Por Gabriel Tupinambá, via CEII.
Introdução
Gostaria de usar como epígrafe de nossa investigação a seguinte passagem do texto A autonomização das formas verdadeiramente sociais na teoria de Marx, de Leda Paulani: “os desdobramentos históricos experimentados pelo sistema monetário internacional podem ser vistos como uma espécie de “realização” de um processo de autonomização das formas sociais que está inscrita na própria mercadoria e que a empurra lógica e ontologicamente em direção às formas mais abstratas de riqueza como o capital financeiro e o capital fictício.” (Paulani, 2011: 51)
Selecionei esse fragmento pois ele nos coloca uma questão fundamental, e que será, de certa maneira, o foco do presente trabalho. A autora faz aqui o seguinte encadeamento: i) desdobramentos históricos – como, no caso do texto em questão, o aparecimento do dinheiro inconversível a partir de 1971 – “realizam” um processo já inscrito na mercadoria; ii) esse aspecto já presente na mercadoria a propulsiona na direção de formas sociais mais abstratas e, portanto, é o motor de sua autonomização; iii) esse empuxo é lógico e ontológico – ou seja, diz respeito a estrutura da mercadoria enquanto tal. Ora, com a idéia de um desenvolvimento histórico previamente inscrito na forma da mercadoria, não estaríamos entrando aqui no perigoso terreno das teleologias e das causas finais – uma perspectiva incompatível com as premissas metodológicas mais gerais da teoria do valor de Marx? Não é o caso: note que o texto não sugere que a história realiza um processo de autonomização pois “alcança” aquilo
que estava inscrito na forma da mercadoria, mas que essa empurra o processo – e empurra “lógica e ontologicamente”, o que significa que cada passo constrói a si mesmo como “tendo sido” necessário, constrói a sua própria pré-história.
É uma diferença sutil, à primeira vista, mas é suficiente para demarcar um importante
campo de investigações. Caso lidássemos com uma estrutura teleológica, assumiríamos que a forma da mercadoria tem uma estrutura ‘x’ que busca se realizar como ‘x’ na história – em termos modais, partiríamos de uma forma necessária, atravessaríamos as possibilidades da história, e retornaríamos à necessidade da realização dessa forma – a contingência apareceria, então, como uma casca ilusória a ser removida pela análise correta. No entanto, uma vez retirado o vetor teleológico, como organizar essas categorias? Temos, a grosso modo, o desenvolvimento contigente da história, que se manifesta como etapas necessárias, prescrevendo, a cada momento, um certo horizonte de possibilidades – ou seja, uma teoria compatível com o materialismo histórico. Mas e a inscrição que produz o empuxo “lógico e ontológico” da mercadoria? Se existe um aspecto positivamente determinado da forma da mercadoria, que direciona o processo de autonomização, então estaríamos certamente falando de um aspecto necessário de sua forma – e, ainda que minimamente, não teríamos saído da associação entre autonomização e finalidade. Trata-se de uma questão fundamental. Sabemos que o trabalho abstrato, a substância social do valor, é “a razão [pela qual] as formas verdadeiramente sociais tendem, por sua própria lógica, (…) a se desvencilhar dos entraves concretos que impedem a sua plenitude” (Paulani, 2011: 54) – o que está em questão, no entanto, é a maneira na qual a contradição entre qualidade e quantidade, entre trabalho concreto e trabalho abstrato, se inscreve na forma-mercadoria: seria o trabalho abstrato o telos da autonomização, um aspecto logicamente necessário da forma da mercadoria?
O que tentaremos desenvolver aqui é justamente uma alternativa para o estatuto modal dessa inscrição. Nossa hipótese – que poderia muito bem ser denominada formalmente de ‘a hipótese de Sohn-Rethel’, em homenagem ao filósofo e economista marxista que primeiro a desenvolveu, ainda que em outros termos (Sohn-Rethel, 1978) – é que a autonomização da forma do valor, cada vez mais abstraída de seus suportes concretos, é “empurrada” não por uma forma necessária, mas por uma forma impossível.
