Por Emiliano Alessandroni, via Marxismo Oggi, traduzido por Bruno Bianchi
“Se, portanto, estamos de acordo com Hegel em pensar a liberdade não como uma forma vazia, mas como um conteúdo de valor universal, não podemos então deixar de descobrir como, no curso da pandemia do COVID-19, entre os velhos sistemas capitalistas (ver principalmente os Estados Unidos e a Europa) e as experiencias sociais de orientação socialista (vejamos Cuba, China e Vietnã) – embora isso possa parecer um paradoxo aos olhos da supremacia ocidental que identifica “Ocidente” e “democracia” e está habituado a conceber a “liberdade” unicamente como “liberdade do Ocidente” e nunca como “livre do Ocidente” – foi o segundo que defendeu muito mais do que o primeiro, o valor do universalismo e a causa da liberdade.”
A retórica da liberdade em tempos de COVID-19
“Liberdade! Liberdade! Liberdade”. É com este grito, repetido e cadenciado por um veemente aplauso e de um baque rítmico de golpes na mesa, que na Itália, em outubro de 2020, noventa clientes de um restaurante em Pesaro, defenderam a decisão de seu proprietário Umberto Carriera, de violar as medidas anti-COVID impostas pelo Estado e manter aberto o seu local.
“Eles estão zombando de nós”, afirmou o proprietário do restaurante e já proprietário de seis estabelecimentos comerciais, não muito antes de se encontrar com o líder da Liga, Matteo Salvini: “o vírus é uma droga de vírus como os outros… qualquer que seja a decisão tomada pelo governo daqui em diante, os meus restaurantes não irão mais fechar”[1].
Até a data atual, este “vírus como qualquer outro” já matou, apenas na Itália, cerca de 130 mil pessoas.
Mas não parece ser uma questão quantitativa: seja baixo ou alto o número de vítimas, dez mil ou um milhão, a convivência com a morte parece ser um preço que se deveria estar disposto a pagar para defender uma coisa tão elevada e preciosa como a liberdade. Este é pelo menos o significado das palavras pronunciadas pelo Primeiro-Ministro britânico Boris Johnson: “Entre nós há mais contágios do que na Itália porque amamos a liberdade”[2]. Ou seja, o apego à liberdade é entre os ingleses tão forte que eles nunca a deturpariam, a qualquer custo, com medidas restritivas e lockdown de qualquer tipo. Contudo, quando o custo da liberdade começou a subir vertiginosamente e as massas de cadáveres começaram a lotar os necrotérios, foram os próprios ingleses que exigiram ao Primeiro-Ministro Johnson alguma deturpação daquela liberdade que ele tanto havia anunciado[3].
A mesma linha era adotada nos EUA pelo presidente Donald Trump. Pesando contra os governadores que nos estados individuais impuseram medidas restritivas, ele afirmou imediatamente que, aconteça o que acontecer, ele defenderia até o fim a democracia: tão logo o vemos abertamente lado a lado com todos os manifestantes que começaram a marchar nas ruas americanas para protestar contra o lockdown (estamos em maio de 2020): “o grande povo” americano “quer a liberdade”, afirmou celebrando e incitando as manifestações[4]. Naquela época, no entanto, em Nova York, montanhas de cadáveres eram jogados em valas comuns, pois os cemitérios agora estavam tão saturados de caixões que explodiram[5].
Ainda assim, em novembro do mesmo ano, o chefe da Casa Branca e autoproclamado paladino da liberdade reafirmou mais uma vez os seus princípios: “Este governo não lançará nunca qualquer lockdown, sob nenhuma circunstância”[6].
Passados alguns meses, os EUA viram ultrapassar o limiar das 500 mil vítimas, atingindo em pouco tempo cerca de 615 mil mortes: é, como já foi referido, um número de morte, na história dos EUA, superior ao da “primeira, da segunda guerra mundial, da guerra do Vietnã, do 11 de setembro, da guerra do Afeganistão e da guerra do Iraque, juntas”[7].
