A classe média, a miopia do reformismo e clareza de Thalheimer

Por Fernando Savella

Em um restaurante, a proprietária, já idosa, cobra de suas funcionárias algumas tarefas que deixaram de ser feitas. Conjectura acerca de outras coisas que, apesar de terem sido feitas, desconfia que foi com desleixo. “É assim que vocês fazem quando eu não estou aqui.” “Não é?” – inquisitiva sobre uma funcionária alheia às críticas. Deixando um clima profundamente tenso no ar, vai embora a bordo de uma SUV e para trás, suas funcionárias encarregadas de fechar o restaurante e, desta vez, fazer tudo certo de acordo com sua vontade.


Em outra região da cidade, um jovem à altura de se formar em sua graduação tece críticas às cotas étnico-raciais. Em sua opinião, bem como na opinião de incontáveis professores universitários, articulistas de jornal, políticos profissionais e outros semelhantes, tudo o que as cotas fazem é colocar pessoas inaptas a se esforçar intelectualmente num ambiente que deveria ser restrito aos merecedores, que devem provar seu valor através de um concurso que avalie objetivamente a sua capacidade intelectual enquanto um indivíduo genérico, desprovido de qualquer particularidade – como a cor da pele ou a origem social.

Esses dois exemplos são sem dúvida casos bem estereotípicos. Mas como todo caso estereotípico na sociologia, eles revelam alguns princípios gerais do fenômeno social do qual são apenas uma manifestação em particular. O primeiro caso é do que chamamos tipicamente de pequena proprietária, no caso urbano, de pequeno-burguesa. Proprietária de um pequeno negócio, empregando um número baixo de funcionários e à margem da “grande propriedade”, o circuito da grande indústria e do grande capital que realmente têm condições de reger a produção e o mercado.

O segundo caso também é originalmente incluído como um caso pequeno-burguês, apesar de não se tratar de um proprietário de qualquer coisa. É que na época da gênese desse conceito, os frequentadores das universidades, que se tornariam os intelectuais e profissionais liberais, eram provenientes da classe dos pequenos proprietários, vivendo hibridamente de sua profissão e de sua renda. Sua determinação mais particular atualmente, no entanto, difere no primeiro caso justamente por sua relação com a propriedade, ou com a ausência dela, e com a necessidade do aparelho escolar e a inserção das competências adquiridas por meio desse aparelho no mercado de trabalho, tornando-se um assalariado, e não um pequeno proprietário.

Essa confusão prática do conceito de pequeno-burguês ocorre por conta do surgimento de um vasto contingente populacional que mistura determinações da pequena-burguesia com determinações dos assalariados. Por um lado, ocupam posições de autoridade direta, técnica ou administrativa dentro da produção e da gestão pública, bem como ocupam espaços historicamente ocupados pela pequena-burguesia, em especial as universidades e escolas particulares. Há também uma vasta estratificação de renda dentro desse contingente, abarcando desde aqueles com um estilo de vida aristocrático até aqueles que acabam por viver em um pensionato nos centros das grandes cidades. Por outro lado, grande parte torna-se assalariada, dependendo de sua titulação escolar e outros elementos de sua trajetória para poderem se inserir no mercado de trabalho da grande indústria e do setor de serviços, bem como de outras atividades marginais.

Esse fenômeno levou a um grande rebuliço na sociologia e também nas leituras políticas de todo tipo de organização de esquerda no século XX e até hoje. Surgiram corpos teóricos robustos buscando explicar, partindo dessa confusão, o fim do paradigma da estrutura de classes, dando lugar ao da estratificação social e da mobilidade social como novos paradigmas para explicar a diferenciação social. Organizações deixaram de focar na problemática da classe trabalhadora para se ocupar com as preocupações desse contingente populacional que saltava aos olhos como o grande novo sujeito social, a chamada “classe média”, que flutuava num espaço social, apresentando um estilo de vida desejável e “acessível” à classe trabalhadora.

Esse rebuliço todo existiu por conta de uma aparente virada ontológica das relações sociais, já que as diferenças entre as classes estavam cada vez menos visíveis e suas fronteiras cada vez mais permeáveis, também impulsionada pela derrubada da União Soviética e de sua influência política e ideológica. Para ser bem claro acerca do que estou defendendo neste texto, o que ocorreu foi que surgiu uma classe cuja reprodução se dava centralmente na instância ideológica, e não na instância econômica [1].

