A luta de classes nos EUA segundo o “New York Times”

Por Gabriel Landi Fazzio, via PCB

A grande crise de 2008 significou um ponto de viragem no desenvolvimento mundial do capitalismo. O desenvolvimento relativamente pacífico, que remontava os anos 90 (queda da União Soviética e o auge da ofensiva econômica e ideológica neoliberal) deu lugar a um contexto de choques cada vez maiores entre as classes sociais e as próprias burguesias imperialistas. É evidente que cada país tem adentrado este novo estágio da luta de classes em ritmos e de formas distintas. E, no geral, os países dependentes são aqueles em que essas mudanças se verificam de maneira mais nítida e catastrófica, no atual estágio.

Ainda assim, não deixa de ser animador observar o desenvolvimento pelo qual tem passado a classe trabalhadora dos “Estados Unidos da América” do Norte, desde 2008. O acirramento da luta de classes nos EUA confirma os prognósticos críticos ao Ocuppy Wall Street: prognósticos que souberam ler naquele movimento o início de uma guinada da política estadunidense para além da política de cúpula, tendente à crescente participação e luta de massas, mas um protesto ainda encoberto de muitas ilusões e sem distinções nítidas dos interesses das diversas classes envolvidas.

Desde então, contudo, vislumbramos o aumento do número de greves, principalmente das categorias com as piores remunerações, e o nascimento de um movimento de massas de combate ao racismo nos EUA. Nas eleições passadas, despontaram no cenário eleitoral o pré-candidato socialista-democrático Bernie Sanders e o reacionário-populista Donald Trump, oferecendo mais um indício da crescente polarização ideológica na base da sociedade anglo-americana.

A vitória de Donald Trump teve como efeito, em meio à onda de oposição popular mais ou menos liberal-democrática, oferecer um fôlego ao movimento socialista estadunidense, que há muitos anos não aparecia com tamanho vigor e expressividade.

Por ocasião do “Dia do Trabalho” de 2018 (que, nos EUA, é um feriado nacional não no 1º de Maio, mas na primeira segunda-feira de setembro!), o New York Times publicou dois artigos bastante interessantes, que permitem ter uma boa compreensão do atual estágio das lutas de classes nos EUA. Steven Greenhouse, “repórter trabalhista” dos NYT por 19 anos, oferece em seu artigo uma boa amostra dos efeitos concretos do governo Trump para a classe trabalhadora:

“Donald Trump se promove como sendo um amigo dos trabalhadores ‘esquecidos’, mas de inúmeras formas seu governo têm minado aqueles quem têm sido tradicionalmente os maiores defensores dos trabalhadores: os sindicatos.

Recentemente, ele se valeu de sua autoridade como presidente para enviar uma mensagem dura de ‘Dia do Trabalho’ para 2,1 milhões de pessoas que trabalham para ele, cancelando aumentos salariais para os funcionários civis do governo federal. Em maio, ele emitiu três ordens executivas a fim de enfraquecer os sindicatos dos funcionários federais, limitando, entre outras coisas, os assuntos sobre os quais eles poderiam negociar. (Em 25 de agosto, um juiz determinou que essa medida violava a lei federal.) Em março de 2017, Trump assinou uma lei que revogava a ordem executiva do presidente Obama, que procurava impedir o governo federal de conceder contratos públicos a empresas que violem leis de proteção do direito dos trabalhadores de sindicalizar, bem como as leis de salário e segurança do trabalho.

Desde que assumiu o cargo, Trump instalou uma maioria conservadora no ‘National Labor Relations Board’ [Conselho Nacional de Relações Laborais], que agiu rapidamente para dificultar a organização de sindicatos. Em dezembro passado, o conselho anulou uma regra, apreciada pelos sindicatos, que facilitava a organização de contingentes menores de trabalhadores em grandes fábricas e lojas. Em outra decisão do conselho, tornou-se mais difícil a sindicalização dos trabalhadores de restaurantes de fast-food e de outras operações de franquias, embora essa decisão estabelecendo um ‘empregador conjunto’ tenha sido anulada mais tarde, quando um membro do conselho se declarou impedido devido a um conflito de interesses. O conselho também está tentando retardar ainda mais o já demorado processo eleitoral para constituição de sindicatos, uma medida à qual os sindicatos se opõem, já que daria às corporações mais tempo para pressionar os trabalhadores a votarem contra a criação do sindicato.

O primeiro indicado de Trump ao Supremo Tribunal, Neil Gorsuch, foi o voto decisivo em um caso que resultou no maior golpe para os trabalhadores em 2018. Em Janus v. AFSCME, a maioria conservadora do tribunal, com 5 votos a 4, decidiu em junho que os empregados do governo não podem ser obrigados a pagar quaisquer taxas associativas aos sindicatos que negociam por eles. Ao permitir que muitos funcionários do governo se tornem ‘negociadores livres’, espera-se que a decisão corte as receitas de muitos sindicatos de funcionários públicos em proporção de cerca de um décimo a um terço.

Com os sindicatos do setor privado bastante enfraquecidos pela paralisação das fábricas [desaceleração e ‘exportação’ da atividade industrial] e pela resistência corporativa aos sindicatos, os sindicatos dos funcionários públicos tornaram-se a parte mais poderosa do movimento operário. Essa é uma das razões pelas quais os bilionários e fundações anti-sindicatos subscreveram o litígio da Janus: para criar obstáculos à parte mais forte da classe trabalhadora. Os irmãos Koch e outros bilionários aproveitaram Janus para financiar esforços, através de e-mails e campanhas de porta em porta, para estimular os funcionários do governo – professores, policiais, bombeiros, assistentes sociais e muitos outros – a deixar seus sindicatos e parar de pagar as taxas sindicais.

[…] Os sindicatos podem receber algum impulso graças aos esforços de Trump em aumentar a produção [nacional] de carvão, aço e alumínio, e de seu esforço para renegociar o Nafta e estimular a produção nacional de automóveis. A administração Trump e muitos sindicatos esperam que esses movimentos tragam de volta dezenas de milhares de empregos em mineração e manufatura. Isso poderia engrossar as fileiras dos sindicatos, mas dificilmente essa adesão aumentada superarias as perdas de arrecadação dos sindicatos resultantes da decisão do caso Janus. Alguns especialistas estimam que mais de um milhão de trabalhadores deixarão seus sindicatos nos próximos anos, como resultado dessa decisão.

Mas há boas notícias para o movimento sindical. Uma nova pesquisa da Gallup descobriu que a aprovação pública dos sindicatos atingiu seu nível mais alto em 15 anos. Os sindicatos obtiveram algumas conquistas significativas recentemente, especialmente entre trabalhadores ‘de colarinho branco’: professores adjuntos de muitas universidades constituíram sindicatos, assim como os jornalistas do Los Angeles Times, do The Chicago Tribune, do The New Yorker, do HuffPost e do Slate, e assistentes de ensino de pós-graduação em Harvard, Columbia, Brandeis e outras universidades. Também houve aumentos de sindicalização entre enfermeiros e motoristas de ônibus, bem como trabalhadores do setor de serviços no Vale do Silício.

O movimento trabalhista nos Estados Unidos já é muito mais fraco do que em qualquer outro grande país industrializado. Apenas um em cada 10 trabalhadores americanos pertence a um sindicato, abaixo do índice mais de um em cada três nos anos 50. Mas em face de décadas de feroz resistência patronal, agravada pela hostilidade do governo Trump, os sindicatos não estão obtendo os ganhos de que precisam para reverter seu declínio. Se os sindicatos americanos não se recuperarem, isso provavelmente significará ainda mais desigualdade de renda e estagnação salarial e ainda mais controle sobre as alavancas do poder por corporações e doadores ricos.”

Ainda que o autor trace um panorama importante dos desafios que se impõem ao movimento operário, sob o governo Trump, é evidente sua perspectiva puramente sindical, sem qualquer traço de socialismo ou classismo revolucionário. O autor está certo em ver com preocupação os ataques aos orçamentos sindicais – mas essa tendência negativa parece atrair sua atenção mais do que a tendência positiva que ele mesmo aponta: o aumento na mobilização sindical das massas proletárias, e mesmo na radicalidade dessas mobilizações. Só dessa perspectiva burocrática é possível compreender o comentário do autor que, ao trata do possível engrossamento das fileiras dos sindicatos, se lamenta que esse aumento não cobrirá as perdas na arrecadação! Também o jornalista expõe toda sua confusão em matéria de política proletária, quando define professores, assistentes universitários e jornalistas como “trabalhadores de colarinho branco”.

Por sua vez, o artigo de Sarah Jaffe permite um panorama muito mais preciso do estado da mobilização dessas bases sindicais:

“No ano passado, o movimento sindical americano foi dominado por duas questões. Primeiro, a decisão do caso Janus, em que a Suprema Corte determinou que os trabalhadores do setor público cobertos por contratos sindicais não precisavam mais pagar os custos de sua representação. E segundo, o movimento ‘Red for Ed’ [Vermelho pela Educação], a onda de greves de professores, principalmente em estados conservadores com poucas proteções sindicais.

