A psicanálise é cisnormativa? Palavra política, ética da fala e a questão do patológico

Por Pedro Ambra, via Periodicus

O artigo tem por objetivo discutir o estatuto dado pela psicanálise a experiências de gênero não inteligíveis, demonstrando que, ao considerar o inconsciente, a relação entre sexo e gênero mostra-se necessariamente refratária a qualquer tipo de normatividade. A partir da reconstrução da história política do termo heterossexual, apresentaremos uma analogia ao tipo de mecanismo crítico em jogo na utilização do termo cisgênero. Após uma discussão sobre o lugar da retórica da subversão dentro da comunidade psicanalítica, sublinharemos como a clínica promove a passagem a uma ética da fala, na qual os apegos identitários normativos são postos em questão. Ao prescindir da oposição corrente entre o normal e o patológico, a psicanálise questiona a dicotomia entre trans e cis a partir da ideia de que a inadequação a um corpo sexuado é constitutiva de todos os seres falantes.


No fim das contas, eu sou um histérico perfeito, ou seja, sem sintoma, exceto de tempos em tempos. – Jacques Lacan [1]

As palavras mais agressivas e, portanto, as mais perigosas nas línguas do mundo devem ser encontradas na asserção EU SOU. – Donald Winnicott [2]

– O senhor mesmo disse um dia que era psicótico. (Plateia)

– Sim, enfim, eu tento ser o menos possível! Mas eu não posso dizer que isso me sirva. Se eu fosse mais psicótico, eu provavelmente seria um melhor analista. – Jacques Lacan [3]

A escolha de Foucault

Palavras são políticas. Não propriamente em sua natureza, mas em seu uso, em sua relação com outras palavras e, eventualmente, em sua subversão. Assim, nunca é demais lembrar de suas origens. É relativamente conhecida a passagem na qual Michel Foucault demonstra seu argumento referente à invenção da homossexualidade: antes do século XIX, o conjunto de práticas e usos dos corpos que, após esse período, foi imputado ao ―homossexual‖ não formava uma identidade propriamente dita, mas uma infração penal:

É preciso não esquecer que a categoria psicológica, psiquiátrica e médica da homossexualidade se constituiu no dia em que foi caracterizada — o famoso artigo de Westphal em 1870, sobre as “sensações sexuais contrárias” pode servir como data de nascimento — menos como um tipo de relações sexuais do que como uma certa qualidade da sensibilidade sexual, uma certa maneira de interverter, em si mesmo, o masculino e o feminino. A homossexualidade apareceu como uma das figuras da sexualidade quando foi reduzida, da prática da sodomia, a uma espécie de androgenia interior, um hermafroditismo da alma. O sodomita era um relapso, agora o homossexual é uma espécie. (FOUCAULT, 1976 p. 42, grifo nosso. Trad. modificada)

É sobre a escolha de tal data de nascimento que gostaríamos de nos debruçar para dar início à nossa argumentação. Lembremos que o interesse de Foucault nesse momento de sua experiência intelectual era negritar o caráter médico-legal do controle, produção e circulação de saberes sobre a sexualidade, assim sendo o artigo de Westphal cairia como uma luva em sua demonstração. Não fosse o fato, já sublinhado por Davis (p. 244, 2010), de que Westphal se não cita nem uma única vez a homossexualidade em seu artigo. Mais ainda, o texto em questão aborda algo que hoje se aproximaria muito mais de sofrimentos relativos a experiências trans:

Tenho uma grande tendência para vestir roupas de mulher, chego mesmo a ficar infeliz por causa disso e penso ‗Por que você não é igual às outras pessoas?‘ […] O ser feminino tem sido para mim um verdadeiro tormento. […] Quando tento suprimi-lo, sinto uma angústia precisa, até que eu consiga satisfazê-lo. (WESTPHAL, 1869, p. 84). [4]

Para Tobin (2015, p. 22), ao considerar que o nascimento da homossexualidade é exclusivamente médico e patologizado, há mais do que apenas uma ignorância de Foucault em jogo. Ainda que o autor francês pudesse não conhecer os escritos de Kertbeny, Westphal faz diversas referências a Karl Heinrich Ulrichs, considerado o primeiro ativista de causas LGBTTQI por lutar pela reforma sexual já em meados do século XIX. No entanto, para os interesses de Foucault foi esse o texto que pôde servir de data natalícia para a homossexualidade. Mas haveria outra?

Recentemente recuperado pela historiografia queer, Karl-Maria Kertbeny, nascido em 1824, na cidade de Viena, teria sido aquele que cunhou o termo homossexual, o que nos serve aqui, sobretudo, se pensarmos o contexto de sua gênese. Kertbeny não era um médico, ou sexólogo, mas um tradutor. Grande parte de sua vida foi dedicada à difusão de obras e da cultura húngaras e, tendo trabalhado também como editor, tinha como intuito difundir as obras escritas em alemão e em húngaro, podendo essa ser considerada sua biografia ―oficial‖ (TAKÁCS, 2004, p. 29).

No entanto, sob o manto do anonimato, escreveu, em 1869, diversos panfletos que versavam sobre a descriminalização da homossexualidade – que a partir daquele momento havia encontrado uma nomeação própria, distinta de outras com forte carga moral como ―sodomia‖, ―vício terrível‖, ―crime contra a natureza‖, ―degenerado‖, etc. É preciso sublinhar que Kertbeny (1869) não faz um recurso extensivo à ideia de inversão para abordar o tema (o que se tornaria comum no final do século XIX, como atesta o uso que Freud faz do termo), tampouco se fia à ideia de uma sexualidade ―normal‖ em contraposição à homossexualidade. Pelo contrário, é ele quem cria no mesmo movimento a noção de heterossexualidade, justamente para demonstrar tratar-se de expressões distintas da pulsão [5]. Mais ainda, Kertbeny faz um curioso movimento no qual coloca a heterossexualidade como uma expressão ainda mais ―perigosa‖ que a homossexualidade (TAKÁCS, 2004, p. 30) Assim, diferentemente da argumentação foucaultiana, notemos aqui que o nascimento tanto da homossexualidade quanto da heterossexualidade tem um berço de libertação política e não médico-legal.

