Por Matheus Cosmo
“Assim como as pessoas sabem ou sentem que os anúncios e as plataformas políticas não têm de ser necessariamente verdadeiros ou certos e, não obstante, os ouvem e leem e até se deixam orientar por eles, assim também aceitam os valores tradicionais tornando-os parte de seu equipamento mental.”
Herbert Marcuse
Certa vez, durante uma palestra, Paulo Arantes foi colocado diante de uma grande, difícil e instigante questão: afinal, parte dos efeitos da atual e incessante crise política poderia ser associada a um anunciado e imprevisto fim do capitalismo? Depois de relembrar algumas das falas e declarações de um filósofo italiano, sua resposta traduziu-se em uma clara reação afirmativa. A precisão do diagnóstico parecia encantadora a muitos dos ouvidos de esquerda que, atenciosamente, colhiam informações de toda a apresentação. Todavia, a sequência do raciocínio chegava aos pontos centrais da questão: o fim de um sistema e de todo um projeto civilizatório, que talvez estejamos agora a contemplar, não decorre de uma derrota levada a cabo por setores minoritários da sociedade; ao contrário, se verdadeiramente se aproxima o momento de declínio e término do capitalismo, este ciclo que se encerra encontra suas bases nos limites do próprio sistema. Em outras palavras, por não haver qualquer alternativa no horizonte social, a exata transfiguração da grande utopia de Margaret Thatcher, o capitalismo estaria se aproximando de seu colapso por uma incapacidade de se reinventar. O dilema é que, sem a possibilidade concreta de um preciso encaminhamento às questões políticas e econômicas, o capitalismo parece sair de cena sem deixar rastros de qual será o improvável futuro a que estaremos todos lançados. Disso nasceria nossa profunda sensação de fracasso e imprevisibilidade, sempre exacerbada pelos ares de uma crise que nunca termina e que hoje parece funcionar como o exato motor de toda a engrenagem social. Embora a análise seja em tudo plausível, talvez seja importante destacar: pode ser que Paulo tenha subestimado um pouco as estruturas sociais e os próprios sujeitos correspondentes a elas.
Em 1988, chegava às telas de cinema um filme dirigido por John Carpenter, intitulado They live. Uma rápida investigação por alguns registros revela que a obra logo foi considerada uma espécie de “American satirical science fiction horror film” – uma expressão cujo significado cabe ao leitor desvendar. Contudo, um movimento peculiar parece implícito à necessidade de tamanha classificação: a incorporação de todos os traços da obra aos esquemas e ditames da indústria cultural e o apagamento dos rastros da forte crítica enunciada pelo conjunto das cenas. Antes de tudo, antes mesmo de ser uma sátira, uma ficção científica ou um filme de terror, They live elabora o grande diagnóstico de uma época. Em outras palavras, o terror que emerge de suas cenas, tal como visto e mensurado pelos olhos da crítica, apenas traduz e incorpora o terror da sociedade a que pertence, das configurações do então tempo presente – enfim, de uma sociedade administrada.
Para o desencanto de alguns, é preciso lembrar que o movimento sempre acontece em duas direções: uma obra não poderá ser caracterizada a partir de determinados preceitos se, em seu âmago, não residir a possibilidade de tamanha caracterização. De algum modo, existe uma obscura cumplicidade entre crítica e obra, sem a qual a primeira apenas regenera em sons vazios. De modo apressado, isso significa dizer que o próprio filme de Carpenter, a obra em si, permitiu sua classificação em paradigmas indesejados. É certo que há um grande interesse da crítica em desvalorizar aquela que seria a grande potência das cenas (não sem motivo, hoje o filme é logo classificado como um expoente da indústria cultural, fadado ao mesmo esquecimento que alcança todos seus demais produtos). Contudo, isso não tira de cena o fato de que as falhas discursivas do próprio filme, seus problemas internos, foram também responsáveis por inviabilizar as artimanhas políticas de seu conteúdo – e, uma vez que as falhas e problemas das obras apontam para os equivalentes problemas históricos, políticos e sociais, vale deter-se sobre eles.
Qualquer análise não poderia deixar de observar no próprio título da obra um peculiar ponto de partida: afinal, quem são eles, os que ainda vivem? Em outros termos, talvez mais concretos, quem são aqueles que ainda têm direito à vida? A indeterminação do sujeito da sentença é um constituinte fundamental para o ganho de possibilidades de sentido. Contudo, tamanha irresolução também acaba por acarretar um enfraquecimento na real descrição dos processos de luta social, que não são indeterminados mas extremamente objetivos. A dupla resposta que pode ser formulada como meio de preencher aquele vago significante traduz distintos enfoques, modos e possibilidades de lidar com a própria obra em questão. No entanto, qualquer preenchimento só será possível se levar em consideração as revelações feitas a partir de uns dos principais instrumentos de todo o enredo do filme: os óculos.
