Por Paulo Marçaioli, resenha do livro “A Coluna Prestes no Piauí” – Chico Castro – Edições do Senado Federal V. 90.
“O medo era aterrador. Afinal, nas trincheiras estavam parentes próximos e distantes que, mesmo sem ter em mente o significado do movimento tenentista, saíram em defesa da cidade armada, em face da indomada sanha dos invasores. O que era a Coluna Prestes para eles? Um bando de homens, de porte varonil, bem armados, vindos do sul do país, com o fino intuito de invadir a capital, tomar casas e bens, saquear o comércio, matar aqueles que se intrometessem em seu caminho, levar consigo homens e mulheres para as suas fileiras e praticar todo tipo de atrocidades, comuns aos bandidos mais perigosos. Era exatamente o que a propaganda governista passou, levando pavor e desespero para a pacata família teresinense. Só muito tempo depois minha mãe veio saber a verdade, e eu também”. Chico Castro.
É comum ouvir-se a tese de que o povo brasileiro é pacífico, avesso às formas mais violentas de luta política, renunciando à mobilização em face das graves e diversas injustiças sociais do país. Um rápido olhar panorâmico pela nossa história revela como tal senso comum[1] é falso.
Desde o Quilombo dos Palmares até as demais formas de resistência dos cativos como fugas, sabotagem nos trabalhos até assassinatos dos Barões de Açúcar e Café; a Conjuração Mineira suscitando de forma pioneira o republicanismo; a Confederação do Equador movimento separatista e republicano; a Revolução Pernambucana de 1817, a Sabinada, a Balaiada, a Farroupilha, a Revolta dos Malês[2] na Bahia tratando-se de movimento político de escravos de origem muçulmana que poderia ter evoluído no mesmo sentido do movimento emancipacionista do Haiti. Mais recentemente, a greve geral de 1917, a Revolta do Forte de Copacabana (1922) chegando às jornadas de luta armada contra a ditadura militar com Lamarca e Carlos Marighella.
Neste amplo contexto de lutas sociais, a Coluna Prestes se revela como o movimento guerrilheiro mais grandiloquente da história do Brasil. Dirigido por Luís Carlos Prestes, Siqueira Campos e Juarez Távora, a marcha guerrilheira percorreu mais de 24.000 KM do território brasileiro num itinerário mais vasto que a grande marcha da China de Mao Tsé Tung.
Este notável trabalho de Chico Castro aborda a passagem da Coluna pelo estado do Piauí. Pelo menos três fatos de grande relevo ocorreram durante a marcha guerrilheira naquele Estado onde tomaram posse de todo o interior e promoveram um duro cerco à cidade de Teresina. Primeiro, a suposta participação do Cangaceiro Lampião no encalço dos guerrilheiros[3] . Segundo, foi no Piauí que membros do Partido Comunista Brasileiro entraram em contato com o Cavaleiro da Esperança (Prestes) pela 1ª vez. Finalmente, no Piauí houve a prisão de Juarez Távora.
Entender o que foi a Coluna Prestes exige contextualização da história. Após a proclamação da República em 1889 que se deu sem participação popular através de um golpe de estado militar, inicia-se o período da República Velha que não implicou em grandes transformações num sentido progressista. Houve um ambiente político fechado, com as famosas eleições à pena de bico, fraudulentas, que resultava em vitória de candidato pré estabelecido.
Pela lei Saraiva (1881) o voto deveria ser secreto mas não o era na prática e especialmente nos rincões do país a maquina eleitoral era controlada pelos coronéis. Tempo da política do café com leite em que políticos paulistas e mineiros (estados mais importantes economicamente) faziam com que a classe dos latifundiários estivessem sempre no poder.
Em 1925, 85-90% da população brasileira é analfabeta. A constituição de 1891 em seu artigo 70 afastava o direito ao voto dos menores de 21 anos, das mulheres, dos mendigos, dos religiosos ligados a alguma ordem monástica, dos soldados e dos analfabetos.
Enfim, no fundamental as elites atuavam politicamente em benefício próprio reivindicando exclusivamente para si a posse do aparelho estatal.
“A ideia de democracia na República Velha era a de uma estrutura montada de cima para baixo. Lá no topo da pirâmide estava a elite cafeeira de São Paulo, setores letrados da faixa urbana e os políticos que eram, na verdade, representantes ou descendentes das oligarquias rurais que se mantiveram no poder, mesmo com a mudança do regime monárquico para o republicano.”
Os tenentes tinham um programa que expressa o descontentamento dos baixos extratos das forças armadas, reivindicando a moralização dos negócios públicos, o voto secreto e o fim da manipulação eleitoral, além da reforma na educação pública. Quando o movimento evolui para a guerrilha, sua intenção é a derrubada da ditadura civil de Arthur Bernardes. Vencedor do pleito de 1922, considerada as eleições mais corruptas da história. Os tenentes haviam apoiado a candidatura liberal de Nilo Peçanha.
O mais provável é que o leitor, em suas aulas de história, tenha saído com a impressão de que a coluna foi um movimento que esteve sempre em fuga do encalço das forças oficiais até a conclusão da guerrilha na Bolívia. Porém, a história da Coluna Prestes no Piauí da outra imagem dos acontecimentos. Os guerrilheiros na maior parte do tempo estiveram na ofensiva, acossando as forças oficiais. Alguns militares passaram para o lado da Coluna. E havia uma certa resistência ao enfrentamento considerando serem os rebeldes e as tropas da coluna igualmente militares da mesma pátria.
Outro fator a ser anotado é a superioridade moral da coluna em face dos batalhões bernardistas.
Por um lado as forças do governo saqueavam as cidades chegando a matar os mais rústicos e simples moradores acusados de ajudarem os guerrilheiros. Aqui os saques, o arbítrio e a violência eram indiscriminados. Foi formado mesmo um batalhão de patriotas do governo formado por mercenários e bandidos que, com vencimentos da receita pública, tiravam proveito da situação para o cometimento de atrocidades. Por outro lado havia uma guerra de informações em que os bernardistas acusavam a coluna de todo tipo de crime.
De fato, criