Por Kojin Karatani, traduzido por Daniel Fabre.
Kojin Karatani é um critico literário e pensador japonês contemporâneo, autor de Transcrítica, obra em faz uma leitura original de Kant através de Marx e de Marx através de Kant. Seu trabalho ganhou visibilidade após Slavoj Zizek tomar por empréstimo seu conceito de “visão em paralaxe” – inclusive como título de seu próprio livro.
No presente artigo, o autor demonstra a importância do 18 de Brumário de Louis Bonaparte, de Karl Marx, na leitura de períodos de “crise” como os atuais. Karatani nos demonstra como a crítica da ciência política de Marx torna possível compreender a compulsão à repetição presente na história, relacionando o fascismo ao fenômeno do bonapartismo.
Quando o sistema comunista caiu no fim dos anos 1980 e – como simbolizado pela assertiva de Francis Fukuyama (1998) sobre o “fim da história” – uma perspectiva otimista baseada na globalização da democracia representativa e na economia de mercado liberal foi proclamada, pareceu que os trabalhos de Marx como o Capital ou o 18 de Brumário de Luís Bonaparte tinham perdido inteiramente seu sentido. Ainda assim, foi naquele ponto que esses trabalhos começaram a emitir um tímido, mas ainda assim, poderoso brilho. Desde então, testemunhamos uma recessão ao redor do mundo e a disfunção da democracia representativa. Isso não prognostica, entretanto, a queda do capitalismo ou do estado-nação moderno. Ao contrário, isso expõe o fato de que a história existe em um tipo de compulsão à repetição.
É precisamente o problema desta compulsão à repetição que O Capital e o 18 de Brumário apontam. O que Marx mostrou no Capital é a compulsão à repetição inerente ao movimento do capital em direção a acumulação. O Capital é levado a auto-reprodução através de um incessante processo de diferenciação, e esse processo não é capaz de evitar os repetidos ciclos negociais de recessão, prosperidade, crise econômica, recessão. Por outro lado, o 18 de Brumário elucida a compulsão à repetição que não pode ser resolvida pela forma política do moderno estado-nação, uma compulsão à repetição que é de fato inevitavelmente posta em movimento pela tentativa mesma de resolvê-la. O que precisa ser reconhecido nos anos 1990 é que ainda nos encontramos nesta compulsão à repetição.
Por exemplo, havia muitos que previram, com a referencia a emergência da crise econômica global e a falência do sistema parlamentar, os anos de 1990 se assemelhariam aos de 1930. Esse tipo de pensamento pode parecer não ser nada além de um catastrofismo familiar em parte da Esquerda. Mas no presente contexto, em um tempo em que a velha-guarda da esquerda caiu em desgraça, eu penso que este problema merece um sério escrutínio. Esse tipo de repetição aponta para o ciclo econômico do capitalismo global de aproximadamente sessenta anos conhecido como o ciclo de Kondratieff. Visto de uma perspectiva econômica, houve uma transição ao “capitalismo tardio” nos anos 1930; sessenta anos antes, nos anos de 1870, houve uma transição do liberalismo para o imperialismo. Nesse sentido, os anos de 1990 darão origem, sem dúvidas, à transição para uma economia de mercado global. Minha intenção, de qualquer modo, não é examinar esse fenômeno em detalhe aqui. O que estou interessado em analisar é a compulsão à repetição que transcende as diferenças particulares de cada um desses momentos históricos, os quais, de fato, são a base para a criação de novos estágios.
A repetição na história não significa a recorrência dos mesmos eventos, porque a repetição é possível somente em termos de forma (estrutura) e não de evento (conteúdo). Os eventos mesmos são capazes de evadir a repetição, enquanto que uma dada estrutura – como os ciclos negociais – são incapazes de fazê-lo. Isso é precisamente o tipo de compulsão à repetição que eu quero abordar aqui. Como Freud escreveu, a compulsão em repetir marca o retorno do reprimido que nunca pode ser relembrado; ao invés de ser relembrado, ele é repetido no presente. O que somos capazes de relembrar não são nada mais que eventos. Por esse motivo, comparar eventos dos anos 1870, 1930 e 1990 é, sem duvida, perder de vista o “retorno do reprimido” que existe aí. De forma a ver esse processo, precisamos nos voltar para o Capital e especialmente para o 18 de Brumário. Depois de tudo, das passagens iniciais desse último texto, Marx problematiza a questão da repetição na história.