O fundamento ideológico da classe média

Essa classe definitivamente tem como maior objetivo de todas as suas estratégias manter a sua posição econômica, i.e. o monopólio sobre suas ocupações, sua posição privilegiada na esfera do consumo e na hierarquia da produção. No entanto, sua posição não se baseia em uma propriedade, e tampouco é possível que ocupe essa posição apenas vendendo a sua força de trabalho indistintamente como qualquer trabalhador. Em relação às formas primeiras de reprodução da pequena-burguesia existem ainda mais diferenças além da atual ausência de propriedade: Décio Saes explana em Classe Média e Sistema Político no Brasil a luta da pequena-burguesia em se tornar independente das relações pessoais com a burguesia para ocupar suas posições de privilégio, seja na produção, seja nos aparelhos de Estado. Para a reprodução plena dessa classe, é necessário que o processo se torne cada vez mais independente de flutuações e particularidades, e nesse sentido também se desenharão as estratégias de reprodução da classe. A pequena-burguesia e, mais tarde, a “classe média” de forma ampla procurou criar no seio da sociedade de classes as condições objetivas de sua reprodução, e o caminho encontrado foi o da luta ideológica. [2]

É preciso que haja uma conformação que torne os instrumentos utilizados pela classe média para a sua reprodução exclusivos dessa classe, de forma que suas posições não sejam acessíveis a qualquer um entre as classes inferiores, e suas posições sociais sejam sempre ocupadas por indivíduos oriundos da própria classe média. E como o conteúdo de suas ocupações é em geral o trabalho não-manual, a classe média se aproveitará do aparelho escolar como sua arma ideológica para construir tal conformação. Existem inúmeros trabalhos [3] versando acerca desse papel ideológico das escolas em estabelecer o trabalho não-manual como superior ao trabalho manual e o privilégio da primeira socialização dos indivíduos de classe média no esquema de recompensas e punições escolares, bem como na apreciação dos conteúdos passados pelos docentes. A recompensa do desempenho intelectual e não-manual estabelece uma ideologia que justifica, em princípio, a posição social privilegiada daqueles que desempenham o trabalho não-manual e as atividades intelectuais. As formas específicas de escalar dentro do aparelho escolar e em direção às formas de obter titulações que permitem o acesso às ocupações da classe média também agem de forma a excluir a classe trabalhadora.

Tudo acontece como se houvesse nos aparelhos escolares uma peneira que escolhe os mais aptos e esforçados para posições sociais que recompensam essas características ou posturas, quando na verdade há neles a mera reprodução de posições já existentes para indivíduos relativamente pré-determinados. Isso não é, no entanto, um desenrolar mecânico do modo de produção capitalista. Para que isso existisse, foi necessária uma luta para estabelecer uma escola pública, universal e gratuita que pudesse fornecer a base para um mito de igualdade do ponto de partida e do mérito daqueles que alcançam as melhores posições. Também foi necessário um trabalho teórico de peso que defendesse a objetividade e imparcialidade do Estado, como um arbítrio neutro entre o mar de particulares da sociedade civil, de forma a imprimir na intelligentsia dos formuladores de políticas e da opinião pública as noções compatíveis a essa conformação ideológica da reprodução da classe média.

Objetivamente, como é claro, a classe média não possui qualquer característica inata que os torne mais aptos a desempenhar o papel do trabalho não-manual, e a sua luta ideológica se dá, então, no sentido de criar as justificativas pelas quais eles mantêm esse papel: mesmo com a amplificação do acesso à qualificação técnica, por exemplo, mantém-se uma estrutura hierárquica entre as escolas e universidades que provêm a qualificação, distribuindo entre as ocupações de maior privilégio, remuneração e responsabilidade apenas aqueles formados e envolvidos com os espaços mais legítimos e bem avaliados nessa hierarquia. Assim, aqueles provenientes da classe trabalhadora, com acesso em geral limitado às escolas e universidades menos valorizadas (em geral justamente porque essas instituições que alcançam a classe trabalhadora são grandes empresas com o único fim de lucrar sem base sólida na sua atividade-fim, enquanto as mais valorizadas são as instituições com financiamento público ou de longa tradição no campo privado) acabam sendo relegados aos trabalhos de execução em que o saber técnico é simplesmente bem-vindo, ou as ocupações não-manuais mais próximas dos trabalhos de execução, de baixa remuneração, etc.

