Nazim Hikmet Ran: O poeta da esperança proletária

Por Gercyane Mylena Pereira de Oliveira

O presente escrito é fruto de reflexões realizadas a partir do artigo escrito por Nikos Motta para o portal In Defense Of Communism, blog marxista leninista sobre a vida política do grande poeta turco Nazim Hikmet. Nascido em Salónica em 1902, no seio de uma família culta, Nazim Hikmet teve uma vida marcada por fugas e exílios em muito motivados pela sua intensa participação na luta proletária, e entre 1928 e 1938, publicou cerca de 9 livros que revolucionaram a poesia turca.


Ele é provavelmente o poeta turco mais conhecido do século XX e seus poemas já foram traduzidos para várias línguas. Estudou sociologia e economia na Universidade de Moscou de 1921 a 1928 e entrou para o Partido Comunista da Turquia na década de 1920. Chegou a ser comparado à Neruda pela sua exuberância lírica e à García Lorca por seu sensível enraizamento na paisagem e culturas locais. Só a distância entre as nacionalidades justificaria seu desconhecimento entre nós, pois aos poucos Nazim se tornaria um verdadeiro épico do século XX. Combinando técnicas do romance, do teatro e do cinema, diálogos epistolares e emissões radiofônicas, trechos de reportagens, canções e contos folclóricos tradicionais, livros como Paisagens humanas do meu país por exemplo, acompanha a vida de homens, mulheres e crianças de diferentes estratos sociais, num entrelaçamento de histórias que têm, entre seus pólos de atração, as lutas pela libertação da Turquia na década de 1920 e a experiência da Segunda Guerra Mundial, todas tratadas em muitos planos, indo dos campos de batalha aos arranjos de bastidores. O resultado é um autor de obras fora do comum, que se deixa ler como uma espécie de Aleph da conturbada história do nosso tempo.

Com seu profundo otimismo da vontade, é o poeta proletário que precisamos resgatar em tempos de coronavírus e neoliberalismo profundo para encontrarmos as forças de resistência. Gündüz Vassaf, grande escritor e psicólogo turco, descreveu o talento de Hikmet como “simplicidade, essência e sinceridade”. No começo, Hikmet era amado e havia até gravações de seus poemas em vinil. Mas “então a Turquia o odiava, ele foi declarado um traidor”, disse Vassaf, citado por Haluk Oral em seu livro de 2019, Em “A Jornada de Nazim Hikmet” isto fica claro após as classes dominantes enxergarem o perigo revolucionário da poética de Hikmet nas massas. Devido aos seus exílios e perseguições políticas, quando os turcos viajam pelo mundo na Rússia ou em Cuba ou no Leste Europeu, é comum ver as pegadas de Hikmet nas cidades onde morou, seja em um museu, como no Chile, ou em um café que costumava frequentar Praga. Em 1928, depois de voltar à Turquia sem visto, escreveu artigos em jornais, roteiros de filmes e peças de teatro. Por causa de seu retorno ilegal, foi encarcerado. Foi solto em 1935 para ser sentenciado de novo, nesse caso por um tribunal militar, em 1938, por atividades que haviam levado jovens soldados a se revoltarem – mais especificamente porque seu poema “O Épico de Sheik Bedreddin” estava sendo lido por jovens praças no Exército. Como resultado de processos internacionais, foi solto de novo em 1950. Após perder a cidadania turca, morou na União Soviética e em outros países socialistas.

 “Diga lá, Taranta Babu! Diga lá! Como é bom viver! Meu Deus do céu, como é bom viver! A vida é uma coisa tão bela, tão alegre, mas há momentos estranhos, como agora, em que os bandidos dão as cartas e a vida fica tão sangrenta e desumana, tão insuportável, que dá vontade de desistir dela. O que fazer?”

Parece até o Brasil de hoje, em que vivemos um genocídio em curso e uma crise política e recessão econômica sem tamanho. Mas este trecho foi escrito pelo poeta turco Nazim Hikmet, em 1935, num cenário tão “atípico” como esse que vivemos, no qual a vida duvida da própria beleza. O nazismo, o fascismo e o racismo assolavam a Europa e conquistavam adeptos em outros países, incluindo o Brasil, onde a ditadura Vargas prendia, torturava e arrebentava. A indústria bélica fazia mais de 40 milhões de mortos na Segunda Guerra. Havia retrocesso generalizado nas liberdades, a censura golpeava as artes, o cinema, o museu, a escola, o sindicato, com a cumplicidade dos aparelhos hegemônicos da classe dominante, o jornalismo corporativista.

