Proletários Nômades

Por Slavoj Žižek, via The Philosophical Salon, traduzido por Oleg Savitskii e Anna Savitskaia.

Em alguns círculos esquerdistas, o crescimento explosivo no número de refugiados deu origem ao conceito de “proletariado nômade”. A ideia basilar é que no mundo globalizado de hoje o principal antagonismo (a contradição “primária”) não mais é entre a classe dominante capitalista e o proletariado, mas entre os que estão seguros sob a cúpula do mundo “civilizado” (com a ordem pública, direitos básicos, etc.) e os excluídos, reduzidos à mera vida.  


“Proletários nômades” não estão simplesmente fora da cúpula, mas em algum lugar intermediário: sua forma de vida substancial pré-moderna já está despedaçada, arrasada pelo impacto do capitalismo global, no entanto não estão integrados à ordem global, de sorte que andam a esmo no submundo intermediário. Não são proletários no estrito sentido marxista: paradoxalmente, quando chegam a países desenvolvidos, o ideal da maioria deles é justamente tornarem-se proletários “explorados” normais. Recentemente, um refugiado do Salvador que tentou entrar nos Estados Unidos pela fronteira com o México, disse diante das câmeras de TV: “Por favor, Sr. Trump, deixe nos entrar, apenas queremos ser bons trabalhadores em seu país.”

Pode a distinção entre proletários propriamente ditos (trabalhadores explorados) e proletários nômades (menos que proletários) ser de alguma forma borrada numa nova categoria mais abrangente de proletários de hoje? Do ponto de vista marxista, a resposta é um retumbante não. Para Marx, proletários não apenas são “os pobres”, mas aqueles que, por meio de seu papel no processo de produção, são reduzidos a uma subjetividade despojada de todo conteúdo substancial; como tais, são também disciplinados pelo processo de produção para tornarem-se portadores de seu futuro poder (a “ditadura do proletariado”). Aqueles que estão fora do processo de produção – e, portanto, não têm lugar numa totalidade social – são tratados por Marx como “lumpen-proletários”, e neles ele não vê nenhum potencial emancipatório. Antes, trata-os com grande desconfiança, como a força que, por via de regra, é mobilizada e corrompida por forças reacionárias (como Napoleão III).

As coisas complicaram-se com a vitória da Grande Revolução de Outubro quando os Bolcheviques passaram a exercer o poder num país em que não apenas a grande maioria da população era pequenos agricultores (sendo que os Bolcheviques tomaram o poder justamente prometendo-lhes a terra!), mas também em que, por conseqüência de revoltas violentas durante a guerra civil, milhões de pessoas viram-se em situação (não de lumpen-proletários clássicos, mas) de nômades sem lar, que ainda não eram proletários (reduzidos ao “nada” de sua força de trabalho), mas literalmente menos do que proletários (menos-que-nada). Sua presença maciça é o tema central da obra de Andrei Platónov que descreveu em detalhes seu modo de vida, elaborando uma “ontologia materialista da vida pobre” única.[1] Do ponto de vista da “ontologia da vida pobre”, o paralelo entre Beckett e Platónov é completamente relevante: não será a experiência de “vida pobre” também a essência da grande trilogia de Beckett Molloy, Malone Morre, O Inominável? O tema inteiro assim como os detalhes de Malone Morre referem-se às peripécias da França durante a ocupação alemã e suas conseqüências: o controle, o terror e a opressão nazista e colaboracionista, a vingança contra colaboracionistas e a maneira como refugiados foram tratados quando voltavam para casa e se recuperavam. O que dá tanto poder ao romance é precisamente o fato de que esses três âmbitos são condensados numa única experiência sufocante dum indivíduo deslocado sem lar, dum indivíduo perdido num emaranhado de providências policiais, psiquiátricas e administrativas.