Bem entendido, esse viés do significante desaparecerá durante quase um século, tendo sido apropriado pela sexologia para seus fins biopolíticos. Contudo, é a invenção e sobrevivência da noção de heterossexual que nos interessa aqui, na medida em que problematiza o que até então era tomado como natural e evidente. O ato de nomear o discurso dominante da sexualidade como distinto de um natural, de um universal silencioso é um ato político por excelência, pois dar um nome é confrontar o sujeito com a impossibilidade de uma suposição imaginária compartilhada e, portanto, leva necessariamente a um questionamento sobre sua posição no discurso do Outro. [6] Dito de outra maneira, nós humanos quase sempre acreditamos que falamos e agimos no mundo a partir de uma perspectiva externa e universal. Mas quando alguém dá um nome à nossa posição, percebemos que ela pode ser apenas uma entre muitas e passamos a nos enxergar mais como objetos de um discurso do que como agentes neutros. É o que acontece, por exemplo, quando o movimento negro se esforça para fazer a população branca perceber que tem privilégios: as reações são quase sempre de um incômodo, que vem da dificuldade que uma pessoa que está identificada silenciosamente a um discurso dominante enfrenta ao se deparar com a nomeação dessa posição.

Fuck the cistem

É precisamente esse tipo de problemática que está em questão com o recém-criado e ainda pouco conhecido termo cisgênero. Cis é o prefixo latino oposto a trans, significando ―do mesmo lado‖. Por exemplo, a antiga Província Cisplatina foi assim chamada pelo então Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves para sublinhar o fato de que aquela região o pertencia, pois estava ―desse lado do Rio da Prata‖. Tal nomeação não foi suficiente, no entanto, para garantir a região, que alcançou sua independência e mudou seu nome para República Oriental do Uruguay, se afastando de uma nomeação que atestava sua submissão. Cisgênero [7] pode assim ser definido em termos gerais como aquele ou aquela cuja identidade de gênero corresponde ao sexo que lhe foi atribuído no nascimento. Françoise Dolto, Cássia Eller, Simone de Beauvoir, Elton John e Anderson Silva são exemplo de pessoas cis, ao passo que Roberta Close, Lea T, João Nery e Thamy Miranda são exemplos de pessoas trans. Sublinhemos aqui que se trata em termos psicanalíticos de uma diferença na conformidade de uma identificação ao corpo e não às modalidades de escolhas objetais: há pessoas cis que são homo, hetero e bissexuais na mesma medida em que pessoas trans podem igualmente ser homo, hetero e bissexuais. Assim sendo, para nossos propósitos, podemos definir cisnormatividade como a malha discursiva que marginaliza expressões de gênero trans, ao supor que as vivências cis seriam mais ―saudáveis‖, ―naturais‖ ou simplesmente ―normais‖. O trágico recorde que o Brasil sustenta como o país com o maior número de crimes contra pessoas trans (AL JAZEERA, 2015) pode ser considerado fruto de uma racionalidade cisnormativa [8]. Mas o que a psicanálise tem a ver com isso?

Uma parte da psicanálise parece ter já se distanciado de uma abordagem que patologiza a homossexualidade, lhe atribuindo uma visada que a caracterizaria como um quadro diagnóstico específico – tendo, portanto, uma etiologia, uma semiologia e um tratamento correspondentes. [9] Aqui é necessário fazer um parêntese: referir-se à ―psicanálise‖ como um conjunto fechado de saberes e práticas homogêneos é tão impreciso quanto referir-se ao espectro transgênero como uma ―entidade psicológica‖ única. Entre um analista bioniano didata cujo preço de uma única sessão pode chegar a um salário mínimo e uma lacaniana que optou por fazer uma formação independente inserida no contexto da luta antimanicomial há tantas diferenças quanto, por exemplo, entre uma travesti subalternizada em situação de rua e um transhomem misógino que conduz caminhões no Alaska. [10] Derrida lembra que é preciso ao pontuar que ―a‖ psicanálise enquanto tal não existe, mas antes uma multiplicidade heterogênea de discursos (1996, p. 34). Por esse motivo é necessário que eu me posicione frente a tal quadro, sublinhado que se tratará aqui do desenvolvimento de uma ideia pautada, por um lado, por como compreendo a prática clínica e, por outro, em uma posição de interpretação de alguns textos psicanalíticos, em especial de Freud e Lacan. É evidente que há muitas psicanalistas que declaradamente consideram a transexualidade uma patologia, mas isso não quer dizer que elas falem por toda a psicanálise. É nesse contexto que podemos agora armar a pergunta que norteará o artigo: a psicanálise, enquanto conjunto de saberes e uma prática, pode se excluir de um contexto cisnormativo mais amplo? As analistas têm operadores teóricos e técnicos para empreender uma análise fora de um horizonte cis, na qual a transgeneridade é considerada, a priori, como uma questão, ao passo que a cisgeneridade é magistral e silenciosamente ignorada, posto que sinônimo de normalidade?

Nós, os profanos? Comunidade analítica e clínica

A psicanálise no Brasil vive um momento histórico bastante peculiar. A despeito das numerosas críticas feitas contra a psicanálise – que vão desde sua suposta a-cientificidade [11], passando pelo seu caráter elitista e necessariamente burguês [12] até sua concepção silenciosa de uma sexualidade heterocentrada, patologizante e normativa [13] – os consultórios estão cheios, novos postos universitários em psicanálise são criados, publicações não param de surgir. Somos contemplados por editais do governo em um dia, acusados de charlatanismo no outro. Imagino haver muitas explicações para tal quadro, mas para nossos propósitos nos basearemos na hipótese de que a psicanálise é não-toda subversiva. O que isso quer dizer?

Desde seus primórdios, a psicanálise se descreve a si mesma como um saber subversivo. O que não quer dizer que ela não seja. Mas sublinhemos o fato de que boa parte da estratégia de instalação da psicanálise na cultura se dá a partir de um discurso no qual ela se coloca contra a norma. Descrever-se como uma terceira revolução copernicana no caso de Freud e a sustentação da chamada excomunhão da IPA como o mito fundador do lacanismo [14] são apenas dois exemplos de uma estratégia discursiva que supõe uma analogia entre o que se passa na clínica e o lugar do saber psicanalítico no mundo. Explico-me: em um tratamento o que está em jogo é descentrar o sujeito de um conjunto de crenças que ele ou ela tem tanto sobre si quanto sobre o mundo ao seu redor. Ao proporcionar um percurso dessa natureza a partir do inconsciente – e, portanto, sem nenhum tipo de direcionamento ou controle possíveis – a análise operaria uma subversão do sujeito a partir da dialética do desejo, para recuperar os termos do conhecido texto de Lacan (1960, p. 807). No entanto, isso não significa dizer que a psicanálise enquanto saber e até mesmo como prática social seja necessariamente subversiva. O caso Amilcar Lobo (KYRILLOS NETO & CARVALHO CAMPO, 2015), a chamada operação de salvamento da psicanálise na Alemanha nazista (ROUDINESCO & PLON, p. 12) e a simples história das cissiparidades das escolas psicanalíticas demonstram como, no que diz respeito à norma, não há analogia entre a contingência clínica e a Realpolitik da psicanálise. Somos agentes discursivos bem menos profanos do que gostaríamos de crer.

De toda forma, a ideia dominante da subversão entre analistas é de tal maneira difundida que muitas vezes impede que possamos criticar o caráter conservador de determinadas passagens de nossas autoras canônicas sem que isso implique numa (suposta) desvalorização completa do saber analítico. Um exemplo claro de tal crença na subversão radical da psicanálise pode ser visto no mal-entendido improdutivo que impera nos debates com o feminismo e com as teorias de gênero. Se os últimos mantêm com a psicanálise uma relação suficientemente ambígua, utilizando alguns de seus conceitos, mas criticando e subvertendo outros; a psicanálise por sua vez tem uma grande dificuldade em receber essas críticas justamente porque não consegue realizar um movimento simples de autocrítica, sublinhando que alguns de nossos discursos estão, simplesmente, equivocados. [15] Esse é, no entanto, um conjunto de discussões que podem ser circunscritas enquanto modalidades de inserção do psicanalista frente à comunidade analítica ou, mais do que isso, em que medida pode de fato o analista ―alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época‖ (LACAN, 1953, p. 322).

Estamos aqui em um nível de discussão sobre o papel do analista no contexto público, o que é um tema sobremaneira espinhoso e complexo, mas que nos serve sobretudo para desdobrarmos a questão em outra direção: em que medida, então, pode-se praticar a esperada abstinência analítica se suas posturas podem estar imersas em uma cisnormatividade? Dito de outra forma, como lidar com os possíveis preconceitos do psicanalista no contexto de um tratamento? Para nossos propósitos, cumpre notar apenas que há uma disparidade necessária e irredutível entre as posições políticas das analistas e suas práticas clínicas, uma vez que para escutar determinado sofrimento é preciso se descolar de qualquer tipo de ideia prévia que se tenha sobre o que é narrado no contexto de uma análise. Assim sendo, mesmo um analista com posições cisnormativas não deverá impô-las a analisantes trans, uma vez que suas intervenções, seu manejo e, enfim, sua função analista deverá operar a partir do inconsciente e não de seu conjunto de convicções, o que a psicanálise costuma chamar de ―eu‖ ou ―ego‖. É nesse sentido que podemos compreender a passagem na qual Lacan critica a contratransferência, a colocando fora do campo da análise: ―a contratransferência nada mais é do que a função do ego do analista, o que chamei a soma dos preconceitos do analista‖ (LACAN, 1953-1954, p. 33, grifo nosso). Portanto, onde há ego, contratransferência e preconceito não há análise possível, já que aí se escuta um determinado sofrimento a partir da régua do eu do próprio analista e não do (seu) inconsciente. De toda a forma, resta a questão: pode, ainda sim, o inconsciente ser cisnormativo? Ou seja, o sujeito da psicanálise é construído a partir de uma conformidade entre corpo e identidade?

Retomando a questão do saber psicanalítico e sua subversão, mesmo se entendermos a clínica como um locus que solapa qualquer horizonte normativo, dado que dá espaço ao contingente que advém do inconsciente, isso não implica que a psicanálise seja subversiva enquanto um saber entre outros. Desde Foucault sabemos que todo saber está emaranhado em um jogo de poder e – mais do que isso – que gera dispositivos próprios. Se durante mais de meio século a psicanálise foi o saber ao qual socialmente se endereçavam as questões relativas à sexualidade – o que a dotava, portanto, de certo exercício de poder –, nas últimas décadas e em especial nos últimos anos tal monopólio parece estar se descentrando. O crescimento no contexto universitário dos Gender e Queer Studies, bem como a hipótese cada vez mais difundida relativa aos saberes situados (HARAWAY, 1988) e a organização política dos movimentos de ―minorias‖ sexuais, que passam a produzir e circular saberes próprios, fez com que a psicanálise perdesse terreno em tal debate. Frente a tal quadro, as respostas das psicanalistas podem ser divididas em três grupos.

Um primeiro denuncia tais saberes como frutos de uma cultura da permissividade generalizada, na qual não mais operaria a ―Lei do Pai‖ e enxergam a contemporaneidade como algo próximo de um abismo apocalítico (perverso ou psicótico), acreditando que a psicanálise deve lutar contra uma cultura de ―apagamento da diferença sexual‖. Um segundo, que por vezes se mistura com o primeiro, sublinha o fato de que a psicanálise é uma clínica e não teria nada a ver com tais ―questões sociais‖, necessariamente imaginárias. Supondo uma indistinção entre o analista fora de dentro do contexto clínico, entende que a melhor postura do psicanalista é a abstinência total, caso contrário, correr-se-ia o risco de uma ―sociologização da psicanálise‖ (sic.). Um terceiro – que de maneira geral é mais próximo à universidade – reconhece a relevância de outros saberes não só para a teoria mas para a prática analítica e busca ―traduzir‖ alguns conceitos, tensionando os limites de tais importações conceituais.