Em referência às categorias aristotélicas, entendemos por “impossível” aquilo que não é nem atual, nem potência de acontecer (Aristóteles, 2002: 395-431), mas aquilo que tem atualidade somente enquanto potência, algo que é somente enquanto não-ser. Para Aristóteles, “a potência preexiste ao ato como condição de sua atualidade, e o ato preexiste à potência como revelador” (Aubenque, 2012: 410), de modo que um ato pode revelar sua potência, e portanto ser contingente, ou a potência pode se atualizar, enquanto possibilidade. Aquilo que acontece sem que soubéssemos que era possível, revela ter sido possível – uma catástrofe, por exemplo – enquanto que aquilo cuja possibilidade já era conhecida, quando vem a acontecer, confirma seu condicionamento potencial. É fundamental notar que o possível é ambivalente: trata-se tanto da potência de ser quanto da potência de não ser. Por exemplo, onde há a potência de construir alguma coisa há também a potência de não construir. Aquilo que não possui a potência de não ser, e portanto cuja potência é ser sempre atual, é o necessário (Aristóteles, 2005: 100-107). O oposto da necessidade, o impossível, é aquilo que nega na potência a capacidade de ser – é aquilo que não pode passar à atualidade sem deixar de ser o que é. Em suma, o impossível é o modo daquilo que não cessa de não passar ao ser [1]. É essa a modalidade que procuraremos investigar aqui.
Deixaremos em aberto, como questão para um desenvolvimento futuro, os efeitos da hipótese sohn-retheliana para a compreensão da ontologia do trabalho. Como seria necessário conceber a noção de trabalho abstrato para que fosse possível afirmar que esse não cessa de não se inscrever na forma da mercadoria? Talvez a tentativa de responder a essa estranha questão, que confronta o trabalho com essa modalidade paradoxal do social, possa eventualmente nos ajudar a apreender a crescente importância do trabalho dito “imaterial” sem no entanto ceder quanto aos fundamentos da lei do valor-trabalho. Dito isso, sigamos em frente e analisemos nossa hipótese ali onde ela é pensada “na linguagem das mercadorias”, isso é, na forma do valor.
Abstração Real, a matéria sublime do dinheiro
Alfred Sohn-Rethel iniciou sua investigação sobre a forma do valor a partir de uma premissa paradoxal, que guiou mais de 50 anos de trabalho: a idéia que, no cerne da forma da mercadoria, podemos encontrar os traços fundamentais da forma sintética a priori do sujeito transcendental kantiano – o ponto evanescente, opaco, puramente formal da subjetividade (Sohn-Rethel, 1978: xiii). Não se trata de mais uma tentativa de re-introduzir o subjetivismo na origem da questão do valor, mas de afirmar – surpreendentemente – que, na mercadoria, a forma do pensamento pode ser encontrada fora do pensamento (Sohn-Rethel, 1978: 6).
Vamos prontamente a um exemplo, para amortecer um pouco a dificuldade imediata na compreensão dessa tese. Consideremos a famosa passagem de O Capital em que Marx descreve o que capacita certos metais preciosos a funcionarem como mercadoria dinheiro: “A forma adequada de manifestar-se o valor ou de materializar-se o trabalho humano abstrato e, portanto, igual, só pode ser uma matéria cujos espécimes isolados possuam idêntica qualidade. Depois, uma vez que é puramente quantitativa a diferença das magnitudes de valor, tem a mercadoria dinheiro de ser suscetível de variações meramente quantitativas, divisível, portanto, à vontade, podendo, ao mesmo tempo, recompor-se. Ouro e prata possuem, por natureza, essas propriedades. É duplo o valor-de-uso da mercadoria dinheiro. Além de possuir o valor-de-uso inerente a sua qualidade de mercadoria – o ouro, por exemplo, serve para obturar dentes, de matéria-prima para artigos de luxo etc -, adquire um valor-de-uso formal que decorre de sua função social específica.” (Marx, [1867] 2008: 114)
Em suma, são as propriedades naturais do ouro e da prata, e não somente o seu valor de uso, que qualificam esses materiais para servir como suporte da mercadoria dinheiro: os metais preciosos são divisíveis de maneira extremamente homogênea, são duradouros e podem ser recompostos à unidade anterior. É importante notar que o que está em jogo é “um valor-de-uso formal”, isso é, a capacidade de um certo material de encarnar a forma da mercadoria, que nada mais é que a relação entre mercadorias, e portanto servir como meio de circulação. Ora, a capacidade de “encarnar” a forma da mercadoria é a capacidade de um material particular de tomar o lugar de um outro material – um outro material que, na verdade, não tem a mesma existência do que aquele que o substitui, pois é, fundamentalmente, uma pura forma, sem existência particular. Em outros termos, aquilo que o ouro substitui é impossível de ser substituído justamente porque não existe do modo que o ouro existe – como definimos anteriormente, trata-se de uma potência que só é atual enquanto potência, que não cessa de não passar ao ser. Assim, encontramos aqui um ponto evanescente – propriamente impossível de se inscrever positivamente – e que, justamente como impossível, participa do movimento de extrusão da forma-mercadoria. A tensão fundamental entre qualidade e quantidade – contradição determinante desse processo – nos convida a mobilizar essa categoria tão desajeitada quando, ao invés de focarmos somente no movimento da mercadoria à moeda, tentamos incluir nessa questão o problema da “materialidade sublime” (Žižek, 1999: 18) desse valor de uso formal.
A tese de Sohn-Rethel é que essa matéria suspensa entre o ouro e a sua função não é nada menos que a forma do pensamento puro – cuja idealidade tornou-se discernível pela primeira vez como tal com o conceito do Um na obra de Parmênides, onde o Ser apresenta pela primeira vez a unidade, permanência e homogeneidade características da matéria social do valor (Sohn-Rethel, 1978: 65; Thomson, 1977). Uma vez estabelecida a relação entre a abstração de troca e a constituição desse ponto transcendental, subtraído de qualidades, fora do tempo e do espaço, a análise da forma da mercadoria assume um papel central na crítica da epistemologia e de suas questões clássicas – como o problema das condições de um conhecimento obtido por meios que não a experiência empírica, questão cuja opacidade se revela diretamente associada à gênese do trabalho intelectual, e portanto, à origem da divisão do trabalho.
Passemos então a uma construção passo a passo da análise formal proposta pelo filósofo, e tentemos relacionar essa idéia à problemática da autonomização das formas sociais.
O ponto de partida da exposição feita por Sohn-Rethel no livro que condensa o trabalho de sua vida – Trabalho Espiritual e Corporal – é uma consequência fundamental das premissas básicas do materialismo histórico de Marx. Sohn-Rethel escreve:
“[N]a constituição de formas históricas de consciência não se pode deixar de fazer caso de processos de abstração, que lá se exercem. A abstração iguala-se à oficina da formação dos conceitos, e se o discurso sobre a determinação social do ser da consciência deve possuir um sentido que satisfaça à forma, então deve-se poder colocar no fundamento dela uma concepção materialista da natureza do processo de abstração. Uma formação da consciência a partir do ser social pressupõe um processo de abstração que é parte do ser social. Só um tal fato pode tornar inteligível o que se entende com a afirmação de que “o ser social dos homens determina sua consciência”.” (Sohn-Rethel, 1978: 18)
Ou seja, se o ser social determina a consciência, a passagem do ser ao abstrato não pode ser uma pura interrupção entre dois registros totalmente distintos – o que implicaria que não podemos afirmar qualquer forma de determinação de um para o outro – e nem pode ser reduzida a uma pura continuidade, como se lidássemos com o mesmo registro – pois isso implicaria a incapacidade das premissas do materialismo histórico de dar conta das determinações específicas do pensamento e da idealidade. É exatamente o status enigmático dessa interrupção/continuidade, problema infindável da filosofia, que terá um papel determinante na análise sohn-retheliana da forma da mercadoria e da separação entre o trabalho manual e o trabalho espiritual (Sohn-Rethel, 1978: 67-79).
