Por Julio D’Avila
Em primeiro lugar, é preciso definir o que se quer dizer com violência aqui. Não é a violência física, psicológica ou moral (apesar de poder tomar esse formato) e sim um ato que rompa com a ordem de vigente. É a violência “divina” de Walter Benjamin.
Esse excerto de um artigo de Edson Sá dos Reis, VIOLÊNCIA MÍTICA E VIOLÊNCIA DIVINA EM WALTER BENJAMIN, esclarece:
“A violência divina é aniquiladora de todo o Direito, pois ela não privilegia um grupo e exclui outros, e pode ser caracterizada como justiça. Ela não possui fronteiras, pois age sobre todos os seres vivos e se desenrola no palco da vida. A violência divina não traz a culpa e a expiação inerente ao Direito, antes, expia a culpa do homem. Sob a luz da violência divina, os pressupostos de culpa e ameaça não possuem nenhuma validade, pois o palco de atuação dela é a vida. Nesse palco, a violência divina não põe no homem esses fatores presentes no Direito e muito menos reduz o homem à mera vida. Enquanto o direito remete a uma culpa inerente à mera vida, a violência divina expia o culpado e o liberta do Direito.”
O Direito no caso é compreendido como a Lei do Estado.
É a violência que permite que Slavoj Žižek afirme que Hitler é muito menos violento que Gandhi, pois Gandhi promoveu reais mudanças na ordem vigente, enquanto “O nazismo não foi suficientemente radical, não ousou perturbar a estrutura básica do espaço social capitalista moderno (e por isso teve de se concentrar em um inimigo externo inventado, os judeus)”- Slavoj Žižek – Em Defesa das Causas Perdidas.
A situação atual da politica brasileira exige que um manifesto dessa natureza seja feito, pois apesar de estarmos em um sistema teoricamente democrático, o presidente tem 7% de aprovação e chegou a ter 1% em alguns momentos. Vladmir Safatle constantemente lembra que o povo na democracia tem poder constituente e destituinte e, portanto, teria que ter o poder de remover o líder máximo da nação quando quisesse, se o país fosse legitimamente democrático. Ao mesmo tempo, reformas são aprovadas com profunda reprovação da maioria da população. A corrupção, finalmente mais penetrantemente exposta, aliada a ausência de efetiva representatividade e distância forçada em o cidadão comum e o governo (na leitura que Milan Kundera faz sobre o trabalho de Kafka, ele defende que a verdadeira crítica de Kafka não é a um sistema autoritário, mas da burocracia propriamente dita, porque esta ameaça o cidadão que deseja participar ativamente na politica a partir do momento que, se ele tentar aproximar-se, encurtar a distancia, entranhar-se no meio, começa a ser envolvido e finalmente engolido pelo sistema, como O Processo e, de maneira diferente, O Veredito, mostram), comprovam a completa falência do sistema politico brasileiro.
Porque então não há reação? Porque nada é feito concretamente?
Por um lado, é impossível imaginar que o Congresso corrija as suas falhas pois os membros dele se beneficiam diretamente delas. É preciso lembrar do que Foucault falou a respeito de conquistas dentro do sistema, sem alteração das estruturas: são conquistas previstas pelo sistema, conquistas que servem para dar a ilusão de progresso, de melhoria, quando a única melhoria possível é o fim do sistema. Dessa forma, podemos perceber que Alain Badiou estava corretíssimo ao defender que hoje a pior inimiga da democracia é a democracia que ai está , é a ideia de que seguindo-se a lógica e as opções oferecidas pela ordem vigente, é possível progredir. Iludidos por essa falsa esperança, diversos quadros inserem-se na política (para depois se verem emaranhados em posições pateticamente inócuas – Chico Alencar e os demais deputados do PSOL ou Ciro Gomes quando foi deputado ou até mesmo Jair Bolsonaro são exemplos disso) e outros cidadãos comuns participam como podem, sem violar ou transgredir a norma. Badiou vai colocar isso de forma muito simples e completa: o Evento é definido como algo que cria a possibilidade do impossível, sem realizá-lo (em A Hipótese Comunista ele expande sua opinião sobre quais eventos na história seriam Eventos com “e” maiúsculo, entre eles a Comuna de Paris) e o Estado é aquele que define exatamente o que é o possível (e, pela lógica, o impossível – daí que ele afirma que “nenhum processo de verdade política pode, em sua essência própria, ser confundido com as ações históricas do Estado). Dessa forma, em termos “badiouanos”, a violência aqui defendida é algo que gera um Evento.
Por outro lado, é preciso lembrar que o Brasil é um dos países mais miseráveis do mundo, com desigualdade grotesca e desemprego chocante nos dias de hoje. A maior parte da população não se pode dar ao luxo de participar ativamente da política, pois o custo é muito grande. O poeta russo Maiakovski escreveu uma peça cujo nome é O Percevejo. Em determinado momento da peça, uma assembleia reúne-se para discutir um assunto e, na hora de votar, uma moça quer muito levantar sua mão, mostrar sua posição e participar do processo, mas não pode fazer isso, não pode levantar a mão, pois está segurando seus bebês. Do mesmo modo, muitos brasileiros trabalham exaustivamente, são impossibilitados de participar pela condição precária de vida que tem.
Dado que o sistema está falido, surge a pergunta urgente: que fazer então? Porque a violência?
A violência tem o benefício de destruir a ilusão e forçosamente expor a realidade por detrás de qualquer coisa. A violência insere-se naquilo que Lacan chama de Real, tendo o potencial de mostrar o que estava nos outros registros, o Simbólico e o Imaginário e assim, permitindo entender exatamente o que formava aquilo que foi destruído. Uma curtíssima história de David Foster Wallace ilustra bem isso.
