O fogo de palha da economia estadunidense

Por Michael Roberts, via Michael Roberts blog, traduzido por Ana Carolina de Paula e Isabela Ferreira Gesser

Na semana passada [escrito em 21.03.21], o Sistema de Reserva Federal dos EUA (FED) elevou suas previsões de crescimento para a economia americana deste ano e do seguinte. As autoridades do FED agora calculam que a economia dos Estados Unidos terá uma expansão em termos reais de 6,5%, o ritmo mais rápido desde 1984, poucos anos após a desaceleração entre 80 a 82. Este é um aumento significativo em relação à previsão anterior. Além disso, a taxa de desemprego deve cair para apenas 4,5% no final do ano, enquanto a taxa de inflação sobe para 2,2%, acima da meta oficial definida pelo FED.

 

Porcentagem
 

Variável

Mediana
2021 2022 2023 A longo prazo
Mudança real no PIB 6,5 3,3 2,2 1,8
Projeção para dezembro 4,2 3,2 2,4 1,8
Taxa de desemprego 4,5 3,9 3,5 4,0
Projeção para dezembro 5,0 4,2 3,7 4,1
Inflação de despesas de consumo pessoal 2,4 2,0 2,1 2,0
Projeção para dezembro 1,8 1,9 2,0 2,0
Núcleo da indfação de despesas de consumo pessoal 2,2 2,0 2,1
Projeção para dezembro 1,8 1,9 2,0
Memorando: Projeção de políticas apropriadas
Taxa de fundos federais 0,1 0,1 0,1 2,5
Projeção para dezembro 0,1 0,1 0,1 2,5

Impulsionando esse novo otimismo sobre o crescimento há a rápida implementação de vacinas para proteger os estadunidenses da COVID-19, além do enorme pacote de estímulo fiscal apresentado ao Congresso. A maioria dos principais analistas espera que tal pacote adicione pelo menos 1% ao crescimento econômico e reduza o desemprego.

Mas o presidente do FED, Jay Powell, deixou claro que o Sistema de Reserva Federal não tinha intenção de aumentar sua meta de taxa de juros até 2023, no mínimo, mesmo que a inflação se acelerasse. Powell quer ver a taxa de desemprego cair para 3,5% e a inflação em torno de 2% e, até que isso aconteça, ele toleraria que a economia superaquecesse, pois avalia que qualquer aumento da inflação seria transitório.

A implicação da visão de Powell era que a economia dos EUA resultaria em um “fogo de palha” com o estímulo fiscal e com a demanda reprimida de consumidores com economias prontas para restaurantes, lazer, viagens, etc., uma vez que as restrições da pandemia foram afrouxadas. Mas, como todos sabem, o fogo na palha resulta em uma queima rápida. E então vêm as cinzas. É com isso que Powell se preocupa: que após o clarão do fogo dos contracheques do governo e das refeições nos restaurantes, a economia dos Estados Unidos retornará à trajetória de baixo crescimento de antes da crise pandêmica.

A preocupação de Powell também se dá pela potencial recaída na luta contra o vírus. Ele espera que o apoio fiscal do estímulo comece a diminuir no próximo ano e teme que o mercado de trabalho continue com dificuldades. Portanto, espera que o “núcleo da inflação” (excluindo os preços de alimentos e energia) caia para 2% no próximo ano e 2,1% em 2023, logo, nenhuma espiral inflacionária.

EUA: Empregos não-agrícolas

É relevante que a previsão do FED para o crescimento de longo prazo seja de apenas 1,8% ao ano, o que praticamente não é superior ao crescimento real médio do PIB de 1,7% desde o fim da Grande Recessão e antes da pandemia.

Taxa de crescimento anual real do PIB

Crescimento anual real do PIB

Taxa de crescimento médio

Isso implica que a avaliação do FED sobre a economia dos EUA vai cair de volta à taxa de crescimento experimentada na Longa Depressão desde 2009 e o “fogo de palha” não é nada além disso.