Em linhas gerais, buscando uma breve caracterização dos interstícios da obra, seria possível dizer que o mecanismo disparador de todo o enredo reside na conquista de um grupo de resistentes que, enfim, consegue criar uma simples ferramenta, por meio da qual é possível que todas as coisas sejam vistas tais como são – ou seja, os óculos (o famigerado instrumento criado) permitem ver os nervos da própria realidade socio-histórica e permitem assimilar o conteúdo implícito às ideologias dominantes. A ingenuidade do dispositivo (e do próprio enredo, por conseguinte) parece desviar a obra daquele que seria seu maior impasse: como possibilitar aos sujeitos que eles vejam, com seus próprios olhos, as linhas de força operantes no tempo presente? Como possibilitar que os próprios sujeitos exerçam a possibilidade imediata da visão, quiçá sua necessária emancipação? De um modo simples, talvez infantil, os óculos tentam elaborar uma resposta às perguntas. Entretanto, é preciso reconhecer: não são os próprios sujeitos que enxergam a realidade, mas um mecanismo parece impor a verdade às suas consciências. A duvidosa possibilidade de emancipação parece ser o passo seguinte de uma escada cujo primeiro degrau reside no esclarecimento. Se esta equação for verdadeira, o filme parece ter acertado em seu o quê, embora ainda seja bastante frágil em sua elaboração do como.
Talvez o filme tenha sido classificado dentro dos moldes de algo esperado como terror por conta da representação de um determinado grupo de pessoas, recentemente interpretado por Heribaldo Maia como verdadeiros aliens, em texto publicado há algumas semanas nesta mesma plataforma digital. Embora desperte o interesse e seja tentador classificar aquele seleto grupo de criaturas a partir do paradigma de classe, tal grupo não parece ser passível de descrição por meio dessa ferramenta de análise e luta social. Outro é o meio que parece se encontrar em jogo: o interesse. Certamente, disso emerge uma inescapável vontade de averiguar as origens daquilo que os sujeitos consideram como seu desejo, enunciando-o, consequentemente, com ares de uma suposta necessidade, plenamente falsa em seu fundamento. Contudo, a própria obra parece escapar dessa seara, deslocando a atenção de seus espectadores a outro ponto, potencialmente preenchido por dois verbos centrais: fazer e crer. Alguém poderia se perguntar onde se encontra o ser neste esquema, um verbo cujo sentido revela-se igualmente fundamental. A resposta seria: no fazer. Em outros termos, o reconhecimento que aqui se encontra em jogo é aquele no qual o ser é sempre uma questão de tornar-se, de modo que é sempre a ação que revela e produz os sujeitos. Às análises e interpretações, assim, cabe o espaço que existe entre a ação desenvolvida, marca da existência do sujeito, e a crença depositada na própria ação executada. O espaço intervalar entre os dois âmbitos não seria aquele, por excelência, destinado à ideologia?
Voltando ao interesse e ao terror (um bom exercício de sinonímia a ser averiguado?), certo grupo de pessoas é representado de modo grotesco, praticamente inumano. A despeito de uma provável equivalência entre subjetividades e instituições, regidas pela constante e interminável burocracia, cujo exercício apenas inviabiliza a efetividade das práticas políticas, se retomados os verbos descritos anteriormente, mais do que o fazer é o crer que, aqui, se encontra em foco. A caracterização grotesca parece ser reservada àqueles que, mergulhados nos interesses dominantes, próprios ao capitalismo e sua entidade maior, o mercado, acreditam naquilo que professam – ou, em outras palavras, aqueles que internalizaram os mesmos interesses que regem o âmbito exterior, ao qual corresponde sua subjetividade[1]. Poder-se-ia dizer que, retomando, com as devidas alterações, uma conhecida declaração de Marx, eles sabem bem o que fazem e ainda acreditam naquilo que executam. (Há quem diga que esta é a causa da dificuldade em lidar com grande parte das alterações nas configurações subjetivas. Porque aquilo que as pessoas defendem não existe para elas como um simples conjunto de meras opiniões, mas como uma forma de verdade – o que implica dizer que, por vezes, aquilo que se comporta como mentira manifesta também pode transfigurar-se na mais sincera verdade subjetiva.) Por outro lado, mesmo que imersos em determinadas estruturas, nota-se que há sujeitos que ainda não se transformaram naquelas grotescas figuras – a precipitação formal daquilo que Žižek traduziu como sendo um novo modo de enunciar a conhecida fórmula de Marx: aqueles que sabem o que fazem e fazem mesmo assim – o que não significa, contudo, que acreditem