A diferença entre Platónov e Beckett reside no fato de que, enquanto Beckett apresenta a experiência de refugiados sem lar como indivíduos à mercê das instituições estatais, Platónov enfoca grupos nômades deslocados numa situação pós-revolucionária, quando o novo poder comunista intenta mobilizá-los para a luta comunista. Cada uma das obras de Platónov “parte do mesmo problema político de como construir o comunismo: de o que o comunismo significa e de como a ideia comunista atende às condições concretas e à realidade da sociedade pós-revolucionária.” A resposta de Platónov a esse problema é paradoxal, longe da rejeição dissidente comum do comunismo. Seu resultado é negativo assim como todas as suas histórias são histórias de fracasso. A “síntese” entre o projeto comunista e os grupos nômades deslocados termina num vazio; não existe unidade entre proletários e menos-que-proletários:

“Em Chevengur (1926-28), o órfão Sasha Dvánov torna-se comunista no ano da revolução, junta-se aos Bolcheviques e vai cumprir uma incumbência do partido num vilarejo. Durante a sua longa viagem, Dvánov descobre o ‘comunismo num só vilarejo’, instituído por camponeses pobres. O comunismo do vilarejo Chevengur é acompanhado de vários experimentos absurdos com planejamento urbano e agricultura, e de terror e fome permanentes. Os intelectuais orgânicos errantes são um complemento às massas, classes e comunidades errantes, e, em sua migração, são todos acompanhados de animais, plantas e paisagem natural. O protagonista de Djan (1936), Nazar Chagatáev retorna à sua cidade natal no Turquestão, numa missão do partido de encontrar a nação nômade perdida Djan, da qual ele provém, a fim de estabelecer uma ordem socialista. A obra Djan foi escrita após duas viagens de Platónov ao Turquestão como membro das delegações de escritores. Foi durante o período em que a guerra civil no Turquestão havia acabado há pouco tempo, inaugurando-se  uma campanha contra as formas de vida nômades tradicionais. A tarefa da delegação foi escrever uma história de socialismo real ortodoxo sobre o processo exitoso de “civilização” das comunidades locais. O problema central de Djan de Platónov pode parecer adequar-se a essa tarefa, narrando a história de um “Moises Vermelho” que leva os nômades habitantes do deserto asiático ao socialismo. Porém, Chagataev volta a Moscou quando sua missão termina e restam dúvidas sobre o futuro do comunismo no deserto. /…/ A obra mais famosa de Platánov, A Escavação (1930), também foi criada no contexto do primeiro plano qüinqüenal. A trama desenrola-se por meio de uma série de reuniões entre o protagonista Voshchev e o os habitantes de uma pequena cidade provinciana, envolvidos na construção de uma enorme casa proletária. Enquanto Voschchev desafia os representantes de diferentes grupos de classe sociais, enredando-se numa investigação socrática em busca da verdade, “o projeto adquire um plano cada vez mais grandioso, antes de finalmente chegar ao fim sem resultado.”

Mas, ao mesmo tempo, afastamo-nos tanto quanto possível da velha crítica conservadora liberal da revolução como uma tentativa violenta de impor à vida real modelos que lhe são alheios. Primeiro, Platónov articula seu desespero a partir da posição dum guerreiro dedicado ao Comunismo (trabalhou ativamente com grupos nômades nos anos 1920, inclusive num nível técnico muito prático, planejando e organizando projetos de irrigação, etc.) Segundo, Platónov não retrata um conflito entre a tessitura tradicional da vida social e a tentativa revolucionária radical de mudá-la no estilo da crítica de Edmund Burke à Revolução Francesa. O seu foco não é as formas tradicionais de vida, mas os nômades desapossados cujas vidas já foram irremediavelmente arruinadas pelo processo da modernização. Em síntese, o talho radical, que Platónov retrata, não é entre uma multidão proletária espontânea e as forças comunistas organizadas, mas entre os dois aspectos da própria multidão proletária, entre os dois “nadas” sociais: o “nada” estritamente proletário dos trabalhadores modernos gerados pelo capitalismo, e o “menos-que-nada” dos não integrados ao sistema, nem sequer como sua negatividade imanente, como fica claro nesse breve diálogo de Chevengur: “‘Quem é que você nos trouxe?’ Chepurny perguntou a Prokofy […] ‘São proletários e outros’, disse Prokofy. Chepurny ficou perturbado ‘Que outros? De novo a camada de ralé residual?’ […]  ‘Os outros são os outros. Ninguém. São inclusive piores do que o proletariado.’” Eis mais algumas passagens que descrevem esses “menos-que- nadas”:

“Os heróis de Platónov têm diferentes origens nacionais e culturais, mas, não obstante, representam a mesma categoria: o proletariado. A ideia por trás dos rostos “internacionais” e “não russos” é a de um proletariado multinacional médio que compõe uma classe. Existe uma explicação significante de ‘não-russidade’ das pessoas nômades desclassificadas em Chevengur: “Este é o verdadeiro proletariado internacional: olhe – não são russos, não são armênios, não são tártaros – não são coisa alguma! Trago-lhes uma internacional viva’ É justamente essa perspectiva multinacional, e poderíamos até dizer, anticolonial que leva Platónov à desconstrução da imagem predominante da classe trabalhadora industrial e branca que era tão típica entre os adeptos da linha dura da Proletkult (Proletkult é a abreviatura da expressão russa “proletarskaya kultura”, que significa “cultura proletária”. Foi um movimento literário surgido na Rússia em 1917. Nota de tradutor)”. / “‘Ele viu companheiros do tipo que nunca tinha encontrado antes, pessoas sem qualquer compreensão ou aparência de classe e sem valor revolucionário. Eram, antes, alguma espécie de outros inomináveis que viviam completamente sem importância, sem orgulho e de um lado do iminente triunfo mundial. Era impossível compreender inclusive a idade desses outros, pois tudo que se podia perceber foi que eram pobres, que tiveram corpos que cresciam a contragosto, e que eram estranhos para todos.’”/ “Platónov chama a seus vagueadores desclassificados marginais de ‘pessoas feitas à mão com designação desconhecida’, ‘incontáveis’ ‘passíveis de erro’ ou “protchiye’ – ‘outros’. A palavra russa protchiye também refere-se a ‘resto’, ‘sobra’. Assim, os ‘outros’ são o resto das pessoas; não pertencem a nenhuma categoria de classe da teoria marxista, porque são pobres demais e afastados da vida social normal.’ /”O outro, portanto, refere-se a alguém que permanece não contabilizado devido a seu estado amorfo e marginal, mas que também faz parte duma multiplicidade que não é contável – parte dum povo nômade e disperso, uma anomalia da humanidade, preso entre a vida e a morte social e biológica.”

Como a última frase citada deixa claro, deve-se absolutamente evitar a elevação de protchiye a um local original de produtividade, sua presença vivente oprimida pela representação do estado. Prochiye não são a multitude deleuziana; pelo contrário, são os “mortos vivos” apanhados numa passividade improdutiva, basicamente privados da própria vontade de estar ativos. É por isso que deveríamos nos arriscar a propor mais uma tradução da palavra prochiye: vizinhos com todo o peso bíblico desse termo, aqueles que são “outros” e precisamente como tais sempre muito próximos, não importa quão longe estejam. O que os torna próximos é o fato de que carecemos duma distância adequada em relação a eles, porque não possuem uma identidade clara, um lugar na sociedade. O lema cristão “ama teu vizinho como a ti mesmo” adquire aqui seu peso completo: o verdadeiro amor social é o amor por menos-que-nadas não contabilizados. Entretanto, esse amor pode assumir diferentes formas, e embora os Bolcheviques indubitavelmente os tenham amado, desejado ajudá-los e salvá-los, seguiram o modelo do que Lacan chamou de “narrativa universitária”: prochiye eram seu objet petit a, e eles concentraram todo seu esforço em esclarecê-los, transformá-los em sujeitos modernos. Destarte, o conflito que está no coração da obra de Platónov não é o conflito entre inimigos, mas uma espécie de briga de namorados: os Bolcheviques queriam ajudar os outros sem lar, civilizá-los e os outros (retratados por Platónov) endossaram sinceramente os ideais comunistas e lutaram por eles, mas tudo deu errado:

“Nos romances de Platónov, os outros são sempre manipulados por camaradas ‘mais conscientes’, líderes do partido e intelectuais, mas sempre sem êxito – é quase impossível integrar os outros ao corpo coletivo de trabalhadores e estabelecer uma socialidade normalizada, alicerçada na coletivização do trabalho e da produção industrial.”