A perspectiva de Sohn-Rethel nos permite abordar a questão da forma do valor para além do modelo nominalista da relação entre a coisa e seu nome ao focar não na oposição manifesta entre valor de uso e valor de troca – oposição que se superpõe no pensamento, como dois registros heterogêneos – mas na oposição concreta entre ato de uso e ato de troca. Enquanto o campo de troca é ideal, existindo “fora do tempo” em nossas mentes, um campo cuja totalização nunca se interpõe ao campo do uso, o ato de troca é externo ao pensamento, submetido ao tempo e o espaço, e não pode acontecer ao mesmo tempo que o ato de uso. Ora, no ato de troca, tudo se dá como se a mercadoria fosse atemporal, não-dimensional, uma pura quantidade locomovendo-se num espaço uniforme (Sohn-Rethel, 1978: 35-59) – e, no entanto, trata-se de um ato que ocorre no tempo, no espaço, entre indivíduos concretos e (necessariamente) inconscientes da realidade da abstração implicada em suas ações. Sohn-Rethel afirma, então, que o ato de troca implica concretamente a forma das categorias fundamentais do pensamento abstrato:
“Enquanto os conceitos do conhecimento da natureza são abstrações mentais, o conceito econômico de valor é uma abstração real. Embora ele não exista em nenhum lugar senão no pensamento humano, ele não surge do pensar. Ele é imediatamente de natureza social, tem sua origem na esfera temporal e espacial do intercâmbio entre homens. Não são as pessoas que geram esta abstração, mas seus feitos, seus negócios recíprocos o fazem. “Não o sabem, mas o fazem”. (Sohn-Rethel, 1978: 20)
É crucial notar que a abstração-mercadoria é pública e social, enquanto o pensamento dos agentes da troca é concreto – isso é, determinado pelas qualidades dos objetos e ações envolvidos na troca -, mas privado e individual, de modo que “na troca de mercadorias, a ação e a consciência dos atores da troca percorrem caminhos distintos. Só a ação é abstrata; a consciência dos atores não é. A dimensão abstrata de suas ações está oculta dos agentes que as realizam” (Sohn-Rethel, 1978: 30). Munido do conceito de abstração real, o filósofo é capaz de demonstrar que, na passagem do ouro como equivalente geral ‘direto’ para a moeda cunhada – seu momento de nascimento como moeda propriamente dita – uma operação de inversão ocorre, e a dimensão autônoma da forma social, contida na própria estrutura da forma de valor, ganha independência da consciência na mesma medida em que é idealmente apreendida por ela. Tracemos esse desenvolvimento com cuidado.
Conversão da abstração real e autonomização da esfera do valor
O próprio modo como Sohn-Rethel introduz o conceito de abstração real já flerta com a modalidade do impossível, pois o autor adverte que “num caso isolado, acidental, de troca entre quaisquer duas partes, a abstração de troca evidentemente não deixa traço algum” (Sohn-Rethel, 1978: 57) – o que implica, justamente, que a abstração real não tem uma atualidade direta, não pode ser localizada. No entanto, no momento em que a troca tornase multi-lateral, envolvendo uma variedade de mercadorias em diferentes locais e momentos, e uma mercadoria específica passa a servir como meio de troca das outras, aquilo que está implicado na troca, enquanto potência sem potencial de realização direta, revela sua atualidade indireta – nesse sentido, o aparecimento da moeda é exemplar pois encena a confrontação da matéria com essa dimensão que é sempre presente, mas que não tem presença própria. Mencionamos anteriormente a descrição feita por Marx das razões pelas quais coube ao ouro e aos metais preciosos em geral realizar essa função – suas propriedades naturais coincidem com suas “funções monetárias”. Nós sabemos agora que pura quantificação, pura unidade, não-dimensionalidade, atemporalidade, etc, são, antes de categorias do pensamento abstrato, os postulados já implicados no ato de troca como tal, em sua própria estrutura – é a abstração real que é “espelhada” nas propriedades naturais do ouro (Sohn-Rethel, 1978: 58). E é justamente porque a abstração real não pode ser reduzida aos materiais encontrados na natureza que, eventualmente, fica claro que o ouro não pode se adequar a função de equivalente geral: a contradição entre seu valor de uso – suas propriedades enquanto consumíveis, e portanto sujeitas à mudança – e seu valor-de-uso formal – suas propriedades enquanto aproximações assintóticas dos postulados da troca – torna-se insustentável quando o alcance do mercado coloca em questão a possibilidade de se efetuar, a cada troca, a pesagem do ouro, que é o pivô da coincidência entre sua função de medida de valor e de meio de circulação. Vemos assim que a insistência de uma dimensão impossível “empurra” a autonomização dessa forma social – e o que ocorre então é o advento da cunhagem (Marx, [1867] 2008: 126-127), a inversão e separação dessas duas dimensões da forma do valor.
É crucial que atentemos para a inversão em jogo nesse momento. Até então, a moeda de ouro era construída da seguinte maneira: sua “primeira natureza”, concreta e material, a dotava com sua “segunda natureza”, abstrata e puramente social, (Sohn-Rethel, 1978: 56-57): a moeda de ouro era, primeiramente, uma certa quantidade de metal precioso, e esse valor concreto é que ‘produzia’ a função abstrata de meio de circulação. Quando um indivíduo carregava tal moeda no bolso, sabia – pois podia verificar isso através de pesagens – que carregava uma certa quantidade de valor específico. Contudo, o mesmo não se passa após a cunhagem: a partir do momento em que o Estado garante o peso da moeda-ouro, a primeira natureza não tem mais prevalência sobre a segunda, pois a pesagem do ouro pode variar e seu valor de troca permanecer o mesmo. Toda primeira natureza efetivamente necessária é um traço, uma “estampa” que garanta que, em algum lugar e algum momento, aquele valor social possa ser traduzido em valor de uso, ou seja, revertido a uma “primeira natureza”. Ainda está em jogo a relação entre essas duas fisicalidades, mas é a primeira natureza que é abstrata, substância de um “comércio de promessas” (Giraud, 2009: 75-82), enquanto a segunda natureza é efetivamente concreta, acontece a cada ato de troca. Podemos notar desde já que, mesmo com o fim da conversibilidade do papel-moeda, a estrutura básica entre a primeira e a segunda naturezas, tal como analisada por Sohn-Rethel, permanece intocada – o que se altera é a composição da “abstração de uso”, por assim dizer: antes a garantia do Estado era a de que havia lastro para a moeda que circulava, agora a garantia de valorização depende de outros fatores (Rotta; 2008), mas a dimensão real e concreta da abstração já “não cessava de não se inscrever” na forma da mercadoria. Reencontramos, assim, a epígrafe com a qual iniciamos nossa investigação – a tese de que “os desdobramentos históricos experimentados pelo sistema monetário internacional podem ser vistos como uma espécie de “realização” de um processo de autonomização das formas sociais que está inscrita na própria mercadoria” (Paulani, 2011:51) – agora munidos de um conceito de abstração real que permite pensarmos essa “inscrição” de maneira condizente com as premissas do materialismo histórico. Afinal, é justamente “através da incessante abstração inerente ao ato de troca de tudo o que é empírico” – isso é, através da autonomização da forma da mercadoria – “que o nexo dessa sociedade inconsciente se impõe como um de segunda natureza” (Sohn-Rethel, 1978: 61).