O que então “o reprimido” significa nesse contexto? A resposta é entrelaçada com a questão da representação no sistema parlamentar assim como na economia capitalista, como mencionado de inicio. É verdade que esses sistemas são “repressivos”. Sua compulsão em repetir, entretanto, não é baseada naquele tipo de repressão. Ao invés, o “reprimido” que permanece absolutamente irrepresentável é o “furo” que faz tais sistemas de representação possíveis. Esse furo não é em nenhuma hipótese invisível, mas de fato existente em todo lugar. Ainda por essa precisa razão, sua natureza de um furo está escondida.
Na economia capitalista, por exemplo, se pode falar que o dinheiro é justamente tal furo. N’O Capital, Marx deixou claro que o dinheiro é um ser – ou melhor um ser-nada heideggerriano – que é guiado a um movimento perpétuo de auto-reprodução que ultrapassa qualquer vontade humana. A economia clássica debochava da perversidade do comerciante (o mercantilista), que adorava o dinheiro. Ainda, nesses tempos de pânico financeiro, quando o sistema de confiança caiu, é precisamente em direção ao dinheiro que as pessoas correm. Para economistas clássicos ou neoclássicos, o dinheiro não é nada mais que um padrão para expressar o valor, um meio de pagamento – em outras palavras, um “ser” visível. É só por essa razão, entretanto, que é possível que o dinheiro, como um ser = nada (ou para colocar de outra maneira, como uma “coisa”), exista na forma mercadoria (a forma valor), oculto. É nesses tempos de crise econômica – a crise sendo ou não dramática – que as pessoas são receptivas a isso. Até o momento, o dinheiro não é meramente uma coisa, mas antes um sublime fetiche. Para colocar de forma reciproca, o dinheiro existe como algo irrepresentável e é durante a crise econômica como compulsão à repetição que as pessoas experimentam isso.
No 18 de Brumário, o “furo” que existe no sistema de representação é o “rei” que foi banido pelo sistema. Nos vemos isso em seu lugar, o “imperador” Bonaparte volta a vida. Reis, imperadores e presidentes na verdade existem, justamente como o dinheiro existe. Mas o que é importante é o fato de que eles são o “nada do ser” que torna possível o sistema de representação. Por esse motivo, não é importante quem é o “rei” ou o “imperador”, ou mesmo se eles na verdade são chamados por rei ou imperador. O que está em questão é que o sistema parlamentar (representativo) criado nos tempos modernos contém um furo que nunca pode ser preenchido, furo este que existe realmente apartado do atual e visível rei, presidente, ou imperador; além disso, é precisamente esse furo que é repetido como o “retorno do reprimido”.
A razão pela qual eu uso o 18 de Brumário aqui é que ele analisa como um sintoma o que foi repetido nos anos de 1870 e de 1930 e que provavelmente esteja se repetindo nos anos de 1990. Os eventos na França que o livro examina contém algo que prefigura o fenômeno posterior. Não é os eventos em si, de qualquer forma, que me levam a acreditar nisso mas antes a analise penetrante de Marx sobre eles. Inegavelmente, o 18 de Brumário é um trabalho jornalístico que analisa a situação política francesa contemporânea; mas do ponto de partida da historiografia moderna, o livro seria considerado inadequado. Por isso é preciso considerar fatores mais complexos a respeito de Louis Bonaparte ou do Segundo Império, é evidente. O que encontro no 18 de Brumário, entretanto, é uma consideração fundamental sobre o Estado, antes do que sobre a história. Isso é parecido com a relação entre Capital e a história econômica inglesa. O Capital é claro considera a historia econômica inglesa como sua fonte material, mas alguém poderia – e deveria – ler O Capital realmente apartado disso.
Em O Capital, Marx tentou explicar o sistema fantasmático organizado pelo dinheiro. Não obstante, esse sistema não deve ser designado como a base econômica. Ao invés, ele pertence à superestrutura, organizando e também ocultando a base econômica; em outras palavras, é o sistema de representação. Precisamente por esta razão, ele continuamente mantém em si o perigo de colapsar. Por esse lado, o 18 de Brumário toma o inevitável perigo contido em outro tipo de sistema de representação, aquele da democracia representativa. Se O Capital aborda a economia como uma questão de representação, o 18 de Brumário aborda a política da mesma forma. De forma similar, se O Capital é uma critica da economia moderna, o 18 de Brumário é uma crítica da ciência política moderna. Além disso, no bonapartismo as duas formas de representação surgem juntas. Então o problema que se debruça o 18 de Brumário não apenas pertence ao passado mas também emerge novamente no fascismo dos anos de 1930 assim como na conjuntura desde os anos de 1990.