No campo político

Mas nem toda reprodução ideológica se dá em função direta da reprodução econômica, i.e. das ocupações profissionais, formas de obtenção de renda e da posição nas relações de produção, muito embora o próximo elemento de que irei tratar também seja uma das principais formas de reprodução econômica da classe média, bem como foi da pequena-burguesia. Dada a especificidade do Estado em determinar a validade e existência dos instrumentos de reprodução de todas as classes (daí a sua importância para a gestão dos negócios da burguesia), a classe média se engaja em disputar o seu controle. Neste campo também (o político), a classe média não dispõe de vantagens econômicas próprias para assegurar seu controle, como a burguesia dispõe. Não dispõe tampouco dos números e capacidade organizativa da classe trabalhadora que é capaz de impor seus interesses políticos pelo número, pela força ou pela capacidade de parar a produção, quando devidamente organizada.

Novamente, a classe média dispõe apenas da arma ideológica para se reproduzir no campo político, em direção ao controle do Estado – e não apenas ao seu controle, mas também às ocupações em seu interior e ao seu redor que constituem algumas das principais atividades da classe média como técnicos, juízes, advogados, consultores, etc., etc. e mesmo os próprios corpos dos partidos políticos dentro e fora do Estado. É verdade primeiramente que a pequena-burguesia e a classe média ampla são necessárias para a gestão do Estado burguês, servindo como uma espécie de reserva de quadros para os negócios da burguesia que não podem ser administrados somente pelos poucos integrantes da classe burguesa. Porém, se a reprodução em geral da classe média tende a procurar a independência das particularidades, o mesmo é verdade para o campo político. O meio que essa classe encontra para assegurar sua reprodução no campo político é a ideologia da competência política [4], em que a classe média, por suas características (especialmente relacionadas ao aparelho escolar) e estilo de vida aparece como a classe detentora da competência necessária para a atuação política, em oposição às classes inferiores, desprovidas dessa competência, ou seja, incompetentes politicamente.

A ideologia da competência política é construída com ampla base e amparo da própria ideologia de sustentação do Estado, não por acaso construída através da história do modo de produção capitalista ativamente por figuras intelectuais. O Estado se sustenta na ideia, bem expressa por Marx e Engels na Ideologia Alemã, de representação do interesse geral, acima dos interesses particulares. A transcendência do interesse particular por parte daqueles que administram o Estado aparece como virtude daquele estrato social capaz de deixar de lado a sua imediaticidade para adentrar nas razões mais abstratas envolvidas no interesse geral: aqueles versados na atividade intelectual, que já possuem uma vida propensa ao ócio e, portanto, a priori sem interesses materiais muito marcados. Aqui, novamente, essas formulações ideológicas altamente enraizadas não são um mero reflexo mecânico do Estado sob o modo de produção capitalista, mas algo construído ativamente.

Essa construção pode ser claramente observada quase explicitamente na forma como a atuação política é tratada publicamente. Na forma como o braço repressivo do Estado reprime fisicamente as manifestações que representam os interesses populares, e se envolvem amistosamente com as manifestações de classe média, utilizando de todo o tipo de subterfúgios discursivos para retratar a ação popular como sempre violenta e irrazoável, e a de classe média como sempre amigável e altruísta. Não escapa à forma como a própria classe média entende e apresenta a própria atuação política, insistindo constantemente na coincidência de seus interesses e os interesses da Nação ou do “povo”, tornando genéricos os seus interesses que são socialmente localizados. Nos meios midiáticos também privilegia-se a opinião e os esclarecimentos de intelectuais e técnicos em determinados temas (e provenientes de determinadas instituições universitárias, de pesquisa e think tanks diretamente funcionais como espaços de formação de produtores ideológicos, tais como a USP, a FGV, o INSPER, etc.) para difundir formas oficiais de interpretação de fatos políticos, muitas vezes retratados como fatos simplesmente objetivos ou técnicos apesar de serem na realidade fatos decididos politicamente por motivos políticos (um dos exemplos mais relevantes atualmente é a reforma da previdência). A forma de ingresso nos postos do Estado também é condicionada à relação específica da classe média e o aparelho escolar (que lhes atribui titulações), excluindo os trabalhadores manuais de qualquer relação orgânica com a administração do Estado.

Os meios midiáticos ou, nos termos de Bourdieu, os meios de produção ideológica, que definem e difundem os fatos políticos e discursos também são administrados pela própria classe média. É dessa classe que são destacados aqueles indivíduos legitimados à prática jornalística ou à formulação de conteúdos “dignos” de serem circulados publicamente, cujo valor é autorizado pelas titulações oficiais do aparelho escolar. A classe média aparece como capaz de exprimir o objetivo e o racional, e a classe trabalhadora, apenas o particular e a desrazão.

Classe média enquanto ideologia

Até agora falamos da classe média enquanto a classe cuja principal forma de reprodução é a luta ideológica, no sentido de que os seus instrumentos de reprodução eficazes para as suas posições tanto econômicas quanto políticas são essencialmente os instrumentos propriamente ideológicos. Sua relação com o aparelho escolar, a atribuição de um mérito arbitrário como justificativa de sua posição social e a atribuição de competências, inclusive a competência política, cuja valorização é também arbitrária e ligada intimamente à ideologia de sustentação do Estado e ao estilo de vida que suas condições materiais lhe permitem [5]. A ideologia, no entanto, é uma instância muito mais fluida do que a econômica, e assim, a constituição dessa classe está condicionada a condições também muito mais fluidas do que as que constituem as classes fundamentais do capitalismo. Devemos ressaltar que a ideologia não é um mero conjunto de noções ideais que são aceitas pelos indivíduos ao seu bel prazer. A ideologia é, antes, a própria socialização de um indivíduo, a forma como as relações sociais são entendidas por um indivíduo concreto, ou seja, como a realidade social aparece, em sua experiência. “Fazer parte da classe média”, por sua dimensão ideológica, adquire o caráter de se entender e ser entendido pelos demais a sua volta, como um integrante desse objeto que aparece para os indivíduos como classe média e gozar de seus instrumentos de reprodução material, os instrumentos ideológicos.

Cabe aqui colocar a razão pela qual estou usando o termo classe média: é essencial para a existência dessa classe que ela seja entendida pelas classes inferiores (a saber, pelos trabalhadores manuais e pelo lumpesinato, bem como entre as diferentes frações da classe média, dispostas hierarquicamente em sua estratificação) como um horizonte possível e acessível a qualquer um, dependendo apenas de sua trajetória em particular. Por excelência, o estrato social “médio”, a posição social normal e regular, sendo a pobreza e a exploração, então, patologias, exceções ao sistema. Isso é importante não apenas para a reprodução da classe média, que constrói essa noção ativamente, mas também para a dominação burguesa em geral, uma vez que, quando o modo de produção capitalista apresenta, por meio da ideologia – e da existência ideológica da classe média – uma forma de superação da situação de pauperismo por meio da trajetória individual, a organização classista deixa de ser a única forma de superação da situação material que aparece aos trabalhadores. A posição imediatamente superior nesse “espaço de mobilidade social” aparece como mais acessível e até mais desejável do que o penoso processo de organização da classe.

Essa função ideológica esclarece em grande medida a concessão da burguesia a essas formas de relativa independência de reprodução da classe média em relação ao seu controle direto. Volto a citar Classe Média e Sistema Político no Brasil de Saes como a melhor referência do processo histórico de desenvolvimento da classe média no Brasil e sua dinâmica geral.

A construção ideológica e ampla do que é e quem faz parte da classe média depende, assim, da definição do que é “médio”. Diferentemente do controle dos conceitos teóricos, em que procuramos sempre identificar a que ocupações profissionais uma posição social é ligada, por exemplo, a existência concreta dessa classe enquanto ideologia é muito fluida: durante o ciclo petista, cresceu em grandes proporções a ideia de que os tímidos aumentos na renda da população alçaram grandes contingentes à condição de “classe média”. Embora isso seja uma noção muito artificial e nada ligada às verdadeiras condições de construção da classe média, mesmo as ideológicas, expressa idealmente o que foi um dos processos reais de amplificação dessa classe, e que devemos tratar teoricamente. É a inclusão de pequenos proprietários ligados ao setor de serviços (com negócios normalmente instáveis e ameaçados pelo grande capital) que, ao ascenderem em renda e atribuírem a sua trajetória ao mérito do “empreendedor” são enquadrados enquanto classe média, mesmo não se tratando da pequena burguesia tradicional e nem da classe média ampla (a “nova pequena-burguesia” [6] de Poulantzas, os “colarinhos brancos” de W. Mills [7]), mas de uma fração da classe média ligada à pequena-propriedade e à noção de mérito imbuída em sua trajetória. Essa posição em específico pode resultar tanto da ascensão quanto da decadência, em que, não sendo possível para um indivíduo de classe média manter o seu emprego em determinada condição do mercado de trabalho, lhe resta investir em um comércio, pequeno estabelecimento, etc.