No entanto, se é a segunda natureza da mercadoria que realiza a função de “interdependência social” inerente ao trabalho abstrato e, portanto, ao modo de dominação social capitalista (Postone, 2003: 148), um problema fundamental se instala: já vimos que o ato de troca ocorre no tempo e no espaço (e portanto está em oposição direta ao ato de uso), e vimos também que a abstração de troca, estruturalmente presente nesse mesmo ato, é, de maneira paradoxal, a forma atemporal, não-dimensional, da abstração real. Como pode uma abstração de aspectos tão patentemente contraditórios servir de pivô do nexo social?
É aqui que Sohn-Rethel introduz o conceito de conversão – noção essencial de sua concepção da forma da mercadoria. É necessário, afinal, entendermos como é possível a passagem da abstração real inerente ao ato de troca para a abstração ideal que oferece ao pensamento a unidade pura e o ponto geométrico (Sohn-Rethel, 1978: 65). Consequentemente, o fundamento contraditório da abstração real nos coloca a seguinte questão preliminar: é realmente necessário pensar essa passagem como parte da estrutura da mercadoria? Por que pensar abstrações tão díspares como aspectos de uma mesma forma? Por mais que essa seja uma pergunta pertinente, para Sohn-Rethel essa concepção paradoxal é inevitável, pois a abstração ideal é indispensável para a compreensão do funcionamento da abstração real como pivô da síntese social: não podemos considerá-la separadamente, pois uma condição da consistência e autonomia da idealidade é que a passagem da abstração real para a abstração ideal opere também o desaparecimento da determinação da segunda pela primeira. Em sua análise da obra de Sohn-Rethel, Žižek esclarece esse ponto brilhantemente:
“O paradoxo crucial da relação entre efetividade social da troca de mercadorias e a ‘consciência’ do mesmo é que esse não-saber da realidade é parte de sua própria essência: a efetividade social do processo de troca é um tipo de realidade que é possível somente sob a condição de que os indivíduos que participam dela não estejam cientes de sua lógica real; isso é, uma realidade cuja própria consistência implica um certo desconhecimento por parte de seus participantes” (Žižek, 1999: 21)
Portanto, a transformação da abstração efetiva na troca em uma abstração privada e puramente intelectual não é simplesmente uma consequência acidental da forma da mercadoria, mas uma condição irredutível da sua consistência. É justamente esse mecanismo de repetição (da mesma abstração) e substituição (de registro, do real ao ideal) que Sohn-Rethel chama de conversão, e que nos remete de maneira mais explícita à modalidade do impossível – uma vez que coloca para o filósofo o problema de como dar atualidade e inteligibilidade àquilo que só tem ser enquanto não-ser:
“[Demonstrar a conversão] não é tarefa fácil. Como podemos sequer argumentar contra ou a favor dela? Pensar na conversão como uma performance na mente das pessoas – isso não pode, é claro, ser nem demonstrado nem negado, pois não pode ser testemunhado. (…) Tentar perguntar aos participantes da troca eles mesmos também não nos leva a lugar nenhum, já que descobrimos anteriormente que a conversão tem que desaparecer das mentes daqueles engajados nela. Tudo que podemos argumentar é o problema em jogo na conversão, e como torná-lo reconhecível. Na vida real, a abstração ideal apaga a abstração real de modo a torná-la irreconhecível. Para evitar que isso aconteça, a conversão precisa ser apresentada tendo como ponto de partida um ato de troca de mercadorias, ou no contexto direto do manejo de moedas para uso comercial. Ou seja, a conversão precisa ser apresentada como ocorrendo de uma maneira que é absolutamente impossível de ocorrer.” [2] (Sohn-Rethel, 1978: 62)
Um modelo topológico da autonomização do valor