Porém, Platónov notou sutilmente que essa não é apenas uma lacuna entre a força revolucionária consciente de si mesma e a inércia das multidões: embora os Bolcheviques tenham focado o aspecto operacional da transformação social, a essência da utopia comunista estava presente diretamente nos sonhos dos Outros que esperavam que algo radicalmente novo surgisse. O comunismo nem de longe estava mais próximo do que na imobilidade dos outros, na sua resistência a ficarem presos em providências operativas concretas: “o status especial dos pobres e dos elementos desclassificados, os quais, ao contrário dos trabalhadores organizados, dos representantes do partido e dos intelectuais, estão prontos para ficar onde estão, a fim de fazer algo radicalmente novo. De certa maneira sua é a vida que permanece em estado de espera, e a questão é que tipo de política será estabelecida aqui.” As famosas inflexões da linguagem de Platónov também estão localizadas nesse contexto de tensão entre a linguagem oficial do Partido e o linguajar “primitivo” dos outros:

“Platónov retratou o desenvolvimento duma nova língua soviética, feita de palavras de ordem revolucionárias, do vocabulário da economia política de Marx, do jargão de Bolcheviques e burocratas do partido, e sua absorção por camponeses e trabalhadores analfabetos. As pesquisas históricas mostram que, para a maior parte da população pós-revolucionária, especialmente no interior, a linguagem do partido era estranha e incompreensível, de modo que “eles mesmos começaram forçosamente a absorver o novo vocabulário […] muitas vezes deturpavam seus termos desconhecidos e livrescos ou reconfiguravam-nos como algo mais compreensível, porém absurdo. Assim, “deistvyushchaya armia” – “o exército em operações” – virou “devstvyushchaya armia” – “exército virginal” – porque as palavras “em operações” e “virginal” soam quase idênticas em russo; “militsioner” (“miliciano”) virou “litsimer” (“hipócrita”).”

Não será essa mistura única anormal, com toda sua mobilização “irracional” de semelhanças sadias, que pode lançar faíscas de uma verdade inesperada (num regime opressivo, policiais SÃO hipócritas; revolucionários DEVEM agir de maneira virginal, numa espécie de inocência libertada de todos os motivos egoístas), um caso exemplar do que Lacan chamou de lalangue, uma linguagem transpassada por todos os antagonismos sociais e sexuais que a distorcem além de sua estrutura lingüística? Essa lalangue emerge através do uso de dois dispositivos (quase) simetricamente opostos por Platónov: primeiro, “ele interpreta uma definição ideológica abstrata através do uso do homem comum, da pessoa do povo, e, segundo, ele faz uma operação inversa, quando sobrecarrega as palavras e expressões mais simples e mais claras do dia-a-dia […] com um conjunto de associações ideológicas’, de tal forma que essas palavras se tornam ‘tão terrivelmente improváveis e confusas que acabam perdendo seu significado inicial’.”

Qual é a implicação política dessa perda do significado? Embora sejam interpenetrantes, os dois níveis – o discurso bolchevique oficial e o discurso cotidiano dos outros – permanecem para sempre antagônicos: quanto mais a atividade revolucionária tentava combiná-los, mais seu antagonismo ficava palpável. Esse fracasso não é empírico e contingente porque os dois níveis simplesmente pertencem a espaços radicalmente heterogêneos. Por essa razão, deve-se também evitar a armadilha de louvar a “subcorrente” do marxismo soviético, a linha que rejeitou o papel de controle “de cima” do Partido e contava com a auto-organização direta dos trabalhadores “de baixo”, como foi o caso de Bogdánov. Essa outra linha indicava esperança de um desenvolvimento diferente, menos opressivo da União Soviética, ao contrário da abordagem de Lênin que tinha lançado as bases do Stalinismo. É verdade que a outra linha foi uma espécie de “sintoma” do marxismo leninista oficial; registrou o que foi “recalcado” na ideologia soviética oficial, mas justamente como tal, permaneceu parasitando o marxismo oficial, isto é, não conseguiu ter uma existência autônoma. Em síntese, a armadilha a ser evitada aqui é a tentação de elevar a “vida pobre” dos outros a uma espécie de vida comunal autêntica, a partir da qual pode surgir uma alternativa para nossa modernidade capitalista infortunada. Não há nada de autêntico na vida pobre dos outros; sua função é puramente negativa, registrando (e até mesmo dando corpo a) o fracasso de projetos sociais, inclusive o comunista.

E, desafortunadamente, o mesmo fracasso, o qual é necessário por motivos estruturais, também caracteriza um projeto homólogo de fusão da classe operária de hoje e dos “menos-que-proletários” de hoje (refugiados, imigrantes), isto é, a ideia de que o “proletariado nômade” é uma fonte potencial de mudança revolucionária. Aqui, também, se deve compreender a lição de Platónov: a tensão não é entre as classes conservadoras-racistas locais e os imigrantes. A diferença em todo o “modo de vida” é tão forte que não se pode contar em obter facilmente a solidariedade de todos os explorados. Talvez o antagonismo entre proletários e os “outros” menos-que-proletários é um antagonismo que é, de certo modo, até mais insuperável do que o antagonismo de classe dentro da mesma comunidade étnica. Precisamente nesse ponto, quando a “subsunção” (dos outros a “nossos” proletários) parece mais óbvia, e a universalidade de todos os oprimidos parece próxima, ele escapa ao nosso alcance. Em outras palavras, os outros “menos-que-proletários” não podem ser subsumidos, integrados, não porque são diferentes demais, heterogêneos demais com relação ao nosso mundo da vida, mas porque são absolutamente imanente a eles, fruto de suas próprias tensões.

Num nível abstrato, Platónov levanta assim a questão de subsunção (dos outros ao proletariado) e hoje em dia enfrentamos o mesmo problema não apenas em relação a refugiados e outros imigrantes (eles podem ser subsumidos à ordem capitalista global?), mas também num nível mais formal daquilo que Balibar chama de “subsunção total” como a tendência básica do capitalismo atual.[2] Esse termo não cobre apenas o fenômeno do assim chamado “capitalismo cultural” (a crescente mercantilização da esfera cultural), mas acima de tudo a subsunção completa, de acordo com a lógica do capital, dos próprios trabalhadores e do processo de sua reprodução:

“Ao passo que Marx explicou que o ‘capital’ poderia ser em última instância reduzido ao trabalho (produtivo) ou não era outra coisa senão o trabalho numa forma diferente, apropriado por uma classe diferente, a teoria do capital humano explica que o trabalho – mais precisamente a ‘capacidade de trabalho’(Arbeits vermögen) – pode ser reduzido ao capital ou torna-se analisado em termos de operações capitalistas de crédito, investimento e rentabilidade. Isso é, naturalmente, o que está por baixo da ideologia do indivíduo como ‘autoempreendedor’ ou ‘empreendedor de si mesmo’,”[3]

Não se trata aqui “de descrever um crescimento de mercados para produtos existentes, mas sim de alargar o alcance do mercado além dos limites da “esfera de produção” no sentido tradicional, e, portanto, acrescentar novas fontes de “mais-valia extra” que podem ser integradas à valorização, superando suas limitações, porque o capital é valorizado tanto do lado ‘objetivo’ de trabalho e produção quanto do lado ‘subjetivo’ de consumo e uso.”[4]

Assim sendo, não se trata apenas de tornar a força de trabalho mais produtiva; o objetivo da subsunção total é conceber a força de trabalho propriamente dita como mais um campo de investimento capitalista: todos os aspectos de sua vida “subjetiva” (saúde, educação, vida sexual, estados psíquicos…) são considerados não apenas como importantes para a produtividade dos trabalhadores, mas também como campos de investimento que podem gerar mais-valia adicional.

Os serviços de saúde não apenas servem os interesses do capital, a fim de tornar trabalhadores mais produtivos; eles próprios são um campo de investimento inacreditavelmente poderoso, não apenas para o capital (os serviços de saúde é o único ramo mais forte da economia dos Estados Unidos, muito mais forte do que a da defesa), mas para os próprios trabalhadores que tratam a questão de pagar seguro de saúde como um investimento no seu futuro. O mesmo acontece com educação: além de preparar para o trabalho produtivo, é em si um campo de investimento lucrativo para instituições assim como para indivíduos que investem no seu futuro. É como se desse modo a mercantilização não apenas se tornasse total, mas também ficasse presa numa espécie de looping autorreferente: a própria força de trabalho como a última “fonte da riqueza (capitalista),” a origem da mais-valia, torna-se um momento do investimento capitalista. Em nenhum outro lugar esse loop é explicado mais claramente do que na ideia do trabalhador como “autoemprendedor”, um capitalista que decide livremente onde investir seus recursos excedentes (exíguos) (ou, na maioria das vezes, recursos adquiridos através de empréstimos): em educação, saúde, moradia… Esse processo tem limite? Quando, no último parágrafo de seu ensaio, Balibar aborda essa questão, estranhamente recorre a uma referência lacaniana, à lógica de não-todo de Lacan (da sua “fórmula da sexuação”):