Mas em sua “luta pela liberdade”, que se torna cada vez mais uma luta contra as medidas antipandêmicas, o presidente americano não está só. Em maio de 2021, no Brasil, o presidente Bolsonaro chegou a recorrer ao exército: e não, como em muitos Estados europeus ou como na China, para fazer cumprir o lockdown, mas ao contrário, para impedi-lo. Lutando contra o confinamento social decretado pelos governadores para prevenir a propagação do coronavírus, Bolsonaro antecipa com estas palavras o envio das forças armadas: “Eu não ordenei fechar nada, o meu exército vai sair às ruas para manter a sua liberdade!”[8].
Até o país sul-americano, que viajava no ritmo de cerca de 4 mil mortes por dia, já passou, como os Estados Unidos, de meio milhão de vítimas, ao ponto que o ex-presidente Lula indicou abertamente Bolsonaro como o “responsável pelo maio genocídio da história do Brasil”[9].
Mas o que é a essa liberdade que parece ser tão cara ao coração, antes mesmo dos anti-vacinas, dos anti-máscaras, e dos anti-visto, para aqueles que, como Bolsonaro, lutaram com todas as suas forças contra o lockdown e as medidas de distanciamento social? Sobre este aspecto, o próprio presidente do Brasil pode ajudar a esclarecer: “Paralisar a economia por causa de 5 mil ou 7 mil pessoas que morrerão pela febre COVID-19 não é realista”, afirmou em março de 2020[10]. É evidente que a liberdade que está em primeiro lugar no coração do líder da extrema direita brasileira é a liberdade do poder econômico. E é precisamente sobre esta prioridade atribuída à “liberdade econômica” sobre o “direito à necessidade extrema” (diria Hegel), isto é, à liberdade do elevado perigo de morte, que são baseadas as suas escolhas políticas e a sua gestão da pandemia.
Vem à mente, na situação que acabamos de descrever, as palavras que o autor da Fenomenologia do Espírito havia pronunciado nas suas Lições sobre filosofia da história: “Quando se evoca a palavra liberdade”, lembra o filósofo alemão, “é preciso sempre prestar atenção para que não sejam, ao invés, interesses privados para aqueles de que estamos falando”[11].
No entanto, esta sobreposição entre a palavra “liberdade” e o “interesse privado” parece ocorrer continuamente no curso da história e parece ter ocorrido, com maior frequência, mesmo no curso desta pandemia. Mais uma vez “Liberdade! Liberdade”, bradaram na Itália os manifestantes contrários ao Green Pass, com uma parte da filosofia que faziam eco: “se forem reprimidas as liberdades individuais por decreto, o que estará em perigo é a democracia”, disse Giorgio Agamben em referência à “certificação verde COVID-19”[12]. E Massimo Cacciari em La Stampa: “Vivemos há mais de vinte anos em um estado de exceção que, de vez em quando, com motivações diversas, que também podem parecer fundadas e razoáveis, condiciona, enfraquece, limita a liberdade”[13].
Mas algumas questões surgem neste ponto: quando as sacrossantas liberdades individuais, defendidas por chefes de Estado, proprietários, homens do povo e filósofos, são realmente livres? E o que significa exatamente liberdade? Esse termo pode coincidir com uma genérica “ausência de restrições”? Para desatar estes nós, me parece que, bem mais do que Agamben ou Cacciari, são mais do que tudo as lições de Hegel que podem vir em nosso socorro.
O que é, então, para Hegel, liberdade?
As lições de Hegel e a liberdade como ausência de restrições
Entretanto, vale a pena tentar compreender o que, em seu julgamento, absolutamente não é (embora muitas vezes e de forma completamente errônea possa ser para nós): liberdade, para Hegel, não é absolutamente o “fazer o que se quer”.