A implicância disso é que, ao contrário da visão dos keynesianos, o efeito multiplicador do estímulo fiscal logo se dissipará. Portanto, a economia dos EUA dependerá não da demanda reprimida dos consumidores, mas da disposição e capacidade do setor capitalista investir. É o investimento, não a demanda do consumidor, que importará na sustentação de qualquer recuperação significativa; não um fogo rápido, mas nova energia na forma de nova mais-valia (parafraseando o termo de Marx com relação a lucros).

Os investidores financeiros estão menos convencidos da proposta de Powell. Afinal de contas, conseguir que a economia dos EUA atinja uma taxa de desemprego de 3,5% e uma inflação de 2% só foi alcançada duas vezes desde 1960! Portanto, as “expectativas de inflação” entre os investidores têm aumentado, sugerindo uma taxa de inflação de 2,6% em cinco anos. Como resultado, os rendimentos dos títulos do governo dos EUA também aumentaram significativamente, já que os rendimentos dos títulos já que os rendimentos dos títulos sofrem em termos reais se a inflação aumentar.

Último preço

Taxa de inflação implícita nos Estados Unidos de 10 anos

Taxa de inflação implícita nos Estados Unidos de 05 anos

Taxa de inflação implícita nos Estados Unidos de 02 anos

A visão de que a economia dos EUA pode “superaquecer” foi defendida por Larry Summers, keynesianista ferrenho que participou de várias administrações do país. Ele teme que o estímulo fiscal e monetário leve ao “excesso de demanda” e, por consequência, aumente os preços em geral, forçando eventualmente o FED a aumentar as taxas de juros. Summers argumenta isso, porque logo no ano anterior ele estava dizendo ao mundo que a pandemia da COVID-19 teria um impacto pouco duradouro, e que a economia se recuperaria logo depois, tal como as cidades litorâneas que adormecem no inverno e acordam quando começa a temporada turística. Ele parece pensar que a economia dos EUA vai se recuperar por conta própria e portanto o estímulo fiscal é desnecessário. Mas a experiência do ano passado foi muito mais longa e prejudicial do que uma “pausa de inverno”.

No outro extremo da discussão, Summers foi severamente atacado pelos pós-keynesianos e pela esquerda, que consideram não haver perigo de “superaquecimento” nem aumento da inflação, por haver bastante “folga” na economia enquanto trabalhadores que precisam de empregos e serviços precisando começar. Mas o que essa visão ignora é o efeito de “histerese” na economia causado pela crise pandêmica tendo em vista que muitos trabalhadores foram forçados a deixar a força de trabalho para sempre no último ano e muitas pequenas e médias empresas nunca mais voltarão. A Longa Depressão tem visto uma redução constante nas estimativas da capacidade produtiva dos EUA.

As estimativas da capacidade econômica dos EUA foram repetidamente revisadas para menos

Estimativa do Escritório de Orçamento do Congresso do produto potencial dos EUA por safra (azul), PIB dos EUA (preto)

Superaquecimento PIB real

Fonte: Gráfico de Claudia Sahm, Dados: U.S. Congressional Budget Office https://alfred.stlouisfed.org/series?seid=GDPPOT; Bureau of Economic Analysis https://fred.stlouisfed.org/series/GDPC1

Isso significa que o espaço para a recuperação econômica será reduzido, a menos que o investimento em novos meios de produção e em empregos aumente significativamente. Logo, pode haver “superaquecimento” e inflação mais alta, não por causa da demanda reprimida do consumidor, mas por causa da capacidade produtiva fraca.

Nos últimos dez anos, foi apresentado que o crescimento do investimento empresarial diminuiu à medida que a lucratividade do capital produtivo nos Estados Unidos caiu. Empresas e investidores ricos, tomando empréstimos a taxas de juros recorde-baixas, têm optado por especular com ativos financeiros. A enorme quantidade de bailouts pelos bancos centrais e os cortes na tributação das empresas têm sido utilizados para impulsionar os mercados de ações e títulos a níveis históricos, enquanto a “economia real” estagnou. Os 80% mais pobres, que conduzem a maior parte das despesas de consumo pessoal (em inglês, personal consumption expenditures ou PCE), continuam a lutar para sobreviver.