Por esse meio, uma das vias de ascensão ou reprodução social incluídas nessa ideologia da posição média se torna o empreendedorismo no mercado (possibilitado por crédito, poupanças ou redes de contatos, elementos que geralmente só podem ser mobilizados pela classe média e por estratos superiores da classe trabalhadora), e não mais apenas o esforço dentro dos aparelhos escolares. Se a reprodução através do aparelho escolar evoca a impessoalidade, a objetividade e a racionalidade desse aparelho para imbuir o indivíduo de classe média de uma competência, o “empreendedorismo” repousa nessas mesmas características, só que atribuídas ao mercado, árbitro objetivo do mérito na ideologia dominante.

Esse é outro aspecto da existência ideológica da classe média que, por meio da existência material e visível de posições intermediárias cujo acesso é unicamente mediado por trajetórias individualmente consideradas, serve à reprodução da dominação burguesa, para além da reprodução específica da classe média.

Existem então diferentes ocupações e posições que constituem a classe média e suas frações, não sendo a sua totalidade ligada ao aparelho escolar e suas formas específicas. Dessa forma, não podemos compreender a classe média e sua atuação como obra de disposições homogêneas por toda a sua extensão. Nesta exposição, é possível perceber que os principais princípios de reprodução da classe média, e o que cria a preponderância ideológica em sua reprodução, é obra das frações ligadas ao aparelho escolar e que a constituição da classe por tal variedade de frações não ligadas diretamente a esses aparelhos é fruto da existência da classe no processo vivo da luta de classes em que imperativos ideológicos e signos são disputados por indivíduos, grupos sociais e classes em seu proveito [8] e, assim, passam a ser determinados pelas condições específicas da classe média. É um processo descrito por Saes como a dependência das camadas médias em relação à intelectualidade que, apesar de não compor toda a classe média, é o grupo social responsável por imprimir a um conjunto de práticas a legitimidade de que goza por suas disposições específicas.

Alguns poderiam dizer, após essa exposição, que não faz sentido juntar a pequena-burguesia tradicional, dos pequenos proprietários, profissionais liberais e quadros de alto escalão do Estado com o contingente assalariado que desempenha o trabalho não-manual: que, no lugar disso, devemos os considerar como parte da classe trabalhadora, justamente por serem assalariados, determinados enquanto classe pela relação do assalariamento. No entanto, a forma de reprodução social desse contingente, por depender dos elementos que citamos, lhes proporciona determinações muito diferentes das da classe trabalhadora. E certamente não se tratam de determinações que passem ao largo da nossa análise, como se o nosso trabalho político com a classe trabalhadora em geral valesse o mesmo para esse contingente de classe média, bem como não podemos deixar de reconhecer o seu papel na sustentação da ideologia da “posição intermediária”, diferente do papel e perfil ideológico da classe trabalhadora.

Não se trata, ainda assim, de dizer que é uma classe “não-econômica” e “puramente ideológica”. São as próprias relações de produção, a “situação de trabalho” – para utilizarmos o léxico de Saes – em que esses agentes estão inseridos que condicionam a sua existência ideológica. A qualidade do trabalho (não-manual), sua posição de autoridade e controle da produção sobre os trabalhadores manuais, e a sua formação nos aparelhos necessários para o desenvolvimento de seu trabalho, são os elementos constitutivos de todos os aspectos ideológicos da classe média que se desenrolam em suas relações políticas e sociais, por sua vez responsáveis pela reprodução de sua posição nas relações de produção, bem como é também a posição nas relações de produção que permite e condiciona a socialização dos indivíduos que, não ocupando essas mesmas posições, são socializados e construídos como integrantes da “classe média”.

A miopia do reformismo

Mesmo tendo suas determinações muito distintas das determinações da classe trabalhadora, as mais amplas massas da classe média ainda estão sob o jugo do assalariamento e, quando não, ameaçados pela força dos grandes monopólios no mercado, pondo em xeque a sobrevivência de suas pequenas propriedades. A especificidade que essa classe deve adquirir nas nossas considerações estratégicas é a de suas determinações e condicionamentos mais particulares, como visto, ligadas à sua reprodução preponderantemente ideológica.

