Por Sofia Azevedo
A lacração é uma cultura cheia de armadilhas. Vemos uma gama de variações do “drop the mic”, cuja finalidade é o espetáculo, a reação encadeada dos espectadores que aguardam ansiosamente uma performance vazia e arrebatadora. Nesse caso, a exposição. Uma cultura que deseja que sejam pregadas listas infindáveis de pessoas emudecidas na praça da cidade, sentenciadas à inevitável consequência do apedrejamento moderno: o cancelamento.
Suas representações léxicas variam: a inofensiva “fada sensata”, cuja sensatez forjada se impõe arbitrariamente sobre uma mitologia perigosamente lúdica, incontestável e irrefreável na voz de quem a pronuncia; a sua versão testosterônica de quem “lança a braba”, cuja “brabisse” se sacraliza na voz de quem a enuncia. Apesar de exemplos diferentes no calibre, indicam uma espécie de generalidade da experiência.
Quando pronunciadas – ou melhor, postadas – não sobra espaço para dúvidas. Já sabemos quem está ou não do lado da verdade. É a morte da concessão. A morte dos “mas” e dos “porém”. Trocou-se o “e” pelo “ou’. Todos esperam, no quarto de despejo da internet, o que Antônio Prata chamou de obituário dos cancelados. O rótulo é fatal. O mundo se divide entre lacradores e lacrados. O combustível? Aqueles que aplaudem cegamente o espetáculo mudo. O show acabou, que venha o próximo.
Amordaçados pela certeza do lacre, a razão lacradora, ao se interseccionar com o feminismo, pode trazer efeitos catastróficos e destruidores. Um deles é que os problemas emergenciais da realidade são ofuscados. O brilho do lacre cega as possibilidades de discussão. O combate efetivo do problema, aos poucos, se distancia. Aos conflitos, a muito custo identificados e assumidos, resta a estagnação, permanecendo sem o desdobramento que lhes poderia corresponder.
Quando abri meu Instagram, alguns dias atrás, percebi a reprodução incessante de um texto denunciando a desumanização e objetificação das mulheres que orbitam Dan Bilzerian. Uma breve olhada no seu perfil dispensa qualquer dúvida. Rodeado por corpos seminus, armas de fogo, dinheiro em espécie, somados a uma obsessão curiosa da sua máquina de músculos, Dan sintetiza os símbolos mais invejados de uma masculinidade grotesca.
Após esse movimento virtual, inúmeros casos de violência contra a mulher cometidos por ele foram trazidos à luz. São diversas denúncias que compartilham um fim infelizmente comum: a impunidade. Quem sabe, com a viralização dessas denúncias, alguma justiça possa ser aplicada. Não sei. O que sei é que só conseguimos enxergar as injustiças cometidas uma vez que ele ainda estava lá, uma vez que ele ainda não tinha sido cancelado.
O que questiono aqui é a efetividade do ciberativismo conduzido sob a ótica do cancelamento: selecionar quem representa o pior da masculinidade para projetar tudo o que se mostra como restos de um mundo moralmente elevado. Um mundo que já superou a objetificação e a mercantilização do corpo feminino, e agora caminha de maneira triunfante à purificação moral, condenando à vala comum da história os imorais e pervertidos. Critiquemos a natureza misógina de D.B., mas com muito cuidado para não nos posicionarmos em um lado diametralmente oposto, em um moralismo purificador e exterminador das expressões dissonantes.
Personagens como D.B. passam a ocupar um espaço do qual não são merecedores, e cancelá-los passa a ser mais importante do que discutir possibilidades de combatê-los. Os mecanismos de dominação do corpo da mulher se aperfeiçoam a cada ano e, portanto, as formas de combatê-los exigem maior elaboração. O caráter ginasiano da exposição mostra-se tão frágil e ineficaz diante das complexas ferramentas do neoliberalismo, que o número de seguidores de D.B. aumentou no Instagram após uma onda de posts acusando-o das maiores barbaridades. Vivemos em um sistema que inventa e reinventa formas cada vez mais minuciosas de moldar a subjetividade feminina. Não é possível que nos atenhamos a métodos tão precários e improdutivos.
Condenar seus seguidores não surtiu o efeito esperado. Muito pelo contrário. Mas ainda estamos ao largo do problema central. A educação masculina valoriza a maquinação do corpo, a performance sexual, a apatia emocional e o acúmulo de riquezas, e, nesse sentido, Dan se encaixa perfeitamente com as expectativas de um sistema que estimula o consumo e a competição. Dan não é uma ilha desvirtuada dentro do Shangri-lá da internet. Dan é, infelizmente, a correspondência perfeita de um sistema doente. Apontá-lo como exceção apenas nos exime da responsabilidade de pensar o problema a nível estrutural, limitando-o à ação individual e de baixo alcance. Dar unfollow coloca a questão embaixo do grosso tapete das soluções-fáceis-e-rápidas, onde os cancelados se encontram e brindam à impunidade.
Apesar do cancelamento ser a via mais instintiva e medular de punir alguém, no fim, acaba sendo uma faca de dois gumes. Afinal, a causa também perde. Essa ação orquestrada e ordenada da negação de tudo que vem de D.B., nega também a possibilidade de discussão das consequências de suas práticas condenáveis. Se fosse uma única pessoa, seria muito mais fácil. Quando a gente elege um crápula, acabamos dando de barato para todos os outros.
Milhares iguais a D.B. ostentam armas e objetificam mulheres, mas agora o fazem às escuras. Ainda não chegamos à Pasárgada, não estamos nem perto. Dan nos lembra dessa distância. E deixar de segui-lo, ou cancelá-lo, pode oferecer alguma esperança ilusória de que estamos cada vez mais próximos de alcançá-la. Que, finalmente, limpando os corrompidos, nos aproximaremos de um mundo imaculado com o qual sonhamos.
4 comentários em “O brilho ofuscante da lacração: ponderações sobre o cancelamento de Dan Bilzerian”
Excelentes pontos. Se colocar a questão feminista em um cenário de guerra, em que a vitória é a igualdade de gênero e a punição apropriada com aqueles que merecem, o cancelamento é o equivalente a Napoleão tomando Moscou. Foi show de bola, parecia uma vitória, mas só enfraqueceu os franceses e fortaleceu os russos.
Oi. Você tem toda a razão. Chegamos em um ponto em que a busca por justiça se confunde com uma espécie de “ímpeto justiceiro” catastrófico. O final a gente já sabe… punições, linchamentos e, como você disse, o coincidentemente curioso fortalecimento de outras forças sombrias… rs
Agradeço o comentário!
Boa tarde, Sofia. Estou fazendo um trabalho da faculdade baseado nesse seu artigo. Gostaria de saber mais informações ao seu respeito se possível!
Boa tarde, Sofia. Estou fazendo um trabalho da faculdade baseado nesse seu artigo. Gostaria de saber mais informações ao seu respeito se possível!