As revoltas dos professores, desde a Virgínia Ocidental alcançando todo o país, produziram semanas de notícias de primeira página e, sem dúvida, estão ajudando a alimentar as greves que já acontecem ou estão pendentes neste outono: milhares de professores do estado de Washington estão nos piquetes e os professores de Seattle e Los Angeles votaram a favor de indicativos de greve.

Essa crescente militância trabalhista têm suas raízes nos esforços lentos e duros feitos, nos últimos anos, por camadas dos trabalhadores que são constantemente atacadas por ambos os principais partidos políticos e até mesmo menosprezadas por grande parte do próprio movimento sindical organizado. Os trabalhadores estão se esforçando ao longo de semanas, meses e anos para construir novos sindicatos, fortalecer e reivindicar os moribundos, e até começar mesmo desbravar o muro das novas leis contra as contribuições sindicais compulsórias, aprovadas desde 2012. Seu trabalho significou um ligeiro aumento no número de membros de sindicatos, e um aumento na aprovação pública dos sindicatos – sugerindo que quanto mais os americanos vêm os sindicatos lutarem, em greve, pelo que eles acreditam, mais queremos nos unir a eles.

No Missouri, um movimento obteve a convocação de um plebiscito estadual sobre a lei contra a contribuição sindical compulsória. Não só os eleitores derrubaram a lei esmagadoramente, mas o referendo atraiu mais votos do que os elencados nas primárias do partido, que ocorrem no mesmo dia. Os sindicatos do Missouri e organizações trabalhistas como ‘Trabalhos com Justiça’ lideraram a luta, mas em um estado onde apenas cerca de 9% da força de trabalho é representada por um sindicato, a classe trabalhadora teve que mobilizar muitos trabalhadores não-sindicalizados para rejeitar esta lei. A coalizão dependia fortemente dos eleitores negros e latinos, quase certamente se beneficiando das forças emergidas da revolta de 2014 em Ferguson.

É cedo demais para dizer se a votação no Missouri é um ponto de virada para o movimento dos trabalhadores. Mas talvez seja hora de relembrar os protestos dos trabalhadores em 2011, em Wisconsin, como tal. Apesar da onda de ataques aos sindicatos públicos e privados, um estado após o outro, ter seguido na toada da ‘bem-sucedida’ lei antissindical do governador Scott Walker [o Ato Número 10], os sindicatos de Wisconsin já começaram a mostrar seu poder novamente. Os protestos do ‘Red for Ed’ lembraram o Capitólio ocupado de Wisconsin, no inverno de 2011, e se o setor público de Wisconsin tem sido o parâmetro para o movimento operário sob a vigência do julgamento do caso Janus, há motivos para otimismo, mas também para um indicativo do quão duro será nosso trabalho daqui em diante.

Amy Mizialko, presidente da Associação de Professores de Milwaukee, disse que o sindicato teve que vencer as lutas – apesar de ser legalmente impedido de barganhar qualquer outra coisa além de aumentos de custo de vida – organizando-se ao lado dos pais e mães, e conquistando a comunidade para seu lado através de bandeiras como a defesa de turmas menores e até mesmo de mais recesso para os alunos.

‘Mesmo que o Ato Número 10, tenha sido sentido e, de muitas maneiras, tenha inclusive sido um enceramento”, disse Mizialko, “é um capítulo do livro, e há muitos outros capítulos que vêm depois dele. Isso é o que os membros vêm dizendo e sentindo há sete anos e meio – estamos escrevendo o capítulo de sobrevivência, de luta ou morte, mas não estamos interessados apenas em sobreviver. Nós queremos tudo de volta.’

Barbara Madeloni, ex-presidente da Associação de Professores de Massachusetts, e que agora trabalha para o ‘Labor Notes’, um projeto de mídia e organização para ativistas sindicais, disse que a organização de professores sob regimes legais hostis inspirou a organização em vários setores: ‘Os trabalhadores estão mostrando uns aos outros como obter e fazer uso do seu poder – e espero ver mais greves e lutas dos trabalhadores quando eles ensinam uns aos outros.’

Esses trabalhadores estão mudando a forma como os líderes sindicais pensam sobre poder político. ‘É um verdadeiro desafio para os líderes sindicais reconhecer que nossa força está no povo trabalhador – em nos recursamos a trabalhar – e não nas casas legislativas e governo’, disse Madeloni.”