“Estes dois jovens peixes estão nadando por aí, e por acaso encontram um peixe mais velho nadando na direção contrária, que acena para eles e diz “Bom dia, meninos, como está a água?” E os dois jovens peixes continuam nadando por um tempo, até que eventualmente um deles olha para o outro e fala: O que diabos é água?”
Literalmente imersos na água, os dois jovens peixes eram incapazes de reconhece-la como tal, incapazes de compreender ela como diferentes daquilo que pensavam. O peixe mais velho é o perfeito sujeito da violência (o uso do sujeito aqui não implica nenhuma teoria do sujeito – para evitar que ele seja rotulado como cartesiano, traumático, pós-traumático e afins).
Benjamin vai colocar : “a violência divina e pura se exerce contra toda a vida, em favor do vivente”. Colocar-se contra a vida é colocar-se contra aquilo que estava posto, o paradigma existente e colocar-se em favor do vivente é, obviamente, colocar-se em favor dos cidadãos. A aversão que se tem hoje a qualquer tipo de violência nada mais é que um produto da ideologia (a aversão que certos filósofos manifestam por ela pode advir da adesão ao pensamento kantiano – e mesmo não-filósofos podem assumir essa posição, ainda que inconscientemente, a partir do impacto de Kant sobre o pensamento como um todo – que indubitavelmente a colocaria como patológica, a partir do momento que não obedece um imperativo moral categórico, já que não visa a criação de uma universalidade e nem limita-se a não usar o outro como fim – a violência direta, fisicamente implicada, não é descartada – evidentemente Kant ignora como a obediência à Lei tem caráter patológico, como bem mostra Lacan, mas isso é assunto para outro momento), da indústria cultural (devo essa colocação a meu amigo Brenno Leite) e a uma espécie de fetichismo que define determinados tipos de violência como aceitáveis e outros como inaceitáveis. É perfeitamente aceitável que alguém morra de fome ou na fila de espera de um hospital, mas a vidraça de um banco não pode ser estilhaçada. Aqui entra um conceito fundamental, o de homo sacer, apresentado mais concreta e completamente por Giorgio Agamben. O homo sacer é aquele cuja a vida não vale absolutamente nada, nem pode ser servido como sacrifício religioso pois não tem esse valor. Favelados, mendigos, pobres, travestis, prostitutas etc. entram todos nessa categoria. A única violência aceitável, para o sistema, aquela sobre o qual ele pode mostrar poder, é sobre essa parte da população que, coincidentemente, é a que está mais longe da política e que mais sofre com as falhas do sistema.
Mas então, o que está sendo de fato proposto, praticamente?
A partir da compreensão do conceito, é preciso agir com ele em mente. A violência, ao destruir a ordem, liberta um potencial criativo e, ao exibir o sistema como um todo, mostra onde ele faliu, onde precisa de correção, se deve ser descartado, desmascara tudo, deixa a realidade crua e a partir disso possibilita que algo seja feito a partir daquele conhecimento.
É preciso destruir inteiramente esse sistema político e descartar a patética ideia de política como gestão de recursos de modo efetivo e austero, reestabelecer a participação popular e recomeçar, redefinir e desmascarar. Diversos tipos de violência permitem isso, tanto a desobediência civil, como a manifestação política, a criação artística (lembrem da Guernica, da Consagração da Primavera e Capitães da Areia) até o vandalismo e a violência física.
Todas essas podem ser formas praticar a violência, a transformação política.
5 comentários em “Um manifesto a favor da violência”
Oi gostaria de saber quem é Julio D’Avila que escreveu esse texto sobre violência. Vi que não é um dos colunistas do blog… Obrigada
Arq. Me Laura Machado Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional – PROPUR-UFRGS http://sustentabilidadeurbana.blogspot.com/
Olá, eu sou Julio d’Avila, realmente não sou escritor do blog. Caso queria se comunicar comigo, o e-mail é juliomastre@gmail.com
“É preciso destruir inteiramente esse sistema político e descartar a patética ideia de política como gestão de recursos de modo efetivo e austero, reestabelecer a participação popular e recomeçar, redefinir e desmascarar. Diversos tipos de violência permitem isso, tanto a DESOBEDIÊNCIA CIVIL, como a manifestação política, a criação artística (lembrem da Guernica, da Consagração da Primavera e Capitães da Areia) até o VANDALISMO e a VIOLÊNCIA FÍSICA”
Me pergunto se a melhor saída não seria pensar em novas formas de organização, de sociabilidade política, diversas das já experimentadas (violentas)? Claro que isso exigiria um processo intelectual criativo e ativo, tempo, e vontade… A outra opção seria a revolução imediata, nos moldes já conhecidos, falha, violenta e com risco de repetição das experiências trágicas do passado.
O pensar e colocar em prática essas novas formas de organização é exatamente o que o texto propõe. A questão é que a criação, enquanto amparada e articulada no plano político vigente, está forçosamente limitada. Eu falei sobre isso neste outro texto: https://18.118.106.12/2017/09/25/o-dever-de-ser-inominavel/, especificamente aqui: “Exemplos não faltam para mostrar que a esquerda hoje (se é que pode ser chamada de esquerda), está longe de pensar algo dessa natureza, já que está tomada pela onda do politicamente correto e, mesmo a esquerda que não se identifica com essas políticas, está convencida de que seu papel deve ser o de conciliar, de ceder algo aqui e ali para, no final, atingir o “máximo que o sistema permite”. A falha nesse pensamento é que ele já está restringido e limitado, submetido à lógica do sistema (como coloca Badiou: “o maior erro que cometemos hoje é pensar que a democracia pode ser salva com mais democracia”, isto é, com mais democracia do modo com ela é apresentada a nós hoje). A orientação, o eixo de articulação da esquerda, precisa ser radical.”