Golpe de Estado e Luta de Classes na Bolívia

Por Carlos Rivera-Lugo, via Claridad Puerto Rico, traduzido por Daniel Fabre

“São tempos difíceis, mas para um revolucionário os tempos difíceis são o seu ar. É disso que vivemos, dos tempos difíceis. Nós nos alimentamos de tempos difíceis. Por acaso não viemos de baixo? Por acaso não somos nós os perseguidos, os torturados, os marginalizados dos tempos neoliberais… A década de ouro do continente não foi gratuita. Foi a luta de vocês, dos de baixo, desde seus sindicatos, das universidades, dos bairros, o que deu origem ao ciclo revolucionário. Esta primeira onda não caiu do céu… E se temporariamente, provisoriamente, temos que recomeçar… bem-vindo! É para isso que serve um revolucionário … Lutar, vencer, cair, levantar, lutar, vencer, cair, levantar. Até que a vida termine, esse é o nosso destino. ” (Álvaro García Linera – Vice-Presidente Constitucional do Estado Plurinacional da Bolívia)


Se uma diferença marcou a Revolução Francesa para sempre foi que a partir dela o objetivo da revolução foi a felicidade do povo. Não se tratava de meramente aumentar a liberdade, como era entendida até aquele momento, ou de apenas reformar o que existia, mas produzir algo novo: liberdade coletiva, isto é, a de cada um e cada uma para participar, em igualdade de condições, nas decisões sobre assuntos comuns e, consubstancial a isso, a verdadeira emancipação de toda humanidade das necessidades que também nos tiranizam. Como sabemos, a Revolução Francesa finalmente acabou devorando seus próprios filhos e filhas. Prevaleceu a infelicidade contínua dos setores populares ante a ascensão de uma nova classe dominante: a classe capitalista. A liberdade tornou-se a liberdade dessa classe, ou seja, a liberdade de explorar as classes subalternas e impor um regime de governança que garanta a reprodução permanente de seu domínio.

Maquiavel provou ser visionário quando prenunciou: “Não há nada mais difícil de executar, nem resultado mais duvidoso, nem mais perigoso de administrar, do que iniciar uma nova ordem”. Parece que Marx chegou a uma conclusão semelhante quando alertou que talvez a única felicidade a que os de baixo pareciam estar destinados é a luta permanente. É claro que, independentemente de ele ter concebido a revolução como uma trincheira sem fim, ele não deixou de avaliar a importância histórica de assumir essa vocação revolucionária como a única coisa que dava sentido ao futuro histórico, incluindo a possibilidade de aumentar seus verdadeiros impulsos “comunizantes” em direção a uma nova sociedade.

Vivemos em um mundo em que o trem da história está sempre em marcha e nem sempre podemos antecipar seus sentidos. A história nos surpreende continuamente com um grau de aleatoriedade que excede nossas previsões. Mas longe de conceber esse fato como uma maldição, é preciso vê-lo como uma oportunidade e um desafio para continuar humildemente aperfeiçoando nossas lutas, bem como suas compreensões e práticas. Acho que é a lição mais importante da atual crise pela qual a Bolívia está passando desde o golpe de Estado perpetrado contra o governo constitucional presidido pelo indígena e socialista Evo Morales.

Um golpe de estado

Diante desse novo golpe de Estado que salpicou de sangue nosso povo irmão, escrevi no domingo passado, 10 de novembro, a um companheiro boliviano, membro do grupo Comuna, um espaço de reflexão crítica em que também participava Álvaro García Linera antes de assumir a vice-presidência de seu país. Embora eu soubesse que, nos últimos tempos, meu amigo se distanciou um pouco do governo liderado por Evo Morales e García Linera, ainda assim queria saber sua avaliação sobre o golpe em curso. Sua resposta me deixou atordoado: “É muito interessante o que está acontecendo, primeiro porque não é um golpe de estado, mas uma rebelião pacífica de cidadãos ante a fraude eleitoral e a postulação ilegal de Evo. Segundo, a velocidade dos eventos demonstra a magnitude da crise nacional do estado que estamos enfrentando e que as transformações necessárias não foram implementadas como orienta a nova Constituição”. Concluiu sua carta dizendo que a Bolívia estava “em um limiar interessante, mas também perigoso. Não te mencionei o forte protagonismo das vozes conservadoras, com sensibilidades religiosas.” Este assunto, me adiantou, seria assunto para outro e-mail.