O que gostaríamos de sublinhar é que, ainda que sensivelmente distintas, todas essas modalidades de respostas visam o mesmo efeito: a construção de um saber (puro, clínico ou fronteiriço) que tem como efeito possível a garantia um certo estatuto ao psicanalista. E desse jogo, cujo pivô é o que Pierre Bourdieu denominou ―capital simbólico‖ (1977), não há como a psicanálise se pretender excluída. Na medida em que Freud (1912) a define como um tratamento, mas igualmente como uma pesquisa, a psicanálise não pode ser uma atividade que só se dá no campo do íntimo, do privado e, por essa razão, está tão submetida às regras dos jogos políticos e de poder quanto qualquer outro discurso, produzindo necessariamente normas que lhe são próprias. A subversão radical que se verifica na clínica não imuniza o saber psicanalítico de ter como objetivo a instauração e manutenção de um discurso e de um exercício de poder que lhe são próprios e por esse motivo é preciso dizer que ela é não-toda subversiva: para garantir sua sobrevivência [16] enquanto práxis que dá espaço para o contingente, o inesperado e para inversões que rompem com o existente, a psicanálise, no que diz respeito ao debate público, precisa se firmar enquanto saber a partir de uma lógica do sentido e da fixidez de posições. [17] Um dos impasses da transmissão da psicanálise é justamente o fato de que não há discurso analítico fora da análise. [18] Assim, se por um lado há uma política radical de desconstrução na clínica, por outro o saber psicanalítico precisa de condições mínimas de inteligibilidade, caso contrário desembocaria necessariamente em uma discursividade mística, na qual o saber seria suposto apenas aos iniciados. No entanto, a posição de muitos trabalhos em psicanálise é simplesmente não assumir tal tensão, defendendo que a (boa) psicanálise seria, tanto em sua prática quanto na produção de seus conceitos, necessária e inteiramente subversiva. O resultado de tal postura frente a outros saberes e a fenômenos sociais por vezes acaba por concluir que a psicanálise seria o único saber suficientemente subversivo a se contrapor a uma sociedade alienada. Assim, de maneira discreta e insidiosa, instala-se um discurso aparentemente crítico, mas cuja visada é simplesmente submeter todos os fenômenos ao crivo e à terminologia psicanalítica. Travestida de subversão, a estratégia de implantação da norma psicanalítica parece ser se instaurar sem se assumir como tal.

Mas além do lugar dos preconceitos do analista e da comunidade analítica, há ainda dois outros campos nos quais temos que analisar a relação entre a psicanálise e a normatividade. Um deles é a clínica.

A psicanálise caracteriza-se, entre outros, pela sua regra fundamental: a chamada ―associação livre‖, na qual o sujeito é convidado a falar o que lhe vier à cabeça, sem nenhum tipo de direcionamento ou censura – tanto do próprio, quando do analista. É assim esperado do analista que possa fazer suas intervenções visando, majoritariamente, as chamadas formações do inconsciente (sonhos, atos falhos, sintomas etc.).

Em outras palavras, a análise é um trabalho que pode ser descrito precisamente como um paradoxo em relação à norma. Por um lado, a entrada em análise é aquele momento no qual o indivíduo se dá conta que não é mais senhor em sua própria morada (FREUD, 1917) e, portanto, há uma quebra da norma do que era sua vida até então; mas por outro supõe um sentido em seu sintoma, supõe que há uma lógica interna em si, que há uma espécie de norma em seu sofrer, ainda que desconhecida. Essa espécie de ―norma inconsciente‖ tem entre as psicanalistas muitas versões diferentes: repetição, real, sinthoma, fantasia. Ainda que hajam importantes diferenças entre elas, trata-se de maneiras pelas quais o sujeito acaba sempre ―voltando ao mesmo lugar‖, ou como alguém acaba interpretando o mundo e a si mesmo sempre com a mesma lente, ou ainda algo que é extremamente singular e característico de uma determinada pessoa.

E é nesse sentido que, do ponto de vista estritamente clínico, não é possível que a psicanálise seja cisnormativa pelo simples motivo de que o inconsciente, no âmbito da análise, é a instância que implode qualquer possibilidade de norma compartilhada, visto que instaura sua própria norma, que é absolutamente singular e que, já em Freud, não reconhece distinção entre o masculino e o feminino, o que é um desdobramento do princípio geral de que no inconsciente não há reconhecimento da contradição (FREUD, 1925). Dito de outra forma, não há cisnormatividade possível no inconsciente, pois cada sujeito vive e se aliena – seja em sua transgeneridade, seja em sua cisgeneridade – de um modo distinto. E é esse modo de se desconhecer que interessa ao trabalho analítico, não propriamente seu objeto. Por mais estranho que possa parecer, a imagem que uma pessoa tem de si é mais um entrave, do que um interesse, pois entende-se que sua verdade está em sua modalidade de sofrimento – que paradoxalmente chamamos de gozo – e nas formas pelas quais o sujeito, sem se dar conta, se fixa em determinadas delas. A essa posição podemos dar o nome de ética da fala, na medida em que se convida o/a analisante a desprender-se das certezas que algumas palavras carregam em nome do inesperado trazido pela fala. É claro que – tanto na política quanto na vida – as palavras em si portam verdades e, mais do que isso, produzem sujeitos distintos. Basta pensar que da mesma forma que os efeitos de significação que ―aidético‖ e ―pessoa convivendo com HIV‖ são diferentes, os de ―mulher normal‖ e ―mulher cis‖ também o são. No entanto, o que a psicanálise aporta de novo é que uma identificação radical a uma palavra tem efeitos iatrogênicos, posto que uma palavra só tem sentido a partir de seu contexto e que, no fundo, é vazia. Por esse motivo o ―homossexual‖ político de Kertbeny muito rapidamente se converteu em uma unidade psicopatológica, pois o que se transmite são as enunciações hegemônicas, não os enunciados em si.

É por isso que para o analista pouco deve importar a maneira como o indivíduo se enxerga e se nomeia a si mesmo e por esse motivo cis ou trans não são questões evidentes. Mesmo porque, pares de oposições simples como esses são muito rapidamente em um tratamento analítico colocados em suspenso, posto que aí nos interessa muito mais os impasses de tal catalogação binária. O que será de fato relevante numa análise é antes a posição que o sujeito ocupa no discurso do Outro e de que maneira ele ou ela está alienada nesse lugar. Assim sendo, a questão do gênero numa análise não passa pela sua conformidade ou não ao corpo biológico, mas sim por desenovelar as fantasias que protegem os sujeitos do real sexual, que não é biológico, mas libidinal. [19] E esse exercício só é possível a partir da associação livre, prática que suspende qualquer regime de inteligibilidade prévio tendo em vista que denuncia o dito como um suporte imaginário de um sentido fixo compartilhado entre duas pessoas, transformando-o em um dizer. [20] Essa dimensão performativa do ato de fala, como aponta Derrida (1972), implode qualquer referência sólida à autoria permitindo que no caminhar de uma análise o sujeito passe a se enxergar muito mais como uma personagem de um romance policial do que como seu autor. A passagem da queixa para a demanda é justamente quando a pergunta deixa de ser ―quem é o assassino‖ (a queixa) e passa a ser ―quem é o autor‖ (o sujeito).

Assim, uma ética da fala sublinha que é em um contexto narrativo, que esteja atento não só ao sentido que atribuímos às palavras, mas, principalmente, aos paradoxos que dele decorrem, que o que supomos como verdade deve advir. Caso contrário, nos alienamos ao acreditar muito cegamente na coincidência do sentido que damos a uma palavra com aquele que supomos que outras pessoas dela tenham. Essa me parece ser um pouco a problemática ao redor da adoção do Q (que por vezes denomina Queer e, por vezes, questionando) na sigla LGBTTQI: como identitarizar uma categoria que questiona justamente a identidade? A saída de Judith Butler – tão herdeira da subversão dos atos de discurso de J. L. Austin quanto Derrida – é sublinhar o caráter performativo das identidades, que são antes precipitados de reiterações aos quais supomos verdades (BUTLER, 1990). Não muito distante de tal postura, a psicanálise aposta que a fala em associação livre (por não estar em um regime de interlocução, já que a análise não é nem um diálogo nem um monólogo) faz o sujeito começar por reconhecer a existência de certas normas de seus comportamentos e sofrimentos que antes eram tidas como ―normais‖. Esse primeiro tempo de uma análise é uma operação em alguma medida análoga à invenção do ―cisgênero‖: denunciar uma norma implica em reconhecê-la, em tirá-la de uma malha discursiva de uma naturalização invisibilizante. No entanto, a psicanálise toma essa operação apenas como um primeiro tempo. A esse primeiro instante de ver, ela adiciona mais dois: um tempo de compreender e um momento de concluir (LACAN, 1954, p. 197). O simples reconhecimento e denúncia de uma submissão a uma norma silenciosa não é suficiente para abstrair-se dela, pois sempre que tocamos em uma palavra, tocamos em uma rede: não basta assim trocar uma norma/palavra, pois ela rapidamente será substituída por outra em um procedimento conhecido como metonímia. Não é o caso aqui de desenvolver quais os mecanismos que a psicanálise lança mão para sair desse impasse, mas simplesmente pontuar que, ao distanciamento crítico de uma norma, deve-se seguir uma certa desconfiança, que é dupla: deve-se tanto questionar-se sobre o estatuto da estranha familiaridade dessa norma que organiza suas formas de sofrimento (que é ao mesmo tempo do sujeito, mas trabalha contra ele), quanto poder compreender que sempre estamos não-todas submetidas a ela. Dito de outra forma, a função da análise é fazer o sujeito se levar menos a sério, na medida em que, nas palavras que Freud imputa a uma analisante (1908), nos tornamos neuróticas porque desejamos ser melhores do que somos capazes de ser. No modelo freudiano, portanto, uma análise tem como resultado apenas reduzir a chamada ―miséria neurótica‖ a uma infelicidade comum. Mas aqui cabe a pergunta: pode a infelicidade comum não ser neurótica (ou psicótica, ou perversa)? Para a psicanálise, não.

Patologia, eu quero uma pra viver

Ideologia e patologia gozam de certa proximidade formal: se uma é, no sentido marxiano clássico, um discurso que mantém a dominação e, portanto, a assimetria de bens e liberdades por meio da alienação, a outra pode ser compreendida como o estado de desequilíbrio frente à saúde, que impede que um organismo viva a plenitude de suas funções, donde a clássica definição ―saúde é a ausência de doença‖. No entanto, essa modalidade de descrição dos fenômenos dá a entender que, no fundo, haveria de fato um estado não patológico, assim como um Estado não ideológico. E esse horizonte normativo é o que deveria guiar seja o tratamento, seja a revolução.

Um dos motivos pelos quais Foucault abre mão da noção de ideologia é precisamente porque ela se constitui em oposição ao que seria uma ―verdade‖ (CASTRO, 2004 p. 278). Inversamente – mas com o mesmo objetivo – me parece que a psicanálise teria aberto mão da noção de saúde por não acreditar que exista um estado não-patológico. Uma das formas de compreender o aforisma lacaniano ―não há metalinguagem‖ é partir da constatação que não existe instância externa a partir da qual se possa escapar das armadilhas da linguagem. Estamos imersos e somos produtos de um desencontro entre significante e significado, que só se juntam contingentemente em uma operação que escamoteia o fato de que todo sentido é antes um efeito e não uma essência. Nesse sentido, para as psicanalistas, neurose, psicose e perversão não são patologias no sentido clássico do termo, mas antes modalidades gerais de lida com a linguagem e seus impasses, chamadas então de estruturas. Eis mais um campo que merece uma discussão a respeito do estatuto da normatividade em psicanálise, sua teoria do sujeito.