Estamos vivendo em tempos obscuros outra vez. O triunfo do obscurantismo e do lamaçal com cheiro de morte, hoje, atualizam as palavras de Nazim Hikmet, que viveu duas guerras mundiais. Preso político durante quinze anos, foi torturado, perseguido e silenciado. Foi condenado à morte e libertado graças a uma forte campanha internacional. Exilou-se sem o direito de rever a mulher e o filho, proibidos de deixar a Turquia. É o poeta turco de maior expressão internacional, mas ainda pouco conhecido aqui, onde seu nome não é badalado nos suplementos literários. Um valente combatente por toda a vida, um comunista.

A geração das passeatas contra a ditadura teve a sorte de conhecê-lo porque, nessa época, circulava clandestinamente entre os militantes uma edição em espanhol do livro “Existió realmente Ivan Ivanovich?” – peça de teatro em três atos, escrita por ele no seu exílio de Moscou, em 1955. Hikmet usava a linguagem com notável clareza, ao contrário de muitos outros escritores da época, em que muitos turcos precisavam manter um dicionário à mão durante a leitura. Hikmet utilizou do internacionalismo proletário e do seu profundo conhecimento das mais diversas realidades dos trabalhadores mundo afora, em seus poemas, ele fala sobre a Abissínia [Etiópia] após a ocupação italiana. Ele vai ao Louvre, escreve sobre a China olhando a Monalisa e sobre a história da Índia com Benerci [Banerjee]. Ele foi a Cuba e escreveu sobre o poder da resistência ao imperialismo americano. Ele escreveu sobre a história mundial em seus poemas. Eram poucos no Brasil os que sabiam quem era Nazim Hikmet. Ainda somos. Se a sua língua materna fosse espanhol, francês ou inglês, Hikmet seria adotado como Shakespeare.

– Ele era um homem alto, louro, aquilino, de olhos azuis, muito simpático. Mantinha sempre um tom risonho e jovial nas suas conversas – escreveu seu amigo, o poeta cubano Nicolás Guillén em suas memórias. Dizem, que mesmo quando esperava, sentado no estrado, antes de se levantar para tomar a palavra, percebia-se que era um homem excepcionalmente alto e sólido. Não era à toa que o haviam apelidado de “a árvore de olhos azuis”. Quando ficava em pé, tinha-se a impressão de que era também muito leve, tão leve que poderia alçar voo.

Nazim passou a parte mais significativa de sua vida na prisão, condenado em dois processos:  o primeiro quando seus livros de poesia foram encontrados com vinte alunos da Academia Militar que adoravam literatura. Por isso, foi acusado de incitação à indisciplina e à rebelião, com pena de 15 anos de prisão; o segundo porque cadetes da Marinha foram também surpreendidos lendo os livros do poeta. Aqui a condenação foi de 28 anos. A poesia dele dentro dos quartéis fazia mais “estragos” que uma bomba, porque fazia pensar. Nazim Hikmet era o poeta que chegava a aldeias em que era um aglomerado de poucos casebres, com tetos de terra batida onde os aldeões viviam em condições de extrema pobreza. E a cidade mais próxima ficava a 14 horas de distância, por acessos difíceis, estreitos estradas talhadas no flanco das rochas. Em aldeias longínquas o povo dizia saber as belas canções de um grande poeta, com força para enternecer as mais altas montanhas e os mais duros rochedos. Poemas que os camponeses sabiam de cor, versos de Nazim Hikmet.

Qualquer um ficaria espantado e se perguntaria como era possível que os poemas de Nazim Hikmet, tivessem podido chegar até a longínquas aldeias da Turquia asiática e enraizar-se no coração dos seus habitantes, misturando-se com as odes dos bardos tradicionais da Turquia – o legendário Korkout e o sublime Younous? Como era possível Hikmet misturar a sua voz com as obras dos velhos cancioneiros populares?