Porém, do ponto de vista da estratégia socialista, não é interessante cairmos nas ilusões reformistas de transformações “graduais” que agradem a classe média e ganhem essa classe para o lado progressista do campo político a partir da assimilação das especificidades ideológicas da classe média. As experiências da América Latina, em especial a do próprio Brasil (além de sua versão mais radical, da Venezuela), nos mostram que o reformismo e as políticas populares através da própria manutenção e expansão do capital ganham sim frações da classe média para o campo progressista, mas encontram no “progressismo” o seu limite; e quanto à grande maioria da classe média, encontra seu limite no próprio momento em que essas políticas passam a ameaçar mais significativamente seus instrumentos de reprodução e suas perspectivas de trajetória. Após esse limite, a classe média se volta ativamente contra o reformismo, em direção ao autoritarismo de direita, e é aí que se encontra o “radicalismo de classe média” que muitos interpretaram como uma força progressista de 2011 a 2013.

A reação da classe média nos casos reformistas, e também sua reação violenta por meio das contrarrevoluções no mundo inteiro [9], normalmente serve de argumento para negar o caminho revolucionário, como se o processo fosse muito custoso (aparentemente, para os reformistas, mais custoso do que manter por mais décadas a dominação capitalista com toda a sua violência genocida contra a classe trabalhadora). É verdade que a classe média representa uma força central da contrarrevolução, e talvez a massa mais importante para a operacionalização da contrarrevolução sob os interesses da burguesia. Mas também é verdade que as alternativas ao processo revolucionário não foram eficazes para o objetivo socialista e nem para os interesses mais imediatos dos trabalhadores, e um dos motivos é que essas alternativas não são capazes de satisfazer seu próprio propósito – de serem políticas “macias” para a experiência da classe média, e aceitáveis a longo prazo – e de toda forma ferem as formas de reprodução da classe média, gerando sua reação. Para conseguirmos uma cooperação de fato da classe média, não é necessário apenas regular um discurso suave focado na conciliação e na ideia de “objetividade”, adaptando a ação política de forma passiva à ideologia de classe média, mas transformar a própria experiência cotidiana da classe.

A pequena-burguesia na luta de classes é tradicionalmente descrita como uma classe pendente, dependendo de qual das duas classes antagônicas estiver com melhores condições de exercer seu domínio. No entanto, sua afinidade e interesse na ordem burguesa seja por sua formação ideológica, seja pelas condições materiais de reprodução, é inegável. A própria história nos nega a aplicabilidade absoluta daquela tese por meio da participação da classe média nas contrarrevoluções, situações em que a classe trabalhadora já reunia condições objetivas e superiores de exercer sua dominação (ainda mais no caso do Chile, que se deu por vias democráticas!). É preciso trabalharmos com a percepção da classe média acerca da classe em vantagem na luta de classes e a classe cujos interesses são mais próximos dos interesses imediatos de reprodução material da classe média. Essa percepção passa pela experiência dentro do próprio campo político, em que se disputa a prática política mais legítima, e na sua experiência mais ampla, em espaços em que a classe trabalhadora aparece como inferior, desmobilizada, marginalizada e alienígena.

Já tratamos mais acima da importância da ideologia da competência política para a classe média. A apresentação da classe trabalhadora e, no caso dos espaços de atuação política, do campo político, das organizações políticas da classe trabalhadora, deve aparecer como as práticas políticas mais legítimas sem abrir mão da coerência com nossos objetivos estratégicos. Não significa simular a crença na institucionalidade, na democracia genérica ou qualquer coisa assim, mas se mostrar como organizações coerentes e, acima de tudo, preocupadas com as problemáticas cotidianas dessa classe. É um preconceito muito comum desdenhar de toda a experiência da classe média, ignorando que muitos dessa classe estão em condições de proletarização ou de iminência de proletarização, bem como extensas dívidas e intensa pressão nos ambientes ou relações de trabalho e serviços. Se por um lado a classe média tem uma afinidade forte com as pautas burguesas de “anti-corrupção” e “ética na política”, em grande medida é por falta de uma alternativa de peso no leque de enquadramentos políticos disponibilizados pelos meios de produção ideológica atuantes no campo político. Também significa, em determinados espaços de atuação voltados para o trabalho com a classe média, escolher slogans políticos específicos que não tragam para a atuação nesses espaços os preconceitos da classe média contra as organizações da classe trabalhadora, muitas vezes alimentados pela necessidade dessas organizações se legitimarem entre si e trabalharem com outros estratos sociais.