Trata-se, de fato, de uma visão meramente formalista da liberdade, quase como se tal conceito não tivesse algum conteúdo específico ou que o conteúdo específico que volta e meia esta forma presumida assuma seja irrelevante. Assim, “liberdade” pode ser qualquer conteúdo da vontade: quem quer o green pass, quem não o quer, quem quer tratar os doentes nos hospirais com ritos mágicos, quem não o quer fazer, quem quer matar os chineses, quem quer atirar nas balsas dos imigrantes, a liberdade pode ser tudo isso neste ponto… e portanto, nada.
Entretanto, este ponto deve ser mantido firmemente no lugar: a liberdade, para Hegel, não é arbitrária, a liberdade não é absolutamente o “fazer o que se quer”. Aqui está o que ele escrevem em Princípios da filosofia do direito:
“A representação mais comum que se tem da liberdade é o arbítrio… Quando se diz que a Liberdade em geral consiste no ‘poder fazer o que se quer’, uma tal representação só pode ser tomada por falta de educação do pensamento; nela não se encontra nenhum indício do que é a livre vontade em si e por si, o direito, a ética, etc. […]. O arbítrio, ao invés de ser a vontade na sua Verdade, é antes a vontade como contradição […]. O arbítrio, quando se afirma que é a Liberdade, certamente pode ser definido como uma ilusão[14].
E na Estética:
O sujeito, como prisioneiro do singular, dos limitados e mesquinhos interesses de seu desejo, não é livre em si mesmo, pois não se determina segundo a universalidade e racionalidade essenciais de sua vontade, nem é livre em relação ao mundo externo, porque o desejo essencialmente permanece determinado pelas coisas e se refere a elas[15].
A liberdade de um termina onde começa a do outro?
É preciso ter em mente que uma semelhante visão formalista afeta, segundo Hegel, também aquele conceito de liberdade já presente em pensadores como Rousseau, Kant e Fichte e que penetrou de maneira profunda no senso comum de hoje depois da célebre formulação de Martin Luther King: “A minha liberdade termina onde começa a do outro”.
Escreve criticamente Hegel nos Princípios:
Tal definição implica o ponto de vista, difundido sobretudo depois de Rousseau, segundo o qual a base substancial e o termo primeiro do direito [ou da liberdade – E.A.] deve ser a vontade, mas não a vontade como ser-em-si-e-para-si, como racional, deve ser o espírito, mas não como um espírito verdadeiro, mas como indivíduo particular, como vontade do singular em seu arbítrio particular.
De acordo com esse princípio… não há dúvida de que a Razão pode resultar apenas como limitante, e certamente ela é entendida não como Razão imanente, mas simplesmente como um universal externo, formal[16].
É evidente que para Hegel a liberdade não é nem arbitrariedade (ou seja, “fazer o que se quer”), nem a mediação dos arbítrios (ou seja, a mediação dos diferentes “fazer o que queremos”). Para Hegel, a liberdade é um conteúdo que está em sintonia com a racionalidade do mundo e o interesse universal. Livre pode ser definido então como aquele indivíduo que é posto nas condições de desejar para si mesmo aquilo cuja realização constitui ao mesmo tempo uma aquisição universal. E não só isso: não é suficiente a convergência entre o desejo particular e o interesse universal, é necessário que tal convergência seja plena de consciência, de saber, que os homens singulares tomem consciência da coincidência de conteúdo entre o seu desejo subjetivo e o bem do gênero humano.
Quando a liberdade não está carregada de um conteúdo de valor universal, para Hegel não é liberdade, mas arbítrio, interesse particular que fala em nome da liberdade, mas que da liberdade possui e difunde apenas a ilusão.
No Prefácio aos Princípios, o célebre filósofo citou alguns versos do Fausto de Goethe, aquela obra monumental que mostra o confronto entre Fausto e Mefistófeles, ou entre a humanidade e os seus instintos mais baixos e primordiais:
“Ele também despreza o intelecto e a ciência
Talentos supremos do homem
Então você se entregou ao diabo
E terá que afundar”.
