Por Kwame Nkrumah, traduzido por Daniel Fabre.
Kwane Nkrumah foi o grande líder da independência de Ghana e um dos mais influentes pensadores do chamado ‘socialismo africano’. Influenciado pelas ideias de Marcus Garvey, do marxista C.L.R. James, do exilado russo Raya Dunayevskaya e do sino-americano Grace Lee Boggs, Nkrumah desenvolveu sua obra em constante relação com os desenvolvimentos da luta independentista na África.
O excerto abaixo foi extraído do livro Class Strugle in Africa, de 1970, e debate as relações entre classe, raça e ideologia diante da especificidade do processo africano. Tal especificidade traria à analise marxista alguns nuances característicos da luta na África, como a íntima relação entre capitalismo e racismo, ou entre classe e raça na sociedade colonial africana.
Características de classe e ideologias
Há uma estreita conexão entre o desenvolvimento sociopolítico, a luta entre as classes sociais e a história das ideologias. Em geral, os movimentos intelectuais refletem intimamente as tendências do desenvolvimento econômico. Na sociedade comunal, onde há virtualmente nenhuma divisão de classe, as atividades produtivas dos seres humanos exercem uma influência direta na aparência e nos gostos estéticos. Mas na sociedade de classe, a influência direta das atividades produtivas é menos discernível na aparência e na cultura. É preciso levar em conta a psicologia dos conflitos de classe.
Certos hábitos sociais, vestimentas, instituições e organizações são associadas com diferentes classes. É possível identificar uma pessoa a uma classe particular simplesmente observando sua aparência em geral, sua vestimenta e o modo como se comporta. De forma similar, cada classe tem suas próprias instituições e organizações características. Por exemplo, cooperativas e sindicatos são organizações da classe trabalhadora. Associações profissionais, câmaras de comércio, bolsa de valores, Rotary clubes, sociedades maçônicas, dentre outras, são instituições de classe média e da burguesia.
As ideologias refletem os interesses de classe e a consciência de classe. O liberalismo, o individualismo, o elitismo e a “democracia” burguesa – que é uma ilusão – são exemplos da ideologia burguesa. O fascismo, o imperialismo, o colonialismo e o neocolonialismo são também expressões do modo de pensar burguês e de aspirações políticas e econômicas da burguesia. Por outro lado, o socialismo e o comunismo são ideologias da classe trabalhadora e refletem suas aspirações e instituições e organizações político-econômicas.
A concepção burguesa de liberdade como a ausência de restrições, de laissez-faire, livre iniciativa e de “cada homem por si só”, é uma expressão típica da ideologia burguesa. A tese básica é que o propósito do governo é o de proteger a propriedade privada e a propriedade privada dos meios de produção e distribuição. A liberdade é confinada a esfera política, e não tem relevância em assuntos econômicos. O capitalismo, que não conhece nenhuma lei além de seus próprios interesses, é equalizado com a liberdade econômica. É inseparável desta concepção de liberdade ponto de vista de que a presença ou ausência de riqueza denota a presença ou ausência de habilidades.
Casado com o conceito burguês de liberdade está o de adoração à “lei e ordem” sem compromisso com quem fez a lei, ou se ela serve os interesses do povo, de uma classe ou de uma estreita elite.
Nos anos recentes, com a ascensão crescente da violência revolucionaria ao redor do mundo, novas terminologias burguesas enganadoras emergiram expressando a repercussão reacionária. Exemplos típicos são os mitos da “maioria silenciosa” ou da “média” ou ainda do “cidadão médio”, todas ditas antirrevolucionárias e a favor da manutenção do status quo. De fato, em qualquer sociedade capitalista, a classe trabalhadora forma a maioria e essa classe está longe do silêncio e é eloquente em sua demanda por uma transformação radical da sociedade.
Na África, a burguesia africana, ansiosa por emular as atitudes e ideologias da classe média europeia, confundiu em muitas ocasiões classe com raça. Parece-lhes difícil diferenciar as classes europeias já que não são familiarizados com as sutis diferenças nos discursos, maneiras, vestimentas e etc. – diferenças que trairiam instantaneamente sua origem de classe para seus próprios pares. Membros da classe trabalhadora europeia vivem como burgueses nas colônias. Eles têm carros, serventes, suas esposas não entram na cozinha e sua origem de classe é aparente apenas para seu próprio povo. Depois da independência, a burguesia nativa, aspirando o status de classe dominante, copia o modo de vida da ex-classe dominante – os europeus. Eles estão, na verdade, imitando uma raça e não uma classe.
A burguesia africana, portanto, tende a viver o tipo de vida vivida pela velha classe dominante colonial, que não é necessariamente o modo de vida da burguesia europeia. É antes o modo de vida de um grupo racial em uma situação colonial. Nesse sentido, a burguesia africana perpetua as relações entre mestre e escravo do período colonial.