Ao contrário do que os reformistas apontam, ainda assim, essa forma de abordar a classe média não precisa se dar por meio da atuação institucional, da reafirmação das instituições, etc. A confiança da própria classe média nas instituições oscila muito facilmente, oscilações essas que sempre foram aproveitadas pelas grandes organizações reformistas para promover uma diferente composição das instituições (ao invés de um diferente ordenamento do poder), jogando o problema para um lado pouquíssimo produtivo do ponto de vista da estratégia socialista. Nesse trabalho, as instituições burguesas devem ser negadas, em nome das formas organizativas próprias da classe trabalhadora, e negadas não apenas discursivamente, mas mostrando por meio da inserção no cotidiano da classe média de um trabalho político eficaz, consequente e conectado com a experiência imediata da classe. Naturalmente, isso só será efetivamente possível com um bom e amplo desenvolvimento dessas formas organizativas, bem como sua participação ativa na vida política das cidades e do país, mais um motivo pelo qual, mesmo do ponto de vista da disputa da classe média, a classe trabalhadora continua sendo o grande foco de toda e qualquer estratégia socialista.

Essa condição (o fortalecimento da classe trabalhadora) não é necessária apenas por questões operativas. Mas especialmente por conta de que para a classe trabalhadora exercer as “práticas legítimas” do campo político, não é suficiente apenas ser coerente e consequente, isto é literalmente o mínimo e algo já desempenhado por diversas organizações de trabalhadores. Os próprios parâmetros de legitimidade do campo político devem ser transformados por meio da força numérica dos trabalhadores ao ocuparem os espaços de debate e atuação política, elegerem e principalmente alçarem publicamente quadros das suas fileiras. Para que haja qualquer superioridade da classe média e da burguesia nesse campo, é necessário que as massas trabalhadoras sirvam de suporte numérico e ideológico para que os quadros das fileiras dessas classes ocupem os postos de responsabilidade e formulação política. A reprodução da burguesia e da classe média no campo político deve ser impossível a não ser que se filiem às práticas próprias das organizações de trabalhadores. Apesar de, sob a ordem burguesa, o campo político ser materializado especialmente nas instituições burguesas e por meio das eleições, esse processo não necessariamente se limitará a essas instâncias – e, para os nossos fins estratégicos, deve ter por objetivo destruir e superar essas instâncias.

No final das contas, o segredo da disputa da classe média é disputá-la a partir de seus interesses e aspirações concretas, tal como diagnosticamos acerca da disputa da classe trabalhadora, e da forma como aparecem em sua ideologia. O grande problema colocado é que a existência ideológica da classe média leva a diversas leituras equivocadas e interessadas acerca dos imperativos estratégicos do “campo progressista”, liderado pelos reformistas. É necessário desvelar as origens materiais e as especificidades dessa existência ideológica para entendermos que não são apenas o discurso e políticas “suaves” que resolverão o problema da classe média.

A classe média no Brasil e na América Latina está sob o constante risco da proletarização, especialmente durante os períodos de hegemonia incontestável do neoliberalismo. Apesar da socialização dos indivíduos de classe média não se alterar necessariamente com a proletarização, esse processo pode significar uma alteração significativa em sua ideologia dependendo de como se desenvolver a solidariedade de classe em seus locais de trabalho e habitação. No período em que entramos, a proletarização da classe média pode se aprofundar por conta do enfraquecimento da economia e da diminuição generalizada dos salários e condições de trabalho, o que certamente afetará os setores que mais empregam a classe média, além da maior vulnerabilidade que sofrerão as famílias caso a Reforma da Previdência seja aprovada. A classe média brasileira já esteve em condições ainda mais graves de proletarização no passado, e constituíram ampla base para projetos políticos do campo progressista, ao lado de organizações de trabalhadores, mas foi capturada justamente pelos reformistas e sua estratégia incapaz de compreender o caráter puramente conjuntural dessa “aliança”, face às relações estruturais que levam a classe média a agir de forma a se distanciar da classe trabalhadora, enquanto ainda existir enquanto uma classe materialmente diferenciada (materialmente, aqui, incluindo as experiências ideológicas, como no campo político). É necessário capturar essa pulsão política da classe não reafirmando a sua superioridade propondo um “país de classe média” e a ideologia da posição média, mas incorporando a classe média no sujeito legítimo da classe trabalhadora, um sujeito legítimo construído pela atuação estratégica das organizações desta última e pela transformação qualitativa da presença da classe trabalhadora no campo político.