George Canguilhem foi quem mais elegantemente demonstrou que a relação entre saúde e doença não é quantitativa ou estatística, mas só pode ser pensada a partir da relação com de um ser vivo específico com seu meio. Para o autor, a normalidade é a capacidade de criar novas normas frente a determinadas situações, ao passo que o patológico é o estado de fixação em uma norma específica. ―O vivo doente é normalizado em condições de existência definidas e ele perdeu a capacidade normativa, a capacidade de instituir outras normas em outras condições‖ (CANGUILHEM, 1966, p. 119-120).

Lembremos que sua discussão não é exclusivamente biológica, mas parte das discussões psiquiátricas da época para repensar a relação entre o normal e o patológico como um todo. Nesse sentido, o que é o meio ambiente para os organismos vivos, para o ser falante inclui também a dimensão social e cultural. Para Franco (2009), em Canguilhem

os critérios de partilha entre o normal e o patológico, no âmbito do psiquismo, são dados somente na relação entre o indivíduo e um determinado meio cultural, incluindo nessa expressão os valores técnicos, econômicos, morais e sociais. Correlativamente, a normatividade psíquica é a capacidade de não se fixar em normas culturais, capacidade de instaurar outros valores em certo meio cultural. (FRANCO, p. 93, 2009)

Normatividade é assim para Canguilhem a capacidade de produzir novas normas, característica do indivíduo saudável. Mas, voltando à psicanálise, a questão se complexifica na medida em que doença e normalidade não são conceitos psicanalíticos e nem podem vir a sê-lo, uma vez que, do ponto de vista rigorosamente psíquico, a saúde não existe. Não há normalidade para a psicanálise visto que todo sujeito falante está submetido a uma lei singular que condiciona sua capacidade normativa. As possibilidades de cada sujeito criar novas formas de vida são muito mais restritas do que se imagina, posto que o inconsciente não é um depositário de ideias esquecidas, ou um oceano de indeterminação, mas uma máquina com uma lógica própria.

Aos diferentes mecanismos – e não aos diferentes produtos, i.e. sintomas – de nossas máquinas desejantes, a psicanálise dá o nome de estruturas clínicas, sendo seus dois maiores grupos o das neuroses e das psicoses. [21] Assim, seu sistema nosográfico não é sintomatológico, como, por exemplo, o Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais, DSM. Na última e quinta edição de tal manual, a chamada ―Disforia de Gênero‖ (antigo Transtorno de Identidade de Gênero) descreve um quadro psicopatológico de inadequação do indivíduo em relação ao seu sexo biológico (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013 p. 451). Ou seja, o manual entende as diferentes manifestações psicológicas de pessoas trans como sintomas individuais que em seu conjunto formam o quadro. Para a psicanálise, tal procedimento não faz sentido por, no mínimo, três motivos distintos.

Ver uma discussão aprofundada em The Frozen Countenance of the Perversions, de Tim Dean, e Questionando a teoria psicanalítica das perversões, de Thamy Ayouch. Sobre uma discussão mais ampla sobre a questão da diagnóstica estrutural em psicanálise e seus impasses, ver Estrutura e personalidade na neurose: da metapsicologia do sintoma à narrativa do sofrimento, de Christian Ingo Lenz Dunker, e a tese de doutoramento de Daniele Rosa Sanches, Discursos diagnósticos pós-lacanianos: dos fundamentos em psiquiatria às teses sobre um novo sujeito.

O primeiro é metodológico: o diagnóstico em psicanálise é feito, sob transferência, não a partir de sintomas, mas por meio de uma analítica das relações que o sujeito estabelece com o Outro. Por exemplo, um delírio não é um signo suficiente para diagnosticar uma psicose, já que mais importante do que uma manifestação sintomática é o seu lugar na economia libidinal e na rede de significantes que aquele sujeito se encontra inserido. Se o delírio tem uma articulação com a fantasia, se é endereçado ao grande Outro por meio do recalque e se o sujeito tem condições de em algum momento narrá-lo a partir de uma hermenêutica da suspeita, é provável que estejamos no campo da neurose; ao passo que se o delírio tiver como função uma suplência à organização do eu ideal, no qual haja uma sobreposição entre o grande Outro e o pequeno outro, é provável tratar-se de uma psicose. Em outras palavras, o diagnóstico em psicanálise não é semântico, ou seja, feito a partir das palavras que o sujeito escolhe para (d)escrever seu drama, mas sintático: é a maneira como se articulam e se narram experiências no interior de um tratamento que dará a forma privilegiada de sofrimento daquela pessoa. Assim sendo, transgeneridade não pode ser um diagnóstico em si, uma vez que ela pode ocupar diversas funções nos dramas narrativos de cada um dos sujeitos que de alguma forma se identificam com ela. Para algumas analisantes, ser trans pode ser o personagem principal de seus romances, enquanto para outras, é um capítulo específico, ou mesmo uma expressão que se repete. Trans pode ser um adjetivo, um substantivo, um conectivo necessário que liga pensamentos, um ponto de interrogação ou uma vírgula. Exatamente como a cisgeneridade, a transgeneridade para alguns sujeitos ocupa um papel central assim como para outros, não.

Uma segunda diferença em relação ao diagnóstico psiquiátrico reside no seu horizonte de tratamento. Se a psiquiatria visa aplacar os sintomas, a psicanálise visa dar voz a eles compreendendo que não se trata de formações estrangeiras, alheias à pessoa, mas antes carregam (parte de) sua verdade. A psicanálise oferece, assim, um tratamento, mas nunca uma cura. É por isso que não há ―cura trans‖ assim como não há ―cura cis‖: se o sofrimento da pessoa está ligado a alguma dessas duas categorias, a psicanálise pode ajudar o sujeito a questionar o lugar que ele dá a sua identidade sexual, mas de maneira alguma direcioná-lo.

Por fim, uma terceira diferença em relação à psiquiatria, e talvez a mais importante para nossos propósitos, reside no seguinte fato: a não adequação ao sexo que nos é designado, a partir do momento em que consideramos o inconsciente, não é uma característica exclusiva das pessoas trans, mas de todo e qualquer ser falante. O fato de alguém acreditar com todas as forças ser uma pessoa cisgênero e ter uma postura declaradamente transfóbica pode indicar muito mais uma resistência ao caráter não-todo do seu gênero do que uma suposta unidade da sua identidade. E o mesmo vale para uma pessoa trans que acredita inteiramente identificada com essa nomeação. É claro que nesse caso há uma dimensão política em jogo, uma vez que a afirmação de identidade dá visibilidade e ajuda a construir uma rede de apoio mútuo e resistência. No entanto, no contexto de uma análise, a alienação em uma identidade – qualquer que seja – muito provavelmente será digna de uma desconstrução.

Assim, por mais surpreendente que possa parecer, não apenas no contexto do tratamento, mas em sua própria teoria, a psicanálise denuncia o caráter patológico da cisgeneridade. O complexo de Édipo – entendido como uma gramática oriunda de um processo dialético, a partir da qual uma criança deseja e se identifica a partir da suposição que faz do desejo de quem foi o suporte de seu grande Outro – é um exemplo de como uma identidade sexuada é construída com base em uma alienação contingencial, que se constrói face a uma negação do biológico, a partir do libidinal e do social. Tal ideia é igualmente válida para o complexo de castração, o complexo do desmame e o complexo de intrusão – conceitos hoje em dia um tanto empoeirados, mas trabalhados em um dos primeiros textos escritos por Lacan Os complexos familiares na formação do indivíduo (1938), no qual o apelo ao caráter exógeno e cultural da formação do indivíduo é reiteradas vezes defendido.

A interpretação delas [relações psicológicas] tem então de ser esclarecida pelos dados comparativos da etnografia, da história, do direito e da estatística social. […] É na ordem original de realidade constituída pelas relações sociais que convém compreender a família humana. (p. 30-33, trad. modificada)

Outra teoria conhecida entre os lacanianos, o estádio do espelho, é igualmente uma demonstração de como a ideia de um eu fechado que se reconhece numa identidade e em um nome próprio é relativamente tardia no desenvolvimento e construída em cima de um engodo, de uma estabilidade entre o eu, a imagem de seu corpo e de uma nomeação que vem do Outro. ―Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem.‖ (LACAN, 1949, p. 97) Anos mais tarde, em seu seminário sobre a teoria do eu, Lacan apontará que:

Freud diz em mil, dois mil lugares de seus escritos, que o eu é a soma das identificações do sujeito, com tudo o que possa comportar de radicalmente contingente. Se me permitirem colocar em imagens, o eu é como a superposição dos diferentes sobretudos tomados emprestados a isso que eu chamaria de bricabraque de sua loja de acessórios. (LACAN, 1954-1955, p. 198, trad. modificada)

Ou seja, o ego, seja ele cis ou trans, é constituído sem um núcleo duro de verdade, trata-se sempre de uma bricolagem de identificações, é sempre aquilo que de melhor o sujeito pôde fazer com a série de identificações que dão a ilusão de uma personalidade fechada e exclusivamente idêntica a si. Mais ainda, se lembrarmos que uma das definições mais centrais que Freud dá ao ego é aquela de uma projeção de uma superfície corporal (FREUD, 1923), fica claro que essa projeção é já o signo de um trabalho psíquico frente ao corporal e não simplesmente uma dedução simétrica.

Por fim, é inegável que a psicanálise produziu saberes e práticas que podem levar a fins cisnormativos e até mesmo transfóbicos, que devem ser criticados. No entanto, assim como num tratamento analítico, a denúncia dos sentidos preestabelecidos e supostamente fixos é apenas um primeiro passo, ao qual deve se seguir uma aposta na liberdade em relação ao uso dos saberes, prazeres e palavras. Butler (2015), em sua visita ao Brasil, sublinhou que o central em relação à psicanálise é antes a leitura situada que podemos fazer dela. Disse, muito rigorosamente, que podemos pensar, por exemplo, em uma pulsão queer em Freud, dado seu caráter necessariamente contingencial e não exclusivo de objeto.

Assim, a psicanálise é diametralmente oposta e paradoxalmente solidária aos movimentos sociais que denunciam a cisnormatividade: se esses lutam para mostrar que as transidentidades são expressões normais de diferentes subjetividades e não doenças, a psicanálise insiste que toda construção identitária é patológica. O divã é o único lugar onde o homem branco cis hetero é patologizado, na medida em que ali a norma que ele silenciosamente segue sem se dar conta será colocada em questão. É aí que reside a igualdade radical que a psicanálise supõe em todos os sujeitos falantes: estamos sempre e todas igualmente aprisionadas nas modalidades patológicas das ficções que construímos sobre nós mesmas. A diferença reside no fato de que muitas vezes as narrativas de pessoas trans se reduzem às tragédias que uma sociedade violenta e transfóbica lhes oferece, o que não é o caso para pessoas cis. Essas possuem possibilidades mais diversas de alienação, posto que a sociedade confere inteligibilidade ao seu gênero e, portanto, não as reduz a ele. Mas, em ambos os casos, por apostar que para além das nomeações redutoras há sempre um sujeito desejante, a psicanálise denuncia que qualquer normatividade que não seja singular é, antes de mais nada, uma defesa contra o real. A cisnormatividade é efeito de uma crença na conformidade do eu que é incompatível com a psicanálise.


Pedro Ambra é psicanalista, doutorando em Psicologia Social pela USP e em Psychanalyse et Psychopathologie pela Université Paris 7. Membro do LATESFIP: Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. E-mail: pedro.ambra@gmail.com

[1] Sessão do seminário L’insu que sait de l’une-bévues’aile à mourre de 14 Décembre 1976. Tradução nossa.

[2] The Child in the Family Group, em Home Is Where We Start From: Essays by a psychoanalyst. Tradução nossa.

[3] Ouverture de la section clinique. Ornicar ?, n° 9, 1977, pp 7-14. Tradução nossa.

[4] Westphal cita falas de um/a paciente, nomeado/a como apenas como N.

[5] Kertbeny utiliza o vocábulo Trieb e não Instinkt.

[6] Bem entendido, o termo heterossexual hoje já se encontra suficientemente difundido para que haja amarras imaginárias que anulem tal efeito. Interessa aqui sublinhar a operação que à época tal nomeação representou.

[7] Julia Serano, bióloga e transativista, teria sido a primeira a utilizar a expressão cisgênero, em inglês, no início dos anos 2000. O sexólogo Volkmar Sigusch já havia empregado o equivalente alemão zissexuell, no final dos anos 1990. De toda forma, cumpre notar que, inversamente ao que se passou com a propagação do termo heterossexual, sua difusão se deu graças ao uso de grupos políticos, ligados a causas LGBTTQI.

[8] Curiosamente (ou não) o Brasil é também o país que mais se interessa por pornografia envolvendo travestis e transexuais, tanto em números absolutos quanto proporcionalmente. Em Superinteressante, 19/02/2016.

[9] Para nomear apenas algumas publicações que discutem o tema fora de um quadro patológico, ver Psicanálise e homossexualidades: teoria, clínica e biopolítica, de Thamy Ayouch; As homossexualidades na psicanálise – na história de sua despatologização, organizado por Antonio Quinet e Marco Antônio Coutinho Jorge e Homosexuality and psychoanalysis, de Tim Dean e Christopher Lane.

[10] Um dos grandes problemas na maior parte das produções psicanalíticas sobre as experiências trans é considera-las como homogêneas, sendo que se trata de um espectro diverso. Lacan e seus seguidores, por exemplo, incorrem nessa imprudência ao aproximar necessariamente transexualidade e psicose.

[11] Para uma discussão qualificada sobre o assunto ver a dissertação de mestrado de Paulo Antonio de Campos Beer Questões e tensões entre psicanálise e ciência: considerações sobre validação e Pourquoi la Psychanalyse est une science de Guénaël Visentini.

[12] Para uma discussão qualificada sobre o assunto ver Elizabeth Ann Danto. Freud’s free clinics: Psychoanalysis & social justice, os diversos trabalhos de Miriam Rosa Debieux, bem como o trabalho do grupo ―Margens Clínicas‖ que oferece atendimento psicanalítico a vítimas de violência policial.

[13] Para uma discussão qualificada sobre o assunto ver Psicanálise e transexualismo – desconstruindo gêneros e patologias com Judith Butler, de Patrícia Porchat, e Qu’est-ce que le genre, de Laurie Laufer e Florence Rochefort.

[14] Sobre esse assunto, recomendamos o La non-excommunication de Jacques Lacan: quand la psychanalyse a perdu Spinoza, de José Attal

[15] A maneira pela qual as teorias feministas são concebidas parece ser diferente – e talvez até contrária – do modo de produção do saber psicanalítico: se aquelas se dão a partir dos impasses das ondas anteriores, apontando os limites de suas antecessoras, na psicanálise (ao menos aquela de inspiração francesa) parece estar em jogo um horizonte no qual é preciso que uma determinada teoria seja o mais radicalmente freudiana possível. Tal postura torna a crítica na psicanálise um exercício muito delicado e dá espaço para perigosos dogmatismos.

[16] A retórica da sobrevivência é recorrente no discurso analítico. A escolha de Jung como ―príncipe herdeiro‖, por exemplo, tinha essa preocupação, visando desvincular a psicanálise da imagem de uma ―ciência judaica‖. Nesse sentido, é preciso lembrar igualmente a já citada operação de ―Salvamento da Psicanálise‖, na qual, no contexto de ascensão nazista, a Sociedade Psicanalítica Alemã (DPG) capitaneada por Ernest Jones, expulsou seus membros judeus. No lacanismo, o uso feito da ―excomunhão‖ apoia-se também em uma lógica de sobrevivência, explicitada pelo próprio Lacan (que curiosamente se refere a si em terceira pessoa) na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola: ―Encontram-se agrupados nela [Escola] por não terem querido através de uma votação aceitar o que esse voto pautaria: a pura e simples sobrevivência de um ensino, o de Lacan.‖ (p. 248). Atualmente, engrossam as fileiras das ameaças à psicanálise as ciências cognitivas, as neurociências, a psicologia e o capitalismo (sic.).

[17] E mesmo a clínica não é sempre e necessariamente o lugar de uma subversão inquestionável. A clínica das psicoses, por exemplo, mostra que por vezes a finalidade de uma análise pode ser justamente a construção de normas básicas, que ponham fim a experiências improdutivas de indeterminação, conforme a expressão de Dunker (2014).

[18] O dispositivo do passe em algumas escolas de psicanálise parece ser uma tentativa de garantir uma espécie de real fora do contexto da análise, supondo que há um núcleo de verdade compartilhável na experiência clínica que imunizaria a comunidade analítica das normas que produz. Talvez por isso seu próprio idealizador o tenha considerado como um fracasso.

[19] Lembremos que no sentido de questionar a primazia do biológico, psicanálise e as teorias de gênero são solidárias.

[20] É curioso notar como uma das justas reivindicações dos movimentos trans é justamente ter um lugar de fala, que não seja usurpado por agentes de discursividades hegemônicas. Nesse sentido, por mais que a clínica tradicional seja individual e (aparentemente) não política, o divã subverte a lógica tradicional da luta pela fala por um protagonismo ad nauseam, que, no limite, leva ao questionamento do lugar que, desapercebidamente, se dá ao Outro em nossa própria fala.

[21] Consagrou-se na segunda metade do século XX a divisão nosológica tripartite ―neurose, psicose e perversão‖. Desconfio, no entanto, que essa última se configure de fato como uma categoria estrutural forte, no mesmo sentido que as duas primeiras.


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