Considerando tanto a necessidade lógica do conceito de conversão quanto a “absoluta impossibilidade” de sua representação, podemos nos aventurar agora na construção de um modelo alternativo para forma da mercadoria, um que inclua o lugar da abstração real, e, portanto, um ponto que funciona enquanto impossível. Para isso, retomemos inicialmente o modelo mais clássico – de orientação estruturalista – que organiza as categorias levantadas na análise das propriedades da moeda de acordo com a lógica moderna da significação (Arnaud, 2003; Fausto, 1997; Goux, 1990; Paulani, 2011):
Aqui a distinção entre uso (2) e o processo de troca (3) ganha os contornos da distinção saussureana entre significante e significado (Saussure, 1997: 130-138), na mesma medida em que torna ainda mais problemática a compreensão da localização do valor de uso formal (1), isso é, o aspecto vazio da forma, responsável pela introdução da mercadoria no campo das trocas (ou do fonema no campo do sentido). No entanto, a dificuldade em localizar o aspecto formal é também uma dificuldade em localizar o trabalho na estruturação do valor – assim como o ato de fala fica perdido ao considerarmos o som e o sentido como dois lados de uma folha de papel. É justamente a suposição de que Sohn-Rethel elevaria a abstração real à dignidade de suporte necessário e trans-histórico dessa divisão – tal como a própria folha de papel no modelo simbólico – que sustenta as críticas mais contundentes ao seu trabalho, tanto em nome de um retorno à teleologia quanto em nome de uma suposta contradição com a lei do valor em Marx (Jappe, 2006; Postone, 2003).
Ainda assim, esse modelo nos permite visualizar algumas das distinções operacionais fundamentais da abstração-mercadoria: o valor-de-uso formal da mercadoria-dinheiro serve de suporte ideal (1) para sua função como meio de circulação, em que valores são comparados em termos de sua pura quantidade (3), enquanto a referência ao valor-de-uso (2) é a referência direta (ou indireta, no caso do dinheiro-papel) da sua medida de valor. Em termos mais gerais, encontramos dois versos que nunca se cruzam – um, abstrato e ideal, o outro, material – e duas operações: a moeda como meio de circulação permanece no registro abstrato, comparando e trocando valores, e a moeda como medida de valor representa um valor de uso, fazendo referência às propriedade sensíveis e consumíveis da mercadoria, e tendo elas por suporte.
O problema que serviu como nosso ponto de partida – a autonomização da moeda associada a sua inconversibilidade – nos remete então a seguinte pergunta: como é possível manter a relação estrutural entre valor de troca e valor de uso sem a referência constante àquilo que dá lastro à moeda? Em termos do modelo acima, essa questão pode ser formulada assim: como é possível uma superfície de dois versos – valor de uso e valor de troca – mas de somente um lado? Ou ainda: como é possível autonomizar radicalmente a circulação sem que a referência estrutural ao uso seja perdida?
Tentaremos agora construir um modelo que dê conta justamente desse problema. Vimos anteriormente que a concepção sohn-retheliana não só decompõe o “valor-de-uso formal” em seus elementos contraditórios – a abstração real e a abstração ideal – como também nos oferece, com o conceito de conversão, um ponto na superfície das operações de valor que é simultaneamente uma interrupção e uma continuidade entre os dois lados. A abstração real é uma abstração externa e material, a “sublime matéria do dinheiro” (Žižek, 1999: 18), e a abstração ideal é a forma do concreto elevado ao puro pensamento – por fim, o conceito de conversão marca a inextricabilidade dessas duas abstrações, articulando o desaparecimento da primeira e sua substituição pela segunda.
Estamos de posse, assim, de um problema – a questão de como seria possível pensar a autonomização da “superfície do valor” sem comprometer a referência ao uso – e do conceito paradoxal de abstração real como aquilo que só existe na medida em que desaparece e não se inscreve em lugar algum. Ora, existe uma estrutura que é capaz de transformar esse ponto ausente em uma possível resposta para a questão da autonomização, transformando a abstração real na própria condição de consistência da superfície autonomizada – trata-se da Banda de Moebius.