naquilo que exercem ou que se impliquem por completo em suas atividades. Nasce, então, o cinismo; aquilo que Peter Sloterdijk logo classificou como uma razão cínica, uma falsa consciência esclarecida. Todavia, uma das maiores contribuições oferecidas pelo filme parece ser aquela que aponta para a existência de uma peculiar dimensão: enquanto for o cinismo a sensação primordial desses sujeitos, ainda estará em latência sua possibilidade de emancipação. Na medida em que a ação abdica de uma completa implicação, daquilo que diz respeito ao âmbito do crer, ela apenas revela que ainda há subjetividades não colonizadas pelo discurso hegemônico. Um policial pode erguer uma arma a um cidadão sem que acredite que aquela é a ação necessária àquele momento. O porquê de sua ação, por sua vez, traduz-se na fala de uma das personagens do enredo: “Eu tenho um emprego agora. Ninguém me aborrece!” – sentenças equivalentes a “Eu tenho mulher e filhos. Então, me deixe em paz!”. Em outras palavras, isso significa reconhecer que, em grande parte dos casos, pessoas se submetem a empregos inteiramente pautados na exploração de sua força de trabalho, dirigindo-as a uma morte cotidiana, apenas para fugirem de outra morte: permite-se certa exploração para que não se morra de fome e frio. Pensar em alternativas à economia é uma das mais urgentes tarefas da esquerda neste estágio avançado do capitalismo, sem que seja possível esquecer que, por ser um sistema inteiramente pautado em eixos econômicos, qualquer mudança nesses termos será logo traduzida como uma intensa crise mundial, a qual não há motivo para temer.
Afinal, voltamos à pergunta: quem ocupa o sujeito de ‘eles vivem’? Aqueles cujos interesses correspondem aos interesses do mercado, ou aqueles que se encontram imersos em um sistema no qual não acreditam plenamente? A resolução desse impasse também permitiria desvendar o sujeito do enigma a seguir, enunciado por uma das personagens ao longo da trama: “Criaram uma sociedade repressiva e nós somos seus cúmplices inconscientes”. Era 1968 quando, na conferência inaugural do 16º Congresso dos Sociólogos Alemães, Adorno reconhecia que os sujeitos são os objetos de um processo social que eles apenas conseguem manter em vigência agindo como sujeitos. Isso significa que as pessoas que criaram a sociedade repressiva são as mesmas que agem como seus cúmplices? Afinal, o sujeito é o mesmo em ambos os casos? Talvez a melhor forma de responder esta questão seja recuperando alguma perspicácia dialética, presente no próprio exercício do real: o sujeito é e não é o mesmo em ambos os casos. Todavia, é exatamente quando colocado frente a esses dilemas que o filme comete o maior de seus erros.
Já perto dos minutos finais da obra, duas das personagens centrais conseguem entrar na base de funcionamento de todo o sistema, no lugar onde residem aquelas grotescas figuras. Guiados por um antigo patrão, elas se deparam com uma base de comando que, aparentemente, leva as pessoas de um planeta a outro. Apontando para algum lugar distante do universo, diz-se: “Eles [as criaturas] vêm de lá”. Este é o momento no qual o próprio filme permite que sua potência crítica seja convertida em mera ficção científica. O filme erra ao deslocar seus conflitos centrais para um lugar localizado em um indeterminado e inespecífico fora, perdendo a oportunidade de localizar as contradições no âmago da própria estrutura social – uma atitude que seria esperada no exercício de um fundamental e necessário pensamento dialético. Contudo, é também em seu erro mais primário que o filme acerta em cheio. A incapacidade de elaboração de um movimento imanente é a tradução artística de uma sociedade marcada por uma paralisia da crítica – uma sociedade na qual, seguindo as palavras de Roberto Schwarz, o espírito crítico foi posto para dormir, na impossibilidade de barrar o processo de avanço do capitalismo, mascarado pela ideia de globalização. Sem a possibilidade de elaboração de uma crítica convincente, restou apenas a constante necessidade de adaptação ao existente, cujas normas são reafirmadas e reiteradas em cada programa televisivo ou em cada propaganda de um desnecessário produto de consumo. Não sem motivo, minutos antes de sua morte, as últimas palavras ouvidas por George, protagonista de todo o enredo, são: “Não interfira. Você não pode vencer. Venha para dentro comigo” – algo que encontra reverberação em algumas falas anteriores, em especial aquelas enunciadas por seu antigo patrão: “É negócio. É só isso: é só negócio. Hoje é tudo deles. Eles podem fazer o que quiserem. Qual o problema? A gente se vende todo dia. É melhor passar para o time que está ganhando”.