Para muitos é difícil decifrar um enigma como este, mas a resposta está em como os versos da resistência e do poder popular podem falar ao coração do mais simples aldeão ao moderno trabalhador urbano. Os poemas de Hikmet viajavam o mundo até àquelas aldeias e se incrustavam entre a poesia ancestral. Devo acrescentar que a modernização da língua turca muito deve a Hikmet. Os grandes mestres estavam mergulhados num total esquecimento, e ele os resgatou.

Ninguém tinha se dado conta de que o turco podia ser uma linguagem poética, literária no melhor sentido e, ao mesmo tempo, terna e vigorosa. Foi Hikmet que lhe conferiu essa característica ao abandonar cânones empolados, só entendidos por eruditos, e ao adotar a linguagem do povo, vinculada à sua realidade cotidiana, ao trabalho, à rudeza da vida, e também às belezas da vida. O poeta em particular, e o escritor em geral, têm de estar no cerne da vida. Hikmet compreendeu isso e rapidamente ganhou um lugar no coração do seu povo, lugar mais importante do que mil cadeiras de academias. Como um sutil, mas impetuoso, lençol subterrâneo de água, impregnou a alma do povo turco.

Quando ganhou, em novembro de 1950, o Prêmio da Paz, conferido pela II Conferência do Congresso Mundial da Paz, quem recebeu a honraria em seu nome foi Pablo Neruda que, no discurso, contou como Nazim Hikmet reagia à violência. Encarcerado por um tempo em um barco da Marinha turca, foi colocado dentro de uma latrina cheia de excremento e triunfou sobre a cloaca nauseabunda, cantando. Cantou sem parar em voz alta todas as canções de amor que conhecia, seus poemas e cantigas populares, até de lá ser retirado, rouco e cambaleante.

Depois de fugir da Turquia, já no exílio, tentou por todos os meios trazer de lá sua mulher e filho, sem sucesso. Neruda conta que ela procurou o general, ministro do Interior, que lhe disse:

– Nunca sairás da Turquia. Nem tu, nem teu filho. Teu marido vai sofrer até morrer por causa disso. Logo depois tu seguirás os seus passos. A criança ficará, então, sob a nossa guarda para que lhe ensinem a odiar seu pai.

A resposta antecipada que ele deu está em um poema à sua mulher, em outubro de 1945, no qual afirma o compromisso com a beleza da vida: “Nós dois sabemos, minha amada, / que nos ensinaram / a ter fome e frio / a morrer de cansaço / e a viver separados. / Nós não fomos obrigados ainda a matar / e nem chegou ainda a hora de morrer. / Nós dois sabemos, minha amada / que nós podemos ensinar os outros / a combater por nosso povo / a amar cada dia um pouco mais / cada dia um pouco melhor…”

A obra luminosa de Nazim Hikmet continua inspirando o mundo, apostando na vida, mesmo “nesses tempos em que é tão difícil a ternura”, como escreveu sobre ele o poeta basco Blas de Otero. Nazim sabia que a vida podia ser bem melhor e lutou para que assim fosse, mas isso não o impediu de dizer, como Gonzaguinha, que a vida é bonita, é bonita e é bonita. O espetáculo obsceno encenado nacionalmente por representantes dos três poderes é chocante e brutal. Todos eles com discursos indigentes, verdadeiras bofetadas em nossa inteligência. Não esboçaram qualquer reação. Adoecemos impotentes, deprimidos, alguns desistindo da alegria da vida. Quando a vida está ameaçada, nesses tempos de Bolsonarismo e pandemia, ler Nazim Hikmet não é só um bálsamo, é uma necessidade. Ele enfrenta a morte.

Foi no final de minha adolescência que li pela primeira vez poemas de Nazim Hikmet. O que me tocou nos poemas de Nazim Hikmet, na primeira vez que os descobri, foi o espaço; continham mais espaço do que toda a poesia que eu já havia lido até então. Não o descrevem, atravessam-no, ultrapassam montanhas. Falam também de ação. Evocam as dúvidas, a solidão, o luto, a tristeza, mas esses sentimentos seguem a ação em vez de a substituírem, a essência de um comunista em versos. Espaço e ação caminham lado a lado. A antítese deles é a prisão e foi em prisões turcas que Hikmet, preso político, escreveu metade de sua obra. O que Hikmet nos deixa como legado, é o fato de que  nem a repressão da classe dominante, nem os elitistas preconceitos burgueses, conseguem fechar o coração de um povo à poesia, à música, à arte e à luta pela sua libertação, com que a sua alma se identifica.

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