Embora a burguesia africana aceite de forma subserviente as ideologias de seus pares do mundo capitalista, há certas ideologias que se desenvolveram em um contexto especificamente africano e que se tornaram expressões características da mentalidade da burguesia africana. Talvez a mais típica seja a falsa concepção de “negritude”. Essa teoria pseudo intelectual serve como uma ponte entre a classe média africana dominada pelos estrangeiros e o establishment cultural francês. É irracional, racista e não-revolucionária. Ela reflete o confuso estado mental de alguns intelectuais colonizados franco-africanos e é totalmente divorciada da realidade da Personalidade Africana.
O termo “socialismo africano” é um tanto sem sentido e irrelevante. Ele implica na existência de uma forma de socialismo peculiar a África e deriva de aspectos igualitários e comunais da sociedade tradicional africana. O mito do socialismo africano é usado para negar a luta de classes e para obscurecer o compromisso socialista genuíno. Ele é empregado por aqueles líderes africanos que são compelidos – no clima da revolução africana – a proclamar políticas socialistas, mas que são ao mesmo tempo profundamente compromissados com o capitalismo internacional, os quais não tem a intenção de promover um genuíno desenvolvimento socialista. Enquanto não haja um dogma forte e veloz para a revolução socialista, as circunstâncias específicas de um período histórico definido determinarão a precisa forma que ela assumirá, não podendo haver conciliação com avanços socialistas. Os princípios do socialismo científico são universais e permanentes, e envolvem a genuína socialização dos processos produtivos e distributivos. Aqueles que por motivos políticos se valem do socialismo, enquanto ajudam e sustentam o imperialismo e o neocolonialismo, servem aos interesses de classe da burguesia. Os trabalhadores e camponeses podem estar enganados por algum tempo, mas ao passo que a consciência de classe se desenvolve os falsos socialistas são expostos e a genuína revolução socialista se torna possível.
Classe e Raça
Cada situação histórica desenvolve sua própria dinâmica. As conexões entre classe e raça se desenvolveram na África junto a exploração capitalista. A escravidão, a relação entre mestre e escravo e mão de obra barata foram basilares para isso. O clássico exemplo é a África do Sul, onde os africanos experimentam uma dupla exploração – tanto no campo da cor quanto no da classe. Condições similares existem nos EUA, no Caribe, na América Latina e em outras partes do mundo onde a natureza do desenvolvimento das forças produtivas resultou em uma estrutura racista de classe. Nessas áreas, mesmo matizes de cor contam – o grau de negro é a régua na qual o status social é medido.
Enquanto uma estrutura social racista não é inerente a uma situação colonial, ela é inseparável do desenvolvimento econômico do capitalismo. A raça é inexoravelmente ligada a exploração de classe: em uma estrutura de poder racista-capitalista, a exploração capitalista e a opressão de raça são complementares: a remoção de um assegura a remoção do outro.
No mundo moderno, a luta de raças tornou-se parte da luta de classes. Em outras palavras, onde houver um problema de raça ele estará ligado a luta de classes.
Os efeitos da industrialização na África, como em todo lugar, têm sido de nutrir o crescimento da burguesia e ao mesmo tempo o crescimento de um proletariado politicamente consciente. A aquisição de propriedade e de poder político por parte da burguesia e as aspirações nacionalistas e socialistas crescentes da classe trabalhadora, ambas atacam a raiz da estrutura de classe racista, apesar de que cada uma delas aponta para objetivos diferentes. A burguesia apoia o desenvolvimento capitalista enquanto o proletariado – a classe oprimida – está lutando em direção ao socialismo.
Na África do Sul, onde a base das relações étnicas são a classe e a cor, a burguesia compreende mais ou menos um quinto da população. Os britânicos e bôeres, tendo somado forças para manter suas posições de privilégio, dividiram os quatro quintos restantes da população em “negros”, “de cor” e “indianos”. Aqueles de cor e os indianos são grupos minoritários que agem como amortecedores para proteger a minoria de brancos contra a maioria negra crescentemente militante e revolucionária. Em outras áreas de colonização da África uma luta de classe-raça similar está ocorrendo.
Uma sociedade não racial apenas pode ser alcançada pela ação socialista revolucionária das massas. Ela nunca será alcançada como um presente da classe dominante minoritária. Porque é impossível separar relações de raça das relações capitalistas de classe onde elas têm sua raiz.
A África do Sul novamente provê um exemplo típico. No início da colonização holandesa a distinção feita não foi entre negros e brancos, mas entre cristãos e pagãos. Foi somente com a penetração econômica capitalista que as relações entre mestre e escravo emergiram, e com isso, o racismo, o preconceito de cor e o apartheid. Este é o mais intolerável e desigual “sistema” de políticas de classe e raça que já emergiu da sociedade capitalista, branca e burguesa. Oitenta por cento da população da África do Sul não é branca e não tem direitos políticos ou direito a votar.