Por John Swinton. Traduzido por Rodrigo Maiolini Rebello Pinho.
“Ele falou das forças políticas e dos movimentos populares dos vários países da Europa – a vasta torrente do espírito da Rússia, os movimentos da mente alemã, a ação da França, a imobilidade da Inglaterra. Falou esperançosamente da Rússia, filosoficamente da Alemanha, animadamente da França e sombriamente da Inglaterra – referindo-se com desprezo às “reformas atomísticas” com as quais os liberais do Parlamento Britânico passam seu tempo. Vistoriando o mundo europeu, país após país, indicando os traços, os desenvolvimentos, os personagens da superfície e sob a superfície, ele mostrou que as coisas se encaminhavam para fins que seguramente serão realizados”
Um dos mais notáveis homens dos nossos dias, que desempenhou um inescrutável mas pujante papel na política revolucionária dos últimos quarenta anos, é Karl Marx. Um homem sem desejo de exibição ou de fama, que não liga para as fanfarrices da vida ou a pretensão de poder, que não para nem apressa, um homem de vigorosa, vasta e elevada mente, cheio de projetos de longo alcance, de métodos lógicos e de desígnios práticos, ele esteve, e está ainda, por trás de mais terremotos que convulsionaram nações e destruíram tronos, e ainda agora ameaçam e aterrorizam cabeças coroadas e fraudes estabelecidas, do que qualquer outro homem na Europa, incluindo o próprio Giuseppe Mazzini. O estudante de Berlim, o crítico do hegelianismo, o editor de jornais e o antigo correspondente do New York Tribune mostrou suas qualidades e seu espírito; o fundador e mentor da outrora temida Internacional e o autor d’O Capital foi expulso de metade dos países da Europa, proscrito em quase todos eles, e em Londres, já passados trinta anos, tem encontrado refúgio.
Eu estava em Londres, ele em Ramsgate, o grande refúgio litorâneo dos londrinos, onde o encontrei em sua pequena casa com duas gerações da sua família. O rosto angelical, a voz doce, a graciosa e afável mulher que as boas-vindas à porta me deu, evidentemente era a senhora da casa e a esposa de Karl Marx. E este homem de cabeça imponente, feição generosa, cortês, gentil, pelos sessenta[i], com estas bastas massas de longos, revoltos e grisalhos cabelos, seria ele Karl Marx? Seu diálogo fez-me lembrar o de Sócrates – tão livre, tão límpido, tão criativo, tão incisivo, tão genuíno – e com seus toques sardônicos, seus raios de humor e sua jocosidade festiva. Ele falou das forças políticas e dos movimentos populares dos vários países da Europa – a vasta torrente do espírito da Rússia, os movimentos da mente alemã, a ação da França, a imobilidade da Inglaterra. Falou esperançosamente da Rússia, filosoficamente da Alemanha, animadamente da França e sombriamente da Inglaterra – referindo-se com desprezo às “reformas atomísticas” com as quais os liberais do Parlamento Britânico passam seu tempo. Vistoriando o mundo europeu, país após país, indicando os traços, os desenvolvimentos, os personagens da superfície e sob a superfície, ele mostrou que as coisas se encaminhavam para fins que seguramente serão realizados.
Eu me surpreendia frequentemente enquanto ele falava. Era evidente que este homem, de quem tão pouco se vê ou ouve, está nas entranhas dos tempos, e que do Neva ao Sena, dos Urais aos Pirineus, mete mão à obra, preparando o caminho para o novo advento. Mas o desperdício de sua obra não é maior agora do que foi no passado, em que tantas desejáveis mudanças ocorreram, tantas lutas heroicas foram vistas e a República Francesa foi elevada às alturas. Da maneira como ele respondeu, a questão que eu propusera – “Por que você não está fazendo nada agora?” – parecia ser uma questão de um inculto. Inquirindo-o por que a sua obra maior, O Capital, campo semeado para tantas colheitas, não havia sido transposto ao inglês, como o fora ao russo e ao francês a partir do original alemão, ele não soube responder, mas disse que uma proposta de tradução para o inglês lhe chegara de Nova Iorque. Ele disse que esse livro[ii] não era senão um fragmento, uma só parte de um trabalho de três partes, duas das quais ainda não publicadas, sendo a trilogia completa “Terra”, “Capital” e “Crédito” – a última parte, disse ele, largamente ilustrada a partir dos Estados Unidos, onde o crédito teve um desenvolvimento estupendo. O Sr. Marx é um observador da ação americana, e seus apontamentos sobre algumas das forças formativas e substantivas da vida americana eram cheias de sugestividade. De passagem, ao referir-se ao seu Capital, ele disse que qualquer um que desejasse lê-lo, acharia a tradução francesa muito superior em muitos modos ao original alemão. O Sr. Marx fez referência ao francês Henri Rochefort[iii], e em sua fala sobre alguns de seus discípulos mortos, o tempestuoso Bakunin, o brilhante Lassalle e outros, eu pude ver o quão profundamente seu gênio deteve homens que, sob outras circunstâncias, poderiam ter dirigido o curso da história.