Rebelião pacífica de cidadãos! Sério? Posso entender que há contradições no seio do processo liderado por Evo Morales e García Linera, que se critiquem e lutem para superá-las, mas tratar o governo como inimigos do povo, que devem ser caçados como supostos traidores, não consigo entender e menos ainda justificar. Perguntava-me: o companheiro estará disposto a assumir sua responsabilidade ou cumplicidade pelas consequências práticas de suas esquisitices teóricas?

Sob o governo de Evo Morales e García Linera, a Bolívia se refundou constitucionalmente como um estado plurinacional, multicultural e uma democracia participativa baseada na autodeterminação, especialmente dos povos indígenas até então invisíveis; nacionalizou o gás e outros hidrocarbonetos; socializou a água como um direito humano fundamental; tornou-se o país com o maior crescimento econômico da América Latina; aumentou seu produto interno bruto em 400%; retirou da pobreza extrema os 30% dos bolivianos que se encontravam nessa situação; eliminou as 8 bases militares que os Estados Unidos tinham no território boliviano; metade dos cargos públicos foram ocupados por mulheres, 68% das quais são indígenas; o salário mínimo aumentou mil por cento; foi criada uma pensão para adultos acima de 65 anos e um auxílio foi estabelecido para todos os estudantes do país; a proteção ao meio ambiente foi ativamente promovida, ou seja, a Pachamama (Mãe Natureza); e o analfabetismo foi reduzido de 22,7% para 2,3%; Entre outras conquistas. A liberdade foi entendida da perspectiva dos de baixo: a emancipação dos mais necessitados de tudo o que impedissem sua incorporação produtiva e politicamente ativa. Portanto, a reação de Evo Morales ao golpe contra seu governo é completamente compreensível: “Meu único pecado é ser indígena, socialista e anti-imperialista”. O golpe de estado ameaça reverter tudo o que se avançou nos últimos 14 anos sob sua presidência.

Em entrevista conduzida pelo jornalista Luis Hernández Navarro, na Cidade do México, no último sábado, o vice-presidente boliviano Álvaro García Linera responde àqueles que afirmam que não houve golpe de estado: “Houve um golpe de Estado desde o momento em que gangues paramilitares de civis armados queimaram sindicatos, seções de votação, atacaram milhares de mulheres indefesas, assediaram mulheres nas ruas e não havendo força policial para protegê-las. Há um golpe de estado porque o comando da polícia ignorou a Constituição, ignorou o comando civil, se amotinou contra o governo eleito constitucionalmente em 2015 até 15 de janeiro de 2020. Houve um golpe porque o comandante em chefe das Forças Armadas… pede ao Presidente Evo Morales para renunciar, ignorando o comando constitucional e dizendo ou renuncia ou o Exército vai te matar. Houve um golpe de estado porque uma deputada indescritível, sem relevância, sem qualquer posição constitucional nas hierarquias de transmissão de comando, supostamente assumiu a presidência desconhecendo a Constituição. É presidente de coerção.”

A luta de classes está sendo vivida nas ruas

De fato, hoje existe uma ditadura sangrenta que, segundo García Linera, tem sua base social em uma classe média tradicional e conservadora que se ressente porque nos últimos 14 anos houve uma redistribuição da riqueza no país que permitiu surgir uma classe média de origem indígena e popular. Em reação a isso, essa classe média tradicional se resguardou em um discurso racista. Os indígenas, os colonos e os camponeses não são “seus irmãos e irmãs”, como pretende um discurso humanista “light”, talvez bem intencionado, mas totalmente alheio a realidade. Eles são seus inimigos de classe sob o discurso racista e classista que assumiu, o qual terminou com sua “fascistização” como um setor social. A democracia ampliada sob a nova ordem constitucional foi a que promoveu a igualdade dos setores indígenas e populares. Daí as multidões de direita aparecerem literalmente, seja em Santa Cruz ou em Cochabamba, para caçar índios ou “collas”, como são chamados em tom depreciativo. Em La Paz, esses grupos racistas e classistas pediram a saída do índio Evo Morales. Esse racismo é apenas uma manifestação de seu ódio de classe. É uma minoria com tendências aristocráticas que incendiaram o país para não perder seus privilégios ou que acreditam que são mais esclarecidos do que os homens e mulheres de baixo.