“É isso que chamo de subsunção total (após a subsunção ‘formal’ e ‘real’) porque não deixa nada de fora (nenhuma reserva para a vida ‘natural’). Ou, qualquer coisa, que fique de fora, deve aparecer como um resíduo e um campo para futura incorporação. Ou deve? Essa é, naturalmente, toda a questão, tanto ética quanto política: há limites para comoditização? Há obstáculos internos e externos? Um lacaniano talvez queira dizer: toda totalização enquanto tal inclui um elemento de impossibilidade que pertence ao ‘real’; deve ser pas tout ou não completo. Se isso fosse o caso, os elementos heterogêneos, os resíduos intrínsecos da subsunção total, poderiam aparecer em muitas formas diferentes, algumas aparentemente individualistas tais como patologias ou resistências anárquicas, outras comuns ou inclusive públicas. Ou podem tornar-se manifestas em certas dificuldades na implementação da agenda neoliberal, como, uma vez legalizado o sistema Medicare, a dificuldade em desmantelá-lo.”[5]

O que Balibar afirma aqui é, para um lacaniano, muito estranho: Balibar condensa (ou, antes, simplesmente confunde) os dois lados das fórmulas da sexuação de Lacan e simplesmente interpreta a exceção como o não-todo: a totalidade da subsunção é o não-todo, visto que há exceções que resistem a ser subsumidas ao Capital. Mas Lacan contrapõe precisamente o não-todo à exceção: cada universalidade alicerça-se numa exceção e, quando não há exceções, o conjunto é o não-todo e não pode ser totalizado. Essa contraposição deveria ser aplicada ao tema da subsunção: deveríamos passar de busca por exceção, para aqueles que resistem à subsunção (universal) e são como tais o “lugar de resistência”, para endossamento da subsunção sem exceção e confiança em seu não-todo. A subsunção das vidas individuais, a que Balibar se refere, não pode ser reduzida a um caso particular da subsunção capitalista universal; elas permanecem um caso particular em que, por conta de sua natureza autorrelativa (a própria força de trabalho torna-se capital), redobra a produção da mais-valia.

Na crítica da economia política de Marx há dois casos principais de universalidade através da exceção: o dinheiro e a força de trabalho. O campo de commodities somente pode ser totalizado através de uma mercadoria especial que funciona como um equivalente geral de todas as mercadorias, mas que é, como tal, privada do valor de uso; o campo de troca de commodities somente fica totalizado quando produtores individuais não apenas vendem seus produtos no mercado, mas quando a força de trabalho (como mercadoria cujo valor de uso deve gerar mais-valia) também é vendida no mercado como mercadoria. Em vista disso, talvez haja um terceiro caso aqui: quando essa mercadoria, que produz mais-valia, se torna ela mesma objeto do investimento de capital produzindo mais-valia, obtemos dois tipos de mais-valia, a mais-valia “normal” gerada pelos produtos da força de trabalho, e a mais-valia gerada pela produção da própria força de trabalho.

Esse é um bom exemplo da compreensão de Hegel de como o Absoluto sempre envolve a autocisão e é, nesse sentido, o não-todo: com a produção da própria força de trabalho como campo de investimento de capital, a subsunção sob o capital torna-se total. Mas, precisamente como tal, torna-se não-toda; não pode ser totalizada. O elemento autorreferente da força de trabalho propriamente dita como investimento de capital abre uma lacuna, a qual introduz o desequilíbrio em todo o campo. Talvez essa lacuna possa funcionar como fonte de esperança, talvez abra a possibilidade de mudança radical. A lógica do capital fica ameaçada não a partir de algum resíduo externo não integrado, mas a partir de sua própria inconsistência interna que explode quando a subsunção se torna total.


[1] Aqui recorro pesadamente a Maria Chehonadskih, “Epistemologias Soviéticas e a Ontologia Materialista da Vida Pobre: Andréi Platónov, Alexánder Bogdánov e Lev Vygotsky” (manuscrito inédito do qual todas as citações sem referência foram tiradas).

[2] Etienne Balibar, “Towards a new critique of political economy: from generalized surplus-value to total subsumption,” in Capitalism: Concept, Idea, Image, Kingston: CRMEP Books 2019.

[3] Balibar, op.cit., p. 51.

4 Op.cit., p. 53.

[5] Op.cit., p. 57.

 

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