No futuro, o aumento da dívida não poderá ser ignorado. A questão aqui não é tanto a dívida do setor público, que nos Estados Unidos já está bem acima de 100% do PIB, mas sim a dívida corporativa. Se as taxas de juros para as empresas começarem a subir devido ao aumento da inflação, os custos do serviço da dívida para uma camada inteira das chamadas empresas zumbis se tornarão um fardo excessivo e ocorrerão falências.

Segundo a Bloomberg, nos Estados Unidos, quase 200 grandes corporações se juntaram às chamadas empresas zumbis desde o início da pandemia e agora respondem por 20% das 3000 maiores empresas de capital aberto com dívidas de 1,36 trilhão de dólares. De

3.000 empresas, 527 não ganharam o suficiente para atender aos pagamentos de juros!

Débito morto-vivo

Empresas zumbis possuem uma dívida sem precedentes de 1,4 trilhão de dólares

Novamente, o FED foi pego. Se isso não acabar com a generosidade monetária em algum ponto, então a inflação pode aumentar, corroendo assim a renda real e elevando os custos da dívida corporativa. Entretanto, se agir para conter a inflação, poderá provocar um crash do mercado de ações e falências corporativas. Isso é o que acontece quando uma economia está em estagflação, ou seja, com uma inflação alta e um baixo crescimento.

Um crash do mercado de ações causado pelo aumento das taxas de juros nem sempre leva a uma recessão econômica. Paul Samuelson, economista referência na área, costumava brincar que o mercado de ações previu doze das últimas nove recessões. Na verdade, como Marx argumentou, os crashes financeiros têm uma lei própria e nem sempre coincidem com as crises comerciais.

Por exemplo, a queda muito acentuada nos preços das ações em 1987 não levou à recessão econômica e os preços se recuperaram rapidamente. A razão é que, então, a lucratividade do capital nas principais economias vinha crescendo por mais de cinco anos e estava em um nível relativamente alto em 1987; assim, ela continuou a aumentar por mais uma década. Mas essa não é a situação agora. A lucratividade do capital está perto do mínimo histórico e mesmo uma recuperação em 2021 e 2022 não colocará os níveis de volta aos níveis anteriores a 1997 ou 2006. E a dívida corporativa, historicamente, nunca foi tão alta.

Relatório das tradutoras

O texto The sugar rush economy, de Michel Roberts, apresenta uma série de linguísticos para o tradutor, e que resulta na tentativa de soluções perspicazes e criativas para trazer ao contexto brasileiro sem que haja modificação no objetivo do autor. Como aparato teórico, fez-se uso de dicionários, do SmartCAT e de leituras tanto em jornais quanto em blogs, visto que este é o público-alvo destinado. A escolha final do título se deu apenas após a conclusão da tradução, pois o termo “sugar rush” foi um recurso estilístico usado pelo autor para fazer sua analogia ao alto estímulo fiscal previsto na visão de Jay Powell.

Verificou-se que o termo Federal Reserve System (FED) costuma ser traduzido para Sistema de Reserva Federal (FED). Em jornais como o Valor Econômico ou sites relacionados à economia monetária como Nubank costumam optar por não traduzir o termo. Contudo, pensando que o gênero textual de um artigo de um blog, e que isso atinge várias camadas sociais com os mais diversos níveis de interesse e escolaridade, optou-se pela tradução de modo a facilitar a compreensão do leitor sobre o assunto.

É comum no dia a dia, em especial no meio jornalístico, ver o uso de “da” e “do” acompanhados do substantivo “COVID-19”. Segundo o professor Carlos Eduardo Deoclecio, linguisticamente entende-se que o “da” é usado para se referir à doença “COVID-19” enquanto o “do” para se referir ao vírus em si, embora a Academia Brasileira de Letras (ABL) não tenha inserido tal diferenciação no glossário do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP).

A expressão sugar rush pode ser entendida como um pico de energia provocado pela alta ingestão de açúcar no sangue, mas que após certo tempo começa a diminuir. Neste sentido, a expressão “fogo de palha” consegue ser análoga, pois se trata um fenômeno também efêmero. Obrigatoriamente, ao alterar a expressão, foi necessário fazer modificações na exemplificação do autor, mas de modo que a lógica pudesse ser mantida conforme apresentado abaixo:

Original em Inglês Tradução para o Português
But as every parent knows, giving a child too much sugar leads to a rush of energy. And then comes the letdown and sleep. That is what Powell worries about, namely that after this burst of energy on the ‘sugar high’ of government paychecks and restaurants meals, the US economy will slip back into the low growth trajectory that applied before the pandemic slump.