No entanto, García Linera foi questionado sobre esses setores chamados autonomistas, em relação ao Estado, que a partir de posições críticas da esquerda ou pseudo-esquerda apoiaram os golpistas, como no caso do camarada boliviano mencionado anteriormente. Nesses pontos, García Linera destaca: “O grande problema de alguns desses grupos autonomistas é a falta de realidade, uma maneira de conceber e montar conceitos preocupados com a estética dos conceitos”. Eles estão mais preocupados com a excelente coerência de princípios ou ideais apriorísticas de origem kantiana, eu acrescentaria. Daí sua incapacidade de apreender os fatos reais. O vice-presidente boliviano continua: “Os grupos autonomistas viram no início das mobilizações da classe média tradicional um despertar da sociedade e falaram de uma nova explosão da democracia. Interessante. Qual foi o problema deles? Que não entenderam o conteúdo e a condição de classe das comunidades urbanas que começaram a expressar sua rejeição e a se mobilizar contra Evo Morales. Eram de classe média, de universidades particulares, de bairros abastados; eles não eram dos povoados e periferias, não eram dos bairros da classe trabalhadora, não eram dos bairros de imigrantes.”

García Linera reitera que o primeiro grande erro dos autonomistas foi não compreender esse caráter de classe das primeiras mobilizações contra o governo e sua atual “fascistização”. O segundo grande erro, afirma, é não ter conseguido ler corretamente seu discurso racista e classista. Quando esses grupos urbanos começam a gritar que é preciso sair e matar os “collas”, os grupos e porta-vozes chamados autonomistas ficaram em silêncio. “O que esses autonomistas dizem agora com tudo o que aconteceu? Onde esta todo aquele despertar democrático… E olhe o monstro que eles gestaram… E agora o que os autonomistas vão fazer, se apegar ao seu ‘novo’ sujeito que acabou sendo racista, classista, golpe e fascista?”

Esses chamados autonomistas pecam, segundo García Linera, de um atraso absoluto em relação à realidade. “Se eles eram verdadeiros autonomistas, deveriam perguntar como é que El Alto está se movendo: não há líderes, não há dirigentes visíveis e há chamadas autônomas para reuniões de bairro… É uma cidade, irritada, abusada, mas que não se rende… Há um povo auto-organizado que defende a democracia, o que foi alcançado nesses anos… É hora de se sacudir, de tomar um banhinho de realidade… de entenderem que a luta de classes é essa, aquela que está sendo vivida nas ruas.” Não podemos ignorar que na Bolívia a classe social é visível dentro de um contexto étnico. “Existe um isomorfismo entre classe e etnia na Bolívia”, disse García Linera, um dos mais importantes intelectuais marxistas de Nossa América e do mundo.

A ordem de batalha

O líder marxista boliviano conclui que a principal lição que aprendeu sobre o que aconteceu é que os processos revolucionários e a construção de uma sociedade igualitária não podem ser garantidos por forças militares e policiais herdadas. Ele aceita que não houve renovação completa dessas forças e que, além dela, uma força civil armada devia ter sido criada para defender as conquistas.

O golpe ainda não teve sucesso definitivo, ele insiste. “Ninguém sabe o que vai acontecer finalmente com a Bolívia.” O país está dividido, ressalta. Além disso, ele acrescenta, existe um tipo de estado dividido, um poder duplo. O Poder Executivo está nas mãos dos golpistas e o Legislativo com uma maioria de membros do Movimento ao Socialismo (MAS). Estes e Evo Morales propõem um diálogo para uma negociação que permita romper essa situação e diminuir o número de mortos nas mãos dos militares e da polícia. Isso inclui uma proposta de novas eleições. No entanto, até agora os golpistas – apoiados por Washington e pela Organização dos Estados Americanos (OEA) – pretendem se impor à força.

Esta é a dialética histórica do poder: uma vala sem fim. E embora sempre seja preferível ter sucesso por meios políticos, não podemos esquecer que a política nada mais é do que a guerra por outros meios e, às vezes, quando se tornam indistinguíveis dentro dessa ordem de batalha que é uma sociedade de classes, não há outro senão Não esteja preparado para usar todos os meios possíveis, incluindo a guerra.


* Carlos Rivera-Lugo é militante, investigador e professor de direito em Porto Rico e no México. Seu livro Crítica à Economia Política do Direito foi publicado no Brasil pela Editora Idéias e Letras em 2019. 


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