórico que se aprofundou assustadoramente e com grande apoio popular e o feminicídio não para de aumentar.
Compreendemos a representatividade como fator de autoafirmação e de certa legitimidade para a expressão dos indivíduos. Uma personagem LGBT representada na novela, por exemplo, não possui a mesma função para o universitário do centro urbano que tem acesso a discussões sobre gênero e sexualidade, que possui para aquele que se encontra alheio a um espaço de pensamento e expressão dessas sexualidades.
O indivíduo LGBT que está inserido nos debates sobre gênero e sexualidade, provavelmente está rodeado de pessoas que também estão, tal como existe aquele que é excluído desse ambiente de discussões. Desse modo, os meios aos quais fazem parte são determinantes na forma com a qual expressarão essa sexualidade e serão recebidos em sua comunidade. Isso quer dizer que, o personagem LGBT da novela possui apenas função de auto identificação restrita ao fator sexualidade, mas não é capaz de politizar ou educar as massas. Dar visibilidade não significa dar condições de uma existência igualitária, pois de pouco adianta ser visto se for para ser violentado.
A contradição dessa estratégia fundamentada na ideia de representatividade reside em dois elementos que se conjugam. O primeiro é que a conquista de espaços na mídia de massas é positiva, e bastou-se nisso. Imagine só, o Jornal Nacional apresentado apenas por negros? A democracia racial enfim seria conquistada, à suculentos lucros para a Rede Globo. A segunda se configura na ilusão de que a representatividade, inequivocamente, mobiliza. Como se todos, ao verem um suposto semelhante, mobilizaram-se e se motivariam para alcançar, senão o inalcançável, mas a exceção à regra. Eu digo “suposto semelhante” pelo seguinte (na lógica de quem cobra uma identificação sem um trabalho politizador): alguém avisou ao sujeito quem são seus semelhantes? Ou vamos considerar que consciência e identificação de raça, gênero, sexualidade ou classe vem de berço, ou que são suficientes para formar identificações. O reconhecimento enquanto sujeito oprimido é resultado de um trabalho!
O capitalismo é o sistema no qual os trabalhadores são explorados e lhes são retiradas quase todas suas possibilidades de emancipação ao mesmo tempo em que lhe é vendida uma imagem de sucesso a ser alcançada. Na completa impossibilidade de atingir esse ideal colocado principalmente pela indústria cultural, muitos trabalhadores não caem nessa ladainha e, seja na incompreensão desses valores ou na sua rejeição, acabam por ser instrumentalizados pela direita que se coloca contra espantalhos como o “marxismo cultural”, “inversão de valores”, “identidade de gênero” etc., que nada são além de leituras conspiracionistas, genéricas e invertidas de processos que acontecem na concretude.
A questão não é mais sobre apagar a tradição dos oprimidos da história, como Walter Benjamin afirmava em sua crítica ao historicismo. Mas sobre como a sociedade de cultura de massas assimila essa tradição de modo a esterilizar suas potências transformadoras. Isso é muito mais lucrativo, basta dar uma olhada nas cifras da indústria da cultura pop. Mas como dito, nem todos assimilam essa nova forma de representar, ou melhor, esvaziar a tradição do oprimido, pois a decisão, neste caso, depende de uma assimilação moral dos valores culturais dominante no capitalismo, que passam muito longe da realidade material dos trabalhadores, especialmente dos países de capitalismo dependente, como o Brasil, daí que a alienação tem papel fundamental.