Um modelo tridimensional da Banda de Moebius pode ser construído facilmente, colando as duas pontas de uma tira de papel de maneira invertida, e possui exatamente as características que precisamos articular: para qualquer ponto escolhido na superfície há um ponto correspondente no verso oposto e, no entanto, é possível ir continuamente do primeiro ao segundo, pois os dois estão, na verdade, do mesmo lado. Mas para que a banda de Moebius tenha apenas um lado (e uma borda), é preciso que um ponto desapareça, um elemento bastante singular que é funcional precisamente na medida em que é excluído da superfície:
“o valor da Banda de Moebius é nos ajudar a pensar um tipo singular de elo perdido: não um ponto que está faltando numa sequência (que estaria consequentemente interrompida), mas um elo cuja ausência permite a ligação dos elementos existentes, sua conexão, sua consistência, sua constituição como uma suave sequência causal. A natureza ausente desse elo nunca é visível, perceptível, mas está implicada no modo como a superfície é “positivamente” formada, nos elementos que são ligados e em qual ponto eles são ligados. Não se trata de um elo perdido entre dois elementos vizinhos, cuja conexão poderia ser interrompida – ao contrário, seu desaparecimento é a ligação entre os elementos vizinhos, e é o que torna possível que eles “se encaixem”, por assim dizer” (Zupancic, 2008: 56)
Apresentemos então uma sugestão de modelo para a concepção sohn-retheliana da forma da mercadoria, baseada na Banda de Moebius:
Note que a passagem do primeiro modelo, de inspiração saussureana, para nossa proposta atual é simplesmente o movimento de adicionar um ponto ausente – isso é, tudo o que adicionamos foi a hipótese da dimensão impossível da forma da mercadoria, a idéia de algo que não cessa de não passar ao ser. Ao suplementar o modelo com esse “elo perdido” nos confrontamos com um novo grau de complexidade. Vemos aqui que o desaparecimento da abstração real, postulada pelo ato de troca (1), permite que a referência ao valor de uso (4) seja “construída na própria estrutura” do valor de troca (3), sem que, por isso, seja articulada como um outro verso da superfície – existente e “lastreado”. Vemos também que o valor-deuso formal (2), aquilo da substância do valor que funciona como suporte das operações da forma da mercadoria, não precisa mais ser pensado em termos da aproximação assintótica de determinações concretas do suporte material às qualidades da substância social: sabemos agora que o valor de uso formal não cessa de não se inscrever na mercadoria, e que, portanto, todo suporte concreto que visa encarná-lo – seja o ouro, seja a moeda ou o crédito – sempre será discernível daquilo que tenta metaforizar.
Certamente estamos longe de poder considerar consistente ou mesmo aceitável o modelo sohn-retheliano. No mínimo, é preciso questioná-lo exaustivamente e testar suas consequências. Aponto, à guisa de conclusão, que a utilidade de tal análise me parece inquestionável, uma vez que seu sucesso nos permitiria elevar a disjunção entre a teoria do valor-trabalho e a teoria do valor monetário à dignidade de uma prova de sua compatibilidade e interseção.
[1] Baseamos nossa concepção de impossível nas leituras de Aristóteles realizadas por Giorgio Agamben (Agamben, 2011; 2000) e no “retorno à Hegel” encontrado nos trabalhos de Slavoj Žižek (1999; 2006). Citamos também a influência mais geral da obra de Jacques Lacan, responsável pela elaboração da centralidade da categoria de impossível na psicanálise – fazemos referência especial aos seminários De um Outro ao outro (Lacan, 2006) e Mais, ainda (Lacan, 1975).
[2] Note que Sohn-Rethel se expressa de maneira homóloga a Marx, que escreve, nos primeiros parágrafos da sua análise da forma do valor, no capítulo inicial de O Capital: “A realidade do valor das mercadorias difere de Dame Quickly, por não sabermos por onde apanhá-la. Em contraste direto com a palpável materialidade da mercadoria, nenhum átomo de matéria se encerra no seu valor. Vire-se e revire-se à vontade uma mercadoria: como valor, ela permanece impossível de ser apreendida [sie bleibt unfassbar as Wertding]” (Marx, [1867] 2008:69)
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