Vai-se esvaindo o dia, em alongado crepúsculo, num entardecer de verão inglês, enquanto o Sr. Marx discursa e então propõe um passeio no lado costeiro da cidade, ao longo da orla, até a praia, onde vemos muitos milhares de pessoas, boa parte crianças a se divertir. Aqui na areia achamos sua festa familiar – a esposa, que já me dera as boas-vindas, duas filhas com suas crianças e os dois genros, um dos quais professor do Kings College London[iv] e o outro, acredito, homem de letras[v]. Foi uma deliciosa festa – éramos em dez ao todo[vi] – o pai das duas jovens esposas, felizes com suas crianças, e a avó, rica da alegria e da serenidade de sua natureza de esposa. Com não menos fineza que o próprio Victor Hugo, Karl Marx entende a arte de ser avô; mas, mais afortunado que Hugo, as filhas casadas de Marx vivem a tornar jucundos seus anos[vii].
Caindo o dia, ele e seus genros apartam-se de suas famílias para passar um momento com seu convidado americano. E falava-se do mundo, e do homem, e dos tempos, e das ideias, enquanto nossos copos tilintavam sobre o mar.
Mas o trem de ferro não espera por ninguém, e a noite se avizinha. Pensando sobre as tagarelices e tormentos da idade e das idades, sobre a conversa do dia e as cenas do entardecer, levantou-se em minha mente uma questão, tocante à lei última do ser, para a qual eu buscaria resposta nesse sábio. Mergulhava nas profundezas da linguagem e subia ao cume da ênfase quando, durante um intervalo de silêncio, eu interroguei o revolucionário e filósofo, com estas fatídicas palavras:
“Qual é?”
E pareceu que sua mente se revolvera por um instante enquanto ele olhava o mar que defronte bramia e na praia a incansável multidão. “Qual é?”, inquirira eu, ao que, em tom profundo e solene, ele replicou: “Luta!”.
O eco do desespero é o que primeiro pareceu que eu ouvira; mas era porventura o sentido da vida.
Sobre o Autor
Nascido na Escócia, radicado nos Estados Unidos, de passado abolicionista (partidário de John Brown) e apoiador das causas dos trabalhadores, o jornalista John Swinton foi recebido por Karl Marx em agosto de 1880, ao final de uma viagem de quarenta dias pela França e Inglaterra. O Homem dos Terremotos: Karl Marx é um tópico destacado dos seus relatos de viagem, que primeiro apareceram em 06 de setembro daquele ano, como uma reportagem de primeira página no The Sun, jornal de Nova Iorque cuja circulação diária era de cerca de 125.000 exemplares; depois foram publicados como uma brochura, intitulada John Swinton’s Travels: current views and notes of forty days in France and England. Em 04 de novembro de 1880, Marx escreveu a Swinton, agradecendo o “artigo amigável no The Sun” e informando que acabara de lhe remeter “uma cópia da edição francesa do Capital” (Marx & Engels Collected Works.Digital Edition, Lawrence &Wishart, 2010, V. 46, p. 40). Tempos depois, em outro artigo, cuja tradução será em breve publicada aqui no Lavra Palavra, Swinton se recordaria de palavras notáveis que ouviu de Marx quando se reuniram em Ramsgate.
[i] Marx tinha sessenta e dois anos. [NT]
[ii] O Livro I d’O Capital [NT].
[iii] Antes na viagem, em sua passagem por Paris, Swinton havia se encontrado com Rochefort. [NT]
[iv] Charles Longuet. [NT]
[v] Paul Lafargue. [NT]
[vi] Laura e Paul Lafargue, Jenny e Charles Longuet, com seus filhos Jean, Henri e Edgar (cfr. Marx & Engels Collected Works. Digital Edition, Lawrence & Wishart, 2010, V. 24, p. 585) [NT].
[vii] Em Paris, Swinton havia conhecido pessoalmente Victor Hugo em uma festa em sua casa, onde o vira a brincar com seus netos. Hugo, que teve o infortúnio de sobreviver a quase todos seus filhos, escreveu em 1877 a obra A Arte de ser avô (L’Art d’être grand-père). [NT]