Mas, como todos sabem, o fogo na palha resulta em uma queima rápida. E então vêm as cinzas. É com isso que Powell se preocupa: que após o clarão do fogo dos contracheques do governo e das refeições nos restaurantes, a economia dos Estados Unidos retornará à trajetória de baixo crescimento de antes     da     crise pandêmica.

Enquanto no original a analogia diz respeito à criança que fica energizada após o alto consumo de açúcar, mas posteriormente se sente letárgica até pegar no sono, a tradução adaptou para o contexto cultural brasileiro relacionando o fogo de palha com a queima rápida, e, posteriormente, a chegada das cinzas. No que diz respeito à preocupação de Powell, ele acreditava que após este excesso de energia provocado pelo alto nível de açúcar fariam com que os Estados Unidos fosse retornar ao curso que se encontrava antes da pandemia. Dentro da ideia do fogo, o clarão faz jus ao alto nível de açúcar no sangue, bem como o seu apagamento ao retorno da trajetória.

Esta analogia se encaixa também pelo fato de o calor ser a forma de energia originada pelo fogo, de modo a corresponder também quando se trata da energia em forma de mais-valia. Pode-se dizer que o termo “running hot” corresponde ao termo “superaquecer”. Em outras palavras, ambos são empregados quando a capacidade produtiva não consegue acompanhar a demanda, causando assim um problema inflacionário. O termo “arch-Keynesian” usado para caracterizar o economista Larry Summers foi traduzido respectivamente por “keynesianista ferrenho”, pois uma das definições do prefixo “arch-”, segundo o Cambridge Dictionary, é marcar intensidade de algo.

Por se tratar de um anglicismo, o termo bailouts não foi traduzido. Embora sugar rush seja um termo intraduzível a nível da palavra, com ele foi possível fazer uma analogia de modo a evitar os excessos de anglicismos no texto. Já bailouts é um conceito próprio cuja equivalência dentro da economia se satisfaz por si só, assim como ‘crash’ que é usado posteriormente. O termo ‘crash’ pode simbolizar uma quebra, um declínio, uma queda, mas também é usado como termo isolado, inclusive, sem o uso de itálico.

Conforme visto em outras matérias jornalísticas, é comum ver o uso de parênteses apresentando a explicação do termo original. Foi o caso no trecho “despesas de consumo pessoal (em inglês, personal consumption expenditures ou PCE)”, que diferente do caso de FED, além de possuir pouquíssimas ocorrências da tradução, trata-se de um tipo de despesa muito específico da cultura estadunidense. Este último fator leva a justificar por inteiro a tradução do título do texto de The sugar rush economy para O fogo de palha da economia estadunidense, pois atualmente o Brasil também enfrenta uma crise econômica intensificada com o agravamento da COVID-19, e portanto, para não se tratar de uma manchete enganosa, acredita-se ser necessário expor de qual país o texto aborda.

Referências:

CAMBRIDGE DICTIONARY ONLINE. Cambridge: Cambridge University Press, 2020. Disponível em: https://dictionary.cambridge.org/us/dictionary/english/arch.

Acesso em: 13 de abr. 2021.

CASTRO, Marcílio Moreira. Dicionário de direito, economia e contabilidade: português-inglês/ inglês-português. 4. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2013

DEOCLECIO, Carlos Eduardo. “O” Covid-19 ou “A” Covid-19? Fatos linguísticos em tempos de pandemia. Parábola Editorial, 2020. Disponível em: https://parabolablog.com.br/index.php/blogs/o-covid-19-ou-a-covid-19. Acesso em: 12 de abr. 2021.

ROBERTS, Michael. The sugar rush economy. Capitalism, Economics, Profitability. Disponível em: https://thenextrecession.wordpress.com/2021/03/21/the-sugar-rush- economy/. Acesso em: 12 de abr. 2021.

SmartCAT [Ferramenta Online]. Disponível em: http://www.smartcat.ai. Acesso em: 11 de abr. 2021.

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