É um relato verdadeiramente animador. De fato, o movimento dos trabalhadores da educação tem alcançado nos EUA uma envergadura cada vez maior. Mas também emergiram fortes lutas, no último período, entre os trabalhadores das redes de fast food; trabalhadores do transporte de mercadorias; trabalhadores da tecnologia da informação; taxistas assalariados; enfermeiras; além das camadas mais tradicionais do proletariado, como os operários metalúrgicos, e muitas outras frações do proletariado!

O mais notável, nesse aspecto, além dos avanços organizativos nas lutas econômicas, é o impacto ideológico dessa luta: no caso do Missouri, é bastante emblemático que a votação pró-trabalhadores no plebiscito tenha superado o número de eleitores das prévias Democratas e Republicanas. Também a disposição em ir além das revindicações econômicas defensivas é um tremendo passo em frente – em especial se levarmos em conta o predomínio do liberalismo sindical, do burocratismo legalista, que segue dominante nas entidades sindicais nos EUA (esse sindicalismo que vê um desafio gigantesco em reconhecer sua verdadeira força na greve de massas; e que por décadas se habituou a atuar principalmente através das negociações e conciliações com os políticos e empresários, a despeito da mobilização de massas).

A classe trabalhadora estadunidense está aprendendo as importantes lições de sua independência, condição essencial para que desenvolva até o fim a sua força. “Se os liberais dizem aos operários: ‘sois fortes quando a sociedade simpatiza convosco’, o marxista diz aos operários uma coisa diferente: ‘a sociedade simpatiza convosco quando sois fortes’”. Não é precisamente a comprovação deste postulado leninista que a autora do artigo deixa escapar?

Com os duros ataques da Trump à antiga legislação sindical, cada vez mais a classe operária é encurralada entre a derrota e a revolta, sendo forçada a passar por cima das barreiras legais à luta de classes, ou perecer. Talvez receando falar claramente em uma radicalização, é isso que a autora permite escapar quando afirma que as lutas do movimento proletário se assemelham cada vez mais às lutas do inverno de 2011, em Wisconsin, contra o “Ato Número 10” – medida que eliminava a possibilidade de acordos coletivos no setor público e autorizava ao governador a declarar estado de emergência como resposta a tais greves, inclusive autorizando expressamente o uso do poder de fogo contra os grevistas. Naquele ano, a capital do estado, Madison – uma cidade com pouco mais de 255 mil habitantes – foi tomada por protestos de massas, que envolveram ao menos 100 mil pessoas em solidariedade à greve dos professores, e culminaram na ocupação do parlamento estadual por 17 dias, em meio a uma intensa agitação em favor de uma greve geral.

Temos bastante acordo com a Sra. Jeffe: essa é precisamente a tendência futura das lutas proletárias nos EUA. Quanto a isso, apenas temos motivos para otimismo: parece que finalmente a classe trabalhadora estadunidense está despertando de sua longa letargia política, e, ainda sem direção, buscando os caminhos de sua emancipação. Esperamos que o movimento revolucionário socialista encontre, mais cedo do que tarde, o seu caminho em direção à mais firme união com o movimento das massas proletárias!

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1 comentário em “A luta de classes nos EUA segundo o “New York Times””

  1. Muitos setores importantes estão se sindicalizando. O papel do setor de tecnologia da informação para o capital financeiro é muito importante, e isso expressa no valor que essas empresas detém nas bolsas e no preço de suas ações. Ter trabalhadores sindicalizados nesse setor é fundamental. Com a expansão dos sindicatos nos trabalhos do setor que está crescendo advindo do protecionismo de Trump, também traz um componente fundamental para a luta de classes nos EUA. Porém, e aqui está uma pergunta, como tá os trabalhadores do complexo industrial-militar ? Levando em consideração que ele abarca todo os EUA pela sua ramificação de atividades nas cadeias globais de produção, a mais poderosa fração da burguesia americana precisa ser destruída e isso demanda um nível de organização absurda da classe e uma estratégia muito bem arquetada, porém, é um setor que emprega muita gente e só existe por conta dos massacres operados pelos EUA mundo afora. Como está essa luta ? Existe alguma politização sobre o papel desse setor e o papel do imperialismo americano de uma forma crítica ao imperialismo no seio do proletariado americano ? Existe algo na luta sindicalista americana, ou algum indício de que ela está tomando uma posição antiimperialista, ou só nos resta prestar atenção e esperar ?

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