De fato, a contenção de toda e qualquer possibilidade de transformação parece ser um dos grandes feitos do desenvolvimento do capitalismo. Diz-se até que, se nos anos 60 era fácil imaginar ou, ao menos, vislumbrar o fim de tal sistema, hoje parece mais simples imaginar o fim do mundo. Todavia, fica claro que o herói cinematográfico, embora morto no quadro final, conseguiu cumprir sua tarefa primordial: rasgar o véu que encobria a realidade e revelar as fissuras do processo de manipulação social. Este é o último dos blocos e quadros do filme. A última imagem, por sua vez, é a mais significativa: uma mulher está em meio a um ato sexual com um ser que agora se revela como monstruoso. Da televisão, ouve-se: “Você terá o controle. Nada o impedirá agora”. Vendo a figura em sua frente, a mulher se paralisa. Seu parceiro apenas indaga: “O que houve?”. As luzes se apagam. Seu apagamento apenas figura uma resposta que ainda não foi elaborada. Porque o reconhecimento da falsidade das estruturas não é equivalente à possibilidade e desejo de sua transformação. Há um intervalo entre o esclarecimento e a organização coletiva, um espaço que deve ser preenchido por meio do exercício político, de uma práxis cotidiana de luta – exatamente aquela que grande parte dos contemporâneos se recusa a assumir quando opta pela eleição direta de candidatos não-políticos já em primeiro turno. Nesse sentido, ao que parece, uma possível resposta ao comentário de Heribaldo, que tende a ver no conjunto das cenas um convite para a luta revolucionária, seria: imersa em tamanha zona de indeterminação, tal obra tende a ser revolucionária apenas para aqueles que assim quiserem que ela seja.
Por volta da década de 1980, Paulo Arantes chegava a uma provocativa conclusão, em um estudo sobre a ausência de lugares a serem ocupados pelos intelectuais no conjunto da sociedade brasileira: o modo como as forças e lutas sociais se desenvolveram apenas gerou uma complicada equação, na qual aqueles que sabem já não podem mais agir e aqueles que agem já não podem mais saber – o exato diagnóstico de uma cegueira e paralisia históricas. Contudo, na contramão dessas circunstâncias, um dos últimos textos publicados de Adorno, a sequência de fragmentos intitulada “Messages in a bottle”, terminava com a seguinte certeza: “As massas já não desconfiam dos intelectuais por eles traírem a revolução, mas porque eles talvez a queiram; com isso, revelam quão grande é sua própria necessidade de intelectuais”. Em algumas linhas anteriores, naquele mesmo texto, era ainda Adorno quem reconhecia que não há possibilidade de uma consciência proletária de classe nas atuais configurações históricas e geopolíticas, exatamente porque os atuais proletários sequer são capazes de se reconhecer como tais, mesmo em um mundo marcado por uma desenfreada proletarização de todas as esferas. Diante disso, já não parece ser possível escapar daquilo que se encontra circunscrito por duas diferentes declarações. A primeira delas, de Herbert Marcuse:
“o que aconteceu com o sujeito da revolução? Se, de fato, a integração do trabalhador progride nos países industriais altamente desenvolvidos, teremos ainda o direito de considerar a classe trabalhadora como o sujeito histórico da revolução? […] Por que a derrubada da ordem vigente deveria ser uma necessidade vital para aqueles que possuem ou podem esperar por uma casa própria, automóvel, aparelho de televisão, roupas e alimentos suficientes?“[2]
A segunda, de Terry Eagleton:
“O fato de as pessoas não combaterem ativamente um regime político que as oprime talvez não signifique que tenham absorvido mansamente seus valores governantes. Pode ser que, após um árduo dia de trabalho, estejam exaustas demais e não tenham energia de sobra para envolver-se em atividades políticas, ou que sejam tão fatalistas ou apáticas que não percebam o sentido de tais atividades. Talvez tenham medo das consequências de opor-se ao regime; ou pode ser que desperdicem muito tempo preocupando-se com seus trabalhos, hipotecas e restituições de imposto de renda para pensar sobre isso. As classes dominantes têm à sua disposição inúmeras dessas técnicas de controle social “negativo”, que são bastante mais prosaicas e materiais do que convencer seus sujeitos de que pertencem a uma raça superior ou exortá-los a identificar-se com o destino da nação.“[3]
Talvez, menos importante do que um resgate de supostas e esquecidas potências políticas seja a averiguação cuidadosa da genealogia de nosso ideal mesmo de política. A revisão de paradigmas e preceitos fundamentais, como as ideias de democracia e liberdade, por exemplo, mostra-se fundamental para se pensar em possibilidades de superação do capitalismo. Todavia, como Rosa Luxemburgo alertou, em sua análise sobre os episódios de outubro de 1917, não há qualquer possibilidade de alteração objetiva se não se modificarem, também, as configurações subjetivas, que são as que, parcialmente, mantêm a objetividade em funcionamento. No limite, em diálogo com a afirmação primeira de Paulo Arantes, isso significa que o capitalismo pode até apresentar alguns sinais de esgotamento neste início de século, mas isso certamente não significa nem traduz seu improvável término; ao contrário, o descaso dos sujeitos frente à própria atividade política pode resultar na elevação do grau de dificuldade à imaginação de alternativas ao presente sistema. Parece pouco provável que uma engrenagem de tamanha envergadura destrua-se sozinha. A resistência se constrói nas ruas, entre a escassez e a abundância de óculos escuros.