Espero que esta lição hegeliana possa ajudar a todos nós a nos orientarmos melhor nas disputas desses dias (ou melhor, desses meses) que trazem tanto à tona a palavra “liberdade” ao ponto de tê-la transformada, como diria Laclau, em um “significante vazio”. Talvez também graças a Hegel tenhamos mais cedo ou mais tarde a possibilidade, neste significante, de enchê-lo novamente de conteúdo; apesar de todos os Agamben e os Cacciari do caso, que continuam implicitamente a postular a liberdade como uma mera ausência de restrições, como um sarcófago vazio dentro do qual seria passível colocar qualquer conteúdo da vontade.
A liberdade nos tempos do COVID-19 entre socialismo e capitalismo
Se, portanto, estamos de acordo com Hegel em pensar a liberdade não como uma forma vazia, mas como um conteúdo de valor universal, não podemos então deixar de descobrir como, no curso da pandemia do COVID-19, entre os velhos sistemas capitalistas (ver principalmente os Estados Unidos e a Europa) e as experiencias sociais de orientação socialista (vejamos Cuba, China e Vietnã) – embora isso possa parecer um paradoxo aos olhos da supremacia ocidental que identifica “Ocidente” e “democracia” e está habituado a conceber a “liberdade” unicamente como “liberdade do Ocidente” e nunca como “livre do Ocidente” – foi o segundo que defendeu muito mais do que o primeiro, o valor do universalismo e a causa da liberdade. Nos primeiros, de fato, a liberdade do poder econômico (a liberdade particularista) minou a liberdade de existência e o direito à vida (liberdade universal), muito mais do que nos segundos.
Isso pode ser constatado não apenas do ponto de vista das ciências matemáticas (isto é, confrontando o número de mortes entre uns e outros, ou o compromisso e a capacidade com que respectivamente defenderam o direito à vida dentro do seu próprio domínio), mas também do ponto de vista do espírito geral e dos comportamentos gradualmente assumidos em escala mundial. Desde o início, a República Popular Chinesa exortou todos os países do mundo a deixar de lado os ressentimentos políticos, a cooperar, a coordenar todos juntos na luta contra o COVID-19: “A epidemia mostra claramente que o vírus não conhece fronteiras nacionais, não distingue entre Norte, Sul, Leste ou Oeste. Nenhum país pode enfrenta-lo sozinho, apenas unindo as forças é possível vencer esse desafio”[17], afirmou, por exemplo, o embaixador chines na Itália. Logo as palavras foram seguidas dos fatos: somente para nossa península a República Popular enviou “31 toneladas de materiais, incluindo equipamentos de aparelhos respiratórios, roupas, máscaras… alguns medicamentos antivírus junto com sangue e plasma”[18]. Na região de Marche, na província de Ancona, a China construiu um hospital de campanha com 50 médicos, 80 enfermeiros e 30 técnicos vindos de Wuhan, prontos a arriscar suas vidas, em um momento em que nem havia vacinas disponíveis, a fim de trazer sua riqueza de experiência e ajudar a Itália a cuidar dos pacientes da COVID[19]. Por outro lado, numerosas forças-tarefas de saúde foram enviadas por Pequim a nosso país, para nos apoiar em um momento de grande dificuldade[20]. A primeira delas (enquanto o governo italiano mostrava toda a sua fraqueza no confronto da Confederação e do poder econômico, permitindo que fábricas e centros de produção permanecessem abertos apesar das greves e dos protestos dos trabalhadores[21]), mostrou forte preocupação com a frouxidão demonstrada por nossa liderança política perante uma tal emergência: “É necessário fazer mais para conter a difusão da epidemia. Na Lombardia, as medidas tomadas não são rífidas o bastante: é necessário interromper a atividade econômica e a circulação”, afirmou a Cruz Vermelha chinesa na Itália; “Nas ruas ainda se encontram muitas pessoas”, alertou em Roma um professor chines de medicina pulmonar e vice-diretor do Instituto Nacional de Doenças Parasitárias; infelizmente, “não são tomadas outras medidas”, afirmou de maneira peremptória Qiu Yunqing (especialista chines em doenças infecciosas no topo da delegação de treze especialistas que visitaram hospitais no norte da Itália), é necessário um “distanciamento social ‘rígido’ com todas as portas fechadas: fábricas, escritórios, comércio. Tudo fechado”[22].