O grande erro, ou a miopia proposital, das lideranças reformistas, é considerar a ideologia de classe média uma essência à qual devemos adaptar a prática política de forma a conseguirmos melhores resultados, e não uma forma específica e socialmente situada de experiência; bem como superestimar o papel da classe média e deixar de lado a classe trabalhadora, cujo destino foi o imobilismo. Se, por um lado, o reformismo efetua uma política de conciliação com a burguesia, o faz em grande medida porque se rende à complexidade das bases sociais da ordem burguesa e seus mecanismos ideológicos. A nitidez, interessada de fato na liberação das classes dominadas, está em entender a especificidade dessa ideologia, da preponderância da reprodução ideológica da classe média e as limitações e os cuidados que esses elementos impõem ao nosso trabalho, sempre com a referência no nosso objetivo final e na centralidade da classe trabalhadora nesse processo.

Frente a essa miopia, é mais do que cabido trazer a clareza de August Thalheimer: “Na Alemanha, a evolução da pequena-burguesia em direção ao fascismo, isto é, ao lado do grande capital, é a consequência direta da traição da Social-Democracia. (…) Só como defensor sincero e intransigente dos interesses da classe média afligida, poderá o proletariado arrancar a arma fascista das mãos do grande capital e, assim, reforçar suas próprias fileiras como todos aqueles destas camadas médias que estejam dispostos a lutar ao lado dos trabalhadores.” [10]. Notem que o agente é o proletariado organizado, e não uma organização amorfa (como as social-democratas) que pretende encontrar na pequena-burguesia uma via suave para chegar ao poder.


[1] Parto aqui da concepção de classes de Nicos Poulantzas, em que só podemos definir uma classe partindo das três instâncias, econômica, política e ideológica, reconhecendo que em cada fenômeno social elas estão combinadas, cada uma com sua própria lógica relativamente autônoma, mas com a preponderância da instância econômica na formação social onde domina o modo de produção capitalista. Ou seja, a instância econômica é a determinante em última instância. Essa formulação teórica nos permite observar com maior clareza as formas particulares de combinação dessas instâncias, especialmente nas classes. Aqui, a ideia da preponderância ideológica no caso da classe média se dá por conta das suas formas centrais de reprodução serem mais dependentes da construção das relações ideológicas do que diretamente da propriedade ou da venda da força do trabalho genericamente. Não significa, no entanto, que a ideologia seja independente da reprodução econômica e das determinações econômicas em geral, sendo compreendida como uma forma material de experiência.

[2] Sobre este assunto, além de Classe Média e Sistema Político no Brasil, ver também Classe Média e Escola Capitalista, também da autoria de Décio Saes.

[3] Entre os quais podemos citar Os Herdeiros de Bourdieu, A Reprodução de Bourdieu & Passeron, a própria Classe Média e Escola Capitalista de Saes, trechos de Classes Sociais e o Capitalismo de Hoje de Poulantzas, Learning to Labour de Willis, entre outros.

[4] A noção de competência política aparece bem desenvolvida no capítulo 8 de A Distinção, de Bourdieu.

[5] Sobre o estilo de vida, me refiro particularmente ao fato de que a forma como um indivíduo e, neste caso, uma classe aparece publicamente através da forma como vive é eficaz na construção e veiculação dos elementos ideológicos que estão sendo aqui trabalhados. Um estilo de vida desvinculado da constante necessidade de sobrevivência é um elemento central para a construção ideológica de um sujeito capaz de acessar o “interesse geral” e ignorar as próprias necessidades.

[6] Em As Classes Sociais no Capitalismo de Hoje, Poulantzas se atenta para o mesmo crescimento do contingente de assalariados empregados no trabalho não-manual a que nos referimos no começo deste texto.

[7] A mesma tendência é notada por W. Mills em White Collar, ainda que inserido na tradição da estratificação social.

[8] No caso dos “empreendedores”, que adentram na classe média por vias diferentes das titulações do aparelho escolar, a sua reprodução econômica, apesar de depender da pequena propriedade e muitas vezes do trabalho familiar, depende também da conformação ideológica criada pelas frações já estabelecidas da classe média, impondo uma estética do consumo de classe que é aproveitada por esses “empreendedores”, de forma a diferenciar seus serviços. Isso se converte em um amplo aparato relacionado, com especialistas em empreendedorismo, eventos com a estética própria desse tipo de prática, etc.

[9] Ver Counterrevolutions, the countryside and the middle classes, de Walden Bello, gentilmente trazido pelo camarada Nikolas Maciel.

[10] Citação de O Fascismo, a Pequena-Burguesia e a Classe Operária, August Thalheimer, 1923.

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