Cabe então propor o seguinte entendimento: Não se trata de colocar um avançado como objetivo e determinar o quanto de atrasado tem certas “criações e ideias em enorme perigo, altamente desacreditadas e ridicularizadas”. Mas de entender que tal dissonância não parte de simples atraso moral, ignorância ou intolerância, mas, dentre outras coisas, pela própria apropriação, pela indústria cultural, de temas que são caros aos oprimidos sem que os grupos políticos que reivindicam suas lutas se colocassem em posição crítica quanto a isso. O conteúdo realmente transformador dessas lutas é constantemente mascarado tanto sob forma de inclusão (onde? inclusão no inferno não deixa de ser inclusão) de certa tradição, quando pela naturalização de seu caráter dominado. Ou seja, a tradição dos oprimidos pode assumir a estética da cultura de massas, na forma idealizada, e isso irá proporcionar mistificação e naturalização, uma espécie de digestão espetacularizada da miséria. Esse é um dos males da tal representatividade liberal, pregada como dogma é muito grupos ditos de esquerda, que melhor se articula com radicalização da direita. Uma espécie de conformismo na qual as classes dominantes colocam a tradição dos oprimidos. Toca na estrutura da dominação? Não toca. Toca no afetivo dos grupos? Toca. No entanto, como dito, essas ilusões não se reproduzem sem resistência, pois as contradições das suas promessas, certa hora, revoltam, geralmente os “atrasados”… e os comunistas.
Por isso não devemos enxergar os “deploráveis” como deploráveis, mas como, dentre outras coisas, consequência da moralidade progressista liberal elevada à absoluto (e que essa carapuça sirva pra todos pois, se os petistas e psolistas, principalmente da universidade, fazem isso bem, são os ciristas que o fazem perfeitamente). Infelizmente, ou felizmente, seu tio bolsonarista não é o culpado pelos problemas do Brasil, mas ele pode futuramente estar disposto a praticar a violência mais vil em nome dos verdadeiros responsáveis: as oligarquias nacionais reacionárias e o mercado financeiro internacional. A revolta tão cobrada hoje, mas que teve sua criminalização iniciada em 2013 por um governo dito de esquerda, foi instrumentalizada. A direita se apropriou dessa revolta, e a está politizando para a reação. Falta, para eles, sistematizá-la, tendo, possivelmente, o exemplo boliviano como inspiração. O clamor choroso por paz só vai nos desmobilizar. Devemos abandonar o pressuposto da não violência e, se ainda houver tempo, pensar em uma violência politizada, organizada e revolucionária.
Notas
[1] LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005. P. 130-133. Benjamin acusa o Historicismo, corrente historiográfica alemã do final do século XIX, de desconsiderar a história dos oprimidos no seu empreendimento de uma história universal. Contra isso propõe um materialismo universalizante, a “história messiânica da humanidade libertada”.
[2] Benjamin, W. “La Vie des Étudiantes” (1915), em Mythe et violence (Paris: Lettres Nouvelles, 1971), p. 37
[3] “[…]em especial nos países europeus e nos EUA, aparece uma retórica de um falso antifascismo que funciona simplesmente como desprezo de classe (já no Brasil, isso se mistura à tradicional visão paternalista sobre os pobres, que são sempre reduzidos a objeto ou alvo, seja de políticas sociais ou securitárias – o que produz a certeza embriagante de que eles estão, ou ao menos deveriam, estar do seu lado). Durante as eleições de 2016 nos EUA, Hillary Clinton se referiu aos eleitores de Trump, que eram maioria em regiões empobrecidas como o rust belt, como os ‘deploráveis’”. (Catalani, Felipe. A decisão fascista e o mito da regressão: o Brasil à luz do mundo e vice-versa. Blog da Boitempo. São Paulo. Jul. 2019. Disponível aqui.)
[4] Em artigo sobre o filme Bacurau, trato do esvaziamento da violência: “A idealização da miséria e o esvaziamento político da violência em Bacurau”. Disponível aqui.
* Juliana Mota Ribeiro e Rodolpho F. Borges são graduandos de História na Unifal/MG e compõem o Grupo de Estudos: Marx e Engels. A primeira estuda o conceito de interseccionalidade e pesquisa sobre a migração nordestina nas décadas de 1970-80 e a ocupação das periferias paulistanas, e o segundo estuda o pensamento marxiano e a filosofia da história de Walter Benjamin e pesquisa sobre o conceito de progresso a partir do materialismo histórico dialético.
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