Por Heribaldo Maia
Diante desse cenário bizarro pelo qual estamos vivendo, que junta um governo protofascista, genocida e negacionista, a pior pandemia dos últimos cem anos e derrotas em sequência que solapam direitos históricos e o mínimo de humanidade para brasileiros e brasileiras, me lembrei que certa vez, numa aula, durante minha formação no curso de História na UFPE, um professor falou a seguinte frase: “a história do Brasil é a história do que poderia ter sido, mas não foi”.
O que vemos no Brasil hoje é apenas o reflexo dessa história que poderia ter sido outra, mas não foi. Patriotas vestem-se de verde e amarelo, cantam o hino nacional em torno de gigantes patos amarelos e glorificam “grandes nomes” como Geisel, Ustra e cia.
Os heróis de verde e amarelo emocionam-se diante da jornada hercúlea e imaginária, mas tragicamente real, de limpar o país dos vermelhos — os comunistas que estão por todas as partes, espreitando de esquinas escuras, prontos para atacar e comer criancinhas. Também os indígenas são inimigos de primeira ordem, que impedem o acesso do povo brasileiro às riquezas da nossa terra. E os excluídos, em sua maioria negros e negras, moradores das favelas, malocas e alagados, ao levantarem sua voz nos últimos anos, já se colocam como ladrões prontos para se aproveitarem da ingênua pátria Brasil ou roubarem a vaga da universidade pública do playboy.
Mas seria esse o país que vivemos? Certa vez vi um vídeo de Vladimir Safatle, na abertura do seminário “Os fins da democracia”, que me fez refletir sobre essa questão, partindo de seu emocionante discurso. Voltando à questão, eu diria primeiramente que sim. Esse é o país que temos! Mas não é o único. Há um outro Brasil. Um Brasil que vive em estado de latência pronto para acordar. O Brasil que vive desse passado não realizado, esse citado por esse meu professor e por Vladimir Safatle nesse discurso já citado, que vive num tempo do que poderia ter sido, mas que sobrevive no imaginário e vez ou outra se faz ouvir.
Walter Benjamin diz que há duas histórias que vivem em paralelo. Uma a história do que aconteceu, concatenada por uma cadeia de acontecimentos que nos trouxe até aqui. Essa história é vista por um anjo, o anjo da história, com horror de quem olha as ruínas se afastarem de seus pés enquanto é empurrado para o futuro pelo vento do progresso, ainda que seu desejo fosse o de parar essa jornada do progresso, acordar os mortos e juntar seus fragmentos para lhes permitir outra vida. Mas há outra história, essa mesma, desses mortos e dessas ruínas, desses que foram sacrificados em nome da construção do que temos hoje. Ela morreu, mas, segundo Benjamin, continua presente como uma voz fantasmagórica pronta para ser ouvida e encarnada.
Essa digressão, que diz Benjamin, é importante para dizer que se há um Brasil, esse que se veste de verde e amarelo, dançando coreografias de gosto duvidoso em torno de um pato e que grita Brasil acima de tudo — em um retorno trágico ao famoso slogan nazista “Deutschland Uber Allem” (Alemanha acima de tudo) –, também há um que morreu para que esse existisse, mas que mesmo morto ainda vive e procura se fazer ouvir.
Hoje, apesar do momento ser de desespero diante das barbaridades promovidas pelos patriotas desse Brasil, mais do que nunca o momento decisivo se aproxima. As faces carcomidas dos construtores dessa nação se mostram à luz do dia e sem vergonha nenhuma de reivindicar o que dizem e o que são. O cheiro fétido do sangue de séculos e séculos de extermínio negro e indígena encruado nas mãos dos construtores dos valores tradicionais está no ar para que todos sintam.
Portanto, as entranhas da história de nosso país se mostram e exibem os horrores que sustentam os pilares dessa nação. O passado de opressão, exploração e morte está visível para que qualquer um veja, uns insistem em defendê-lo, outros erguem-se para resistir. O povo brasileiro se divide entre moradores de diferentes países, dois “Brasis” caminham passos largos para o embate, e é preciso ter clareza da missão histórica que temos diante de nós.
De um lado temos o Brasil real, esse da família tradicional brasileira e seus lindos valores. Essa instituição sagrada, fundada no assassinato negro e indígena, no estupro, roubo de terras e dos porões da Ditadura Militar. Tudo isso muito bem fundamentado nos valores cristãos, que dentro de igrejas fazem sinal de armas (apontadas para quem?), apedrejam terreiros, espancam homossexuais e transexuais (enquanto lideramos os acessos de pornografia com pessoas LGBT’s), torturam jovens por furtarem chocolates (afinal só o filho do presidente pode associar roubo e chocolates em paz), aplaudem o assassinato dos que nunca puderam ter acesso a nada de humano na vida e jogam para a morte milhões de brasileiros durante a maior pandemia dos últimos cem anos.
Por outro lado, temos o Brasil dos indígenas, sempre postos a cuidar dessa terra tão rica e preservar a história milenar que possuem. Temos os negros e negras que mesmo em situação de marginalização social se recusam a desistir e entram nas universidades, assumem a contra gosto papéis de intelectuais, médicos, advogados, professores, etc., além de serem e continuar sendo a alma criativa da cultura nacional com nomes gigantescos como, Cartola, Dona Ivone de Lara, Lia de Itamaracá e tantos que, se aqui postos nunca terminaria esse texto, mas que nos permitiram soar a voz desse outro Brasil. Além das milhões de famílias LGBT’s que tem negado o direito mais humano que é o direito ao amor, mas que ainda sim continuam amando.
É inevitável o enfrentamento. Um lado se articula para suprimir, destruir, como disse o próprio líder dos verde-amarelos, “é preciso matar uns 30 mil e fazer o trabalho que o Regime Militar não fez”.
Diante disso, só nos resta uma alternativa quando as trombetas do acontecimento tocarem e nos convocarem a tomarmos a história em nossas mãos: fazer os mortos ressuscitarem em nossos corpos e fazer o que poderia ter sido realidade.
Não mais o Brasil de D. Pedro, Deodoro, Dutra, Geisel, Médici ou Bolsonaro. Chegou a hora de ouvir a voz baixa dos que pensaram esse Brasil que poderia ter sido. Como disse o lindo samba da Mangueira, “chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês”. É preciso fazer nas ruas, malocas, favelas e alagados, “A história que a história não conta” e parir um novo Brasil que é “O avesso do mesmo lugar”.
Para isso, é preciso ter coragem de abrir alas para as multidões, para o plural Brasil “de Lecis, jamelões”. É preciso a coragem de romper o ciclo que “Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento; Tem sangue retinto pisado; Atrás do herói emoldurado”.
Só há um lugar onde é possível frear o progresso dessa história de horror. Esse lugar é o único, como disse Chico Buarque, onde se pode passar um samba popular onde cada paralelepípedo se arrepie com a rememoração viva, e não estática, dos mortos que não se fizeram calar, onde “um país que não está no retrato” nascerá.
Esse lugar é o único onde podemos e devemos estar, pois somos os que vivem as dores do parto do novo. Esse lugar não será, logo de cara, bonito. Não será, logo de cara, feliz. Não será, logo de cara, gigante pela própria natureza. Mas não tenhamos dúvidas, ele será! Esse lugar é onde mora Marielle, Marighella, Prestes, Olga, Zumbi, Chico Mendes, Nise da Silveira, todos os negros e negras arrancados de sua terra e todos os indígenas mortos. Esse lugar, meus caros brasileiros e brasileiras, é a luta – a luta, sem vacilações, pela Revolução Brasileira.