Seria tolice e malicioso, uma espécie de atitude de “Perigo Amarelo” ou de “protocolos dos Sábios de Mao Zedong” acreditar que por trás destas sugestões havia um desejo maligno chinês de atacar a liberdade da população italiana, em vez de um claro desejo de defende-la.
Também ao Vietnã, por sua vez, não faltou espírito de colaboração e solidariedade, enviando a Malpensa uma carga de três toneladas de materiais hospitalar[23]. E mesmo a pequena Cuba enviou os seus próprios médicos e enfermeiros especialistas em doenças infecciosas, então candidatos ao Nobel da Paz, com o objetivo de dar a sua própria contribuição[24].
Nenhum desses países sonhou, mesmo remotamente, em lançar um ataque econômico, com embargos e sanções, contra qualquer Estado ocidental ou oriental.
Como tem se comportado, em vez, deste ponto de vista, o mundo capitalista? Em março de 2021, a Itália, junto com a Grã-Bretanha, França e Holanda, expresseu em Vienna, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, o voto contra uma resolução condenando os embargos unilaterais[25].
Os Estados Unidos, por sua vez, depois de mais de 60 anos de bloqueio econômico comercial e de verdadeiras atividades terroristas contra Cuba[26], intensificou sob a administração Trump a guerra econômica contra a ilha, lançando 243 medidas coercitivas, então confirmadas e aumentadas pelo presidente Biden[27], apesar da condenação já expressa da ONU[28].
Em 4 de junho de 2020, Steve Bannon, um homem da extrema direita e ex-líder estrategista da Casa Branca, fundou em Nova York, junto com Guo Wengui, bilionário e dissidente chinês já acusado de corrupção, o New Federal State of China, uma organização que se propõe explicitamente o objetivo de derrubar o PCC e o governo de Pequim. O Presidente Trump, por sua vez, lança sanções contra a China[29], inclusive estas, como aquelas contra Cuba, aumentadas e endurecidas pelo governo Biden[30]. Esta continuidade da política externa entre os dois presidentes americanos se manifesta também na maneira como ambos alimentaram, sem nenhuma evidência concreta e em absoluto desprezo pelas demonstrações dos estudos científicos mais fidedignos[31], as teses de conspiração sobre a origem artificial do COVID-19[32].
Enquanto isso, a República Popular da China, não só defendeu a Organização Mundial da Saúde (OMS) dos ataques do governo Trump, que já havia preparado a saída dos EUA e a interrupção do financiamento, mas também dos recentes conflitos que, no que diz respeito à gestão da vacinação, surgiram entre esta e o bloco dos Estados capitalistas ocidentais. A este respeito, é preciso lembrar que a China tem apoiado assiduamente, junto com Cuba e Vietnã, a proposta liderada da Índia e da África do Sul à Organização Mundial do Comércio de suspender as patentes de vacinas para permitir ao Terceiro Mundo aquelas coberturas massivas que de outra forma, dada sua condição de escassez econômica, não poderia garantir. Mas, mais uma vez, a vida parece, para os Estados/nações de orientação capitalista, não valer tanto quanto os lucros das grandes empresas farmacêuticas às quais destinaram precisamente os fundos públicos para o desenvolvimento de vacinas: assim, com os votos contrários dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e dos países da União Europeia, a proposta da Índia e da África do Sul é rejeitada. “Sem pagamentos, sem vacinas”: apesar de algumas declarações improvisadas do presidente Biden, que apenas verbalmente mostrou dúvidas, esta permaneceu a decisão inalterada do Ocidente capitalista. E é neste ponto que surge um novo confronto com a Organização Mundial da Saúde. Esta última, de fato, acredita que para combater de maneira mais adequada a disseminação do COVID-19 e evitar uma proliferação de variantes que irão gradativamente tornar as vacinas desenvolvidas até agora menos eficazes, é mais importante garantir a todo o planeta, pelo menos, a cobertura de uma primeira dose do que em alguns países a da terceira. Aceita