Há diversas vantagens de se pegar o 18 de Brumário como o ponto de partida. Tendo em vista o fascismo dos anos de 1930, por exemplo, não deveríamos pensar nisso como um fenômeno especifico apenas da Alemanha e da Itália, porque assim perderíamos de vista os problemas que emergiram na década de 30 em uma escala global. Além disso, um foco tão estreito não proveria uma oportunidade de pensar sobre a questão da “repetição” nos anos de 1990. Pois, como eu disse antes, os eventos por eles mesmos não podem ser repetidos. Nesse sentido, o fascismo seria considerado meramente um problema do passado. Entretanto, enquanto os problemas que criaram o sistema parlamentarista e a economia capitalista não desaparecerem, os problemas do passado continuarão a aparecer no futuro.
O 18 de Brumário é, por exemplo, um texto indispensável para entender o fascismo japonês dos anos 30. As teorias do fascismo tendem a ser modeladas na experiência da Alemanha e da Itália, e tais modelos não podem ser aplicados perfeitamente ao caso japonês. Como resultado, assertivas sem sentido tais como aqueles que negam a existência do fascismo no Japão são capazes de ganhar um boa soma de adeptos. Há, entretanto, um limite em quanto o conceito de fascismo por si só pode explicar o fenômeno que emergiu em países capitalistas avançados nos anos de 1930. Esse fenômeno foi, em primeiro lugar, uma contra revolução em reação à Revolução russa. Ou seja, ela tinha que conter em si um certo grau de socialismo. O movimento de contra revolução foi estimulado pela Grande Depressão dos anos 30. Por exemplo, nos Estados Unidos um presidente – Roosevelt – surgiu como aquele que representava todos os partidos e classes e como aquele que impulsionou a política de guerra. Isto não era fascismo, mas tampouco era liberalismo. O que é necessário para ver um fenômeno como esse de um ponto de vista universal? A resposta é O 18 de Brumário (que encontro o caso japonês no capítulo II).
O 18 de Brumário é cheio de insights que fazem possível uma analise fundamental não apenas do imperialismo dos anos de 1870 e do fascismo dos anos de 1930, mas também o estado de coisas que emergiu desde a década de 90. Por exemplo, no 18 de Brumário, a tomada do poder de Bonaparte é precedida pelo colapso da “Esquerda” em 1848. Este fato, apesar das diferenças em particularidades históricas, é também comum ao que ocorreu nas décadas de 1870, 1930, e 1990. Para simplificar, eu acredito que o fascismo é uma forma de bonapartismo. Mas o que importante é ver isso como um processo dinâmico do que foi retratado no 18 de Brumário. Caso contrário, o resultado seria nada menos que a produção de outra definição estéril.
Por exemplo, Engels definiu o bonapartismo na forma a seguir. No conflito entre a burguesia e o proletariado, quando a balança de poder surgia entre eles e ninguém é capaz de tomar o poder do Estado, um poder temporário que mantém uma certa autonomia de ambos é estabelecida. Para Engels, o bonapartismo se refere ao personagem de uma autocracia formada nessa maneira. Os marxistas tenderam a seguir essa de bonapartismo sem ler propriamente O 18 de Brumário.
Se alguém tomar apenas o balanço de poder das classes, de qualquer modo, então esse alguém pode também dizer que a monarquia absolutista foi estabelecida no equilíbrio entre forças feudais e a burguesia. Por essa razão, não se pode entender a característica que distingue o bonapartismo apenas pelo fato que o conflito de classe se modificou para a luta entre burguesia e proletariado. A diferença entre a monarquia absolutista e o bonapartismo – que surgiu de dentro do estado burguês formado através da derrubada da monarquia absolutista – existe acima de tudo no processo de como o equilíbrio de classe é atingido. É óbvio que o último caso é realizável através do sistema representativo baseado em eleições populares e através da coalizão de vários partidos políticos. E, sem essa noção básica, é impossível de tocar o sentido não apenas do bonapartismo mas também das formas subsequentes de contra revolução, incluindo o fascismo.
Excerto extraído do original: On The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte.
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5 comentários em “Sobre o 18 de Brumário de Louis Bonaparte”
Um puta texto, bicho!
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ok