They live termina exatamente no ponto em que anuncia um possível começo. Todavia, o próprio esquecimento a que foi lançado o filme apenas corrobora um dado crucial: nenhum movimento ou teoria crítica é capaz de se fortalecer se não tiver, em seu âmago, um projeto de elaboração do futuro pelo qual valha a pena lutar. Desmascarar os eixos do tempo presente, sem revelar as minúcias e projetos de um desejável futuro, cuja elaboração é tarefa imediata dos contemporâneos, resulta apenas em uma atividade cega, pautada por uma luta vazia. Estaria o século XXI condenado a uma série de revoltas surdas que, repentinamente, se tornaram a norma dos protestos e mobilizações? A surdez das revoltas não consegue mensurar a obscura qualidade de seus próprios barulhos. De algum modo, cabe às lutas do presente a busca por um outro nome e por novas formas para dizer a própria vida, um esforço sem o qual arcaicos modelos tendem a uma infinita repetição. Por ora, eles vivem – ou, se tivermos sorte, apenas sobrevivem.
[1] Nesse sentido, são significativas as palavras registradas por Adorno em uma de suas póstumas publicações: “Impotente numa sociedade esmagadora, o indivíduo só vivencia a si mesmo enquanto socialmente mediado. Assim, as instituições criadas pelas pessoas são ainda mais fetichizadas: desde o momento em que os sujeitos passaram a se conhecer somente como intérpretes das instituições, estas adquiriram o aspecto de algo divinamente ordenado. O sujeito sente-se até a medula – certa vez, ouvi um patife usar publicamente essa expressão sem despertar risos – mulher de médico, membro de um corpo docente ou presidente da comissão de especialistas religiosos, do mesmo modo que, em outras épocas, alguém podia sentir-se parte de uma família ou de uma tribo. Ele volta a se tornar, na consciência, aquilo que era em seu ser, de qualquer maneira. Comparada com a ilusão da personalidade autônoma, que teria uma existência independente na sociedade da mercadoria, essa consciência é a verdade. O sujeito realmente não é nada além de mulher de médico, membro do corpo docente ou especialista em religião. Mas a verdade negativa transforma-se numa mentira como positividade. Quanto menos sentido funcional tem a divisão social do trabalho, mais obstinadamente os sujeitos se agarram àquilo que a fatalidade social lhes infligiu. A alienação transforma-se em intimidade, a desumanização, em humanidade, e a extinção do sujeito, em sua confirmação. A socialização dos seres humanos, hoje em dia, perpetua sua associalidade, ao mesmo tempo que não permite ao desajustado social nem sequer orgulhar-se de ser humano.” O texto, intitulado “Messages in a bottle”, foi publicado em 1993 na New Left Review. Uma tradução, feita por Vera Ribeiro, encontra-se disponível no livro Um mapa da ideologia, organizado por Slavoj Žižek, publicado pela Editora Contraponto.
[2] MARCUSE, Herbert. “Perspectivas do socialismo na sociedade industrial avançada: uma contribuição ao debate” (1965). IN: A grande recusa hoje. Organização: Isabel Loureiro. Tradução: Isabel Loureiro e Robespierre de Oliveira. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 54-55.
[3] EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. Tradução: Luís Carlos Borges e Silvana Vieira. São Paulo: Boitempo Editorial; Editora da Unesp, 1997, p. 42.