por todo o mundo economicamente atrasado e pelos Estados de orientação socialista, esta recomendação da OMS foi abruptamente rejeitada pelos Estados ocidentais de orientação capitalista, para os quais parece mais importante garantir a terceira doce aos Übermenschen do bloco euro-atlântico, do que a primeira dose aos Untermenschen dos Estados subdesenvolvidos[33]. A República Popular da China, por outro lado, além de ter apoiado assiduamente o pedido da Índia e da África do Sul de suspensão de patentes de vacinas, além de já ter vacinado mais de um quinto da população mundial[34] e limitando os contágios através de controle sanitários rigorosos e da introdução do passaporte vacinal[35], além de já ter oferecido a sua contribuição em termos de médicos, vacinas e material hospitalar a países em dificuldade, depois de ter já oferecido 110 milhões de doses ao programa Covax (uma operação lançada pelas Nações Unidas para facilitar a aquisição de vacinas aos países mais pobres), compromete-se a doar 2 bilhões de ampolas ao resto do mundo até o final de 2021 e 100 milhões de dólares ao citado programa. A China, disse o presidente Xi Jinping, “continuará a fazer todo o possível para ajudar os países em desenvolvimento a enfrentar a pandemia” e continuará a trabalhar para “fortalecer a cooperação internacional em vacinas e promover a sua distribuição”[36].
É claro, entre os países que lideram o bloco euro-atlântico, devemos incluir também o caso de Israel, que teve um número relativamente baixo de mortes e que garantiu o “direito à vida” de sua própria população por meio da vacinação em massa imediata. Mas tal direito, neste Estado, foi pensado em termos realmente universais? Depois de receber uma chuva de críticas por não apoiar as populações dos territórios ocupados, Israel firmou um acordo com a Autoridade Nacional Palestina (ANP) para o fornecimento de 1,2 milhões de doses Pfizer. Esta última, porém, logo foi forçada a cancelar o acordo e devolver as doses, assim que percebeu que Israel havia enviado cargas de frascos com prazo de validade iminente. Em suma, enquanto o governo de Tel Aviv já havia realizado em sua própria população 60% da vacinação, os palestinos, com os hospitais já saturados de enfermos, continuavam abaixo do 1%[37], e se deparavam com a trágica possibilidade de escolher entre morrer (direta ou indiretamente) de COVID-19 ou inocular nas veias fármacos vencidos[38]. Mais uma vez foi a República Popular da China que veio em socorro, garantindo ao povo palestino 200 mil doses de vacinas e um milhão de dólares a ser gastos em assistência sanitária[39].
Ao final desse quadro, podemos chegar a uma conclusão entre 1) os países capitalistas liderados por governos liberais-conservadores; 2) aquele mundo dos No-Vax, No-Mask, No-Pass e No-Lockdown que, apesar de suas diferenças internas, de alguma forma legitimou as suas escolhas; 3) os países liderados por governos liberais democráticos (também subordinados às grandes potências econômicas e incapazes de pensar na liberdade substancial e no direito à vida em termos autenticamente universais) e 4) os países de orientação socialista liderados por partidos comunistas (Cuba, China e Vietnã em primeiro lugar), são estes últimos que, apesar das suas contradições, tem manifestado uma maior propensão universalista, um maior espírito cooperativo e uma inclinação mais profunda para a defesa da liberdade em escala mundial. Por outro lado, são os mesmos sujeitos políticos que mostraram com este último termo, “liberdade”, não pode ser desvinculado de um conteúdo de valor universal, daquela “luta de classes” e daquela “luta pelo reconhecimento” (de memória marxiana e hegeliana), que querem ser o veículo de um universalismo cada vez mais concreto. Devemos nos lembrar disso toda vez que em um discurso ouvimos a palavra “liberdade” usada como um significante vazio, como uma bandeira retórica com a qual adornamos e obscurecemos em busca de meros interesses particulares.
Notas:
[1] D. Falcioni, Pesaro, ristorante aperto nonostante il Dpcm. Il titolare: “Non chiudo, dovranno arrestarmi”, Fanpage, 26-10-2020.
[2] Covid, Johnson: “Più contagi dell’Italia perché amiamo la libertà”, Adnkronos, 23-09-2020.
[3] T. Di Giovannandrea, Londra, epidemiologi britannici contro le decisioni di Boris Johnson, RaiNews, 14-03-2020.
[4] Nonostante la ‘strage’ Trump attacca ancora il lockdown: “I democratici lo usano per scopi politici”, Globalist, 11-05-2020.
[5] Cfr. Coronavirus, immagini shock dagli Usa: fosse comuni a New York, TgCom24, 10-04-2020.
[6] Coronavirus, Trump: «Questa amministrazione non varerà mai un lockdown», Corriere della Sera, 14-11-2020.
[7] Covid. Allarme Usa, studio CDC: la variante Delta più pericolosa, si diffonde come la varicella, RaiNews, 30-07-2021.
[8] Covid: Bolsonaro, mio esercito pronto a difendere la libertà, ANSA, 14-05-2021.
[9] “Covid, Bolsonaro responsabile del più grande genocidio nella storia del Brasile”: l’attacco di Lula, Il Fatto Quotidiano, 26-03-2021.
[10] U. Mazzantini, Bolsonaro: «I veri uomini non prendono il coronavirus». L’opposizione: «Il Brasile non può essere distrutto da Bolsonaro», Greenreport, 31-03-2020.
[11] Hegel, Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte, trad. it., Lezioni sulla filosofia della storia, a cura di Giovanni Bonacina e Livio Sichirollo, Laterza, Bari 2003, p. 350.
[12] G. Agamben, “Non discutiamo le vaccinazioni ma l’uso politico del Green Pass”, La Stampa, 30-07-2021.
[13] M. Cacciari, Ecco perché dico no al Green Pass e alla logica del sorvegliare e punire, La Stampa, 28-07-2021.
[14] Hegel, Grundlinien, W 7, 65 § 15, tr. it. p. 103.
[15] Hegel, Vorlesungen über die Ästhetik, W 13, 58, tr. it., Estetica, Einaudi, Torino 1997, vol. I, p. 46.
[16] Hegel, Grundlinien, W 7, 79-80 § 29, tr. it., p. 117.
[17] M.G. Napolitano, Ambasciatore cinese: “Gli aiuti? Siamo amici, vogliamo salvare vite”, Adnkronos, 05-04-2020.
[18] Coronavirus, l’aiuto cinese all’Italia: “Materiale, esperti e i risultati del lavoro di migliaia di medici”, La Stampa, 13-03-2020.
[19] Un ospedale e medici cinesi a Ancona, ANSA, 25-03-2020.
[20] Coronavirus, la Cina invia in Italia il terzo team di medici, RaiNews, 25-03-2020.
[21] Emergenza coronavirus, la rabbia nelle fabbriche aperte. Scioperi spontanei: “Non siamo carne da macello”, La Repubblica, 12-03-2020.
[22] Coronavirus, l’infettivologo cinese: “Per fermare il contagio bisogna chiudere tutto. Servono più tutele per i vostri medici”, Il Fatto Quotidiano, 30-03-2020.
[23] COVID-19: Arrivato carico di aiuti sanitari dal Vietnam, Ministero degli Affari Esteri e della Cooperazione Internazionale, 17-04-2020 https://www.esteri.it/mae/it/sala_stampa/archivionotizie/approfondimenti/covid-19-arrivato-scarico-di-aiuti-sanitari-dal-vietnam.html.
[24] Coronavirus, Cuba in soccorso dell’Italia: 52 medici e infermieri in arrivo a Crema, La Repubblica, 21-03-2020; Coronavirus: Cuba invia seconda brigata medica in Italia, Sicurezza Internazionale 14-04-2020; L. Landoni, Coronavirus, i medici cubani al lavoro in Lombardia candidati al Nobel per la Pace, La Repubblica, 28-09-2020.
[25] Polemiche per la decisione dell’Italia di votare “no” all’Onu alla condanna delle sanzioni Usa su Cuba, La Repubblica, 30-03-2021.
[26] Cfr. S. Lamrani (a cura di), Il terrorismo degli Stati Uniti contro Cuba. Il caso dei Cinque: una storia inquietante censurata dai media, Sperling & Kupfer, Segrate 2006.
[27] Cuba, Biden conferma le misure di Trump, Adnkronos, 16-07-2021; Usa, Biden: “Le nuove sanzioni a Cuba sono solo all’inizio”, Tgcom24, 23-07-2021.
[28] D. Battistessa, Embargo Cuba, Onu: “Il blocco economico Usa vìola i diritti umani”, Osservatorio Diritti, 16-07-2021.
[29] Trump firma le sanzioni alla Cina per Hong Kong, ANSA, 14-07-2020.
[30] Biden estende bando Trump su società cinesi, 59 aziende nella black list, Il Sole 24 Ore, 03-06-202; I Bremmer, Perché Biden mostra i muscoli con la Cina (più di Trump), Corriere della Sera, 08-07-2021.
[31] Cfr. Kristian G. Andersen, Andrew Rambaut, W. Ian Lipkin, Edward C. Holmes & Robert F. Garry, The proximal origin of SARS-CoV-2, Nature Medicine, n. 26, 2020 https://www.nature.com/articles/s41591-020-0820-9; L’Oms, ‘il virus è di origine naturale’, ANSA, 01-05-2020; L’Oms: “I dati portano all’ipotesi di un’origine animale del virus”, ANSA 10-02-2021.
[32] G. Belardelli, Biden e Facebook riabilitano la teoria dell’origine artificiale del Covid, HuffPost, 27-05-2021. Refutar a bizarra tese sobre o virus liberado de um laboratório de Wuham também é um fato que qualquer epidemiologista deve estar atento: o epicentro de uma infecção viral não coincide necessariamente com o local de origem do vírus, que ao invés disso poderia ser múltiplo, como os estudos sobre a presença da COVID já na Itália em setembro de 2019. Cfr. Covid in Italia già da settembre 2019, lo dice uno studio dell’Istituto dei tumori di Milano, ANSA, 15-11-2020 e outros que já detectaram a presença de pacientes de COVID nos EUA em dezembro e na França em novembro de 2019: ‘Covid já estava nos EUA em dezembro de 2019’: o estudo federal sobre um milhão de voluntários, Il Fatto Quotidiano, 15-06-2021; Coronavirus, “primeiros casos na França já em novembro”, Adnkronos, 07-05-2020.
[33] Cfr. G. Cadalanu, Schiaffo dei Paesi ricchi all’Oms: “Prima la terza dose a noi, poi si vedrà”, La Repubblica 06-08-2021.
[34] Vaccini: Cina, somministrate oltre 1,5 miliardi di dosi, ANSA, 23-07-2021.
[35] R. Ippoliti, La Cina lancia il passaporto vaccinale, è il primo paese al mondo, La Stampa, 09-03-2021.
[36] Vaccini: Xi, Cina darà 2 miliardi di dosi entro fine 2021, ANSA 05-08-2021.
[37] R. Bongiorni, Medio Oriente: israeliani vaccinati al 60%, palestinesi sotto l’1%, Il Sole 24 Ore, 03-04-2021; La denuncia contro Israele: vaccini solo ai coloni, esclusi palestinesi, Huffpost, 03-01-2021.
[38] Palestinesi annullano accordo su vaccini con Israele. Annuncio da Ramallah: la data di scadenza è troppo ravvicinata, ANSA, 18-06-2021.
[39] La Cina promette vaccini e un milione di dollari ai palestinesi, Sicurezza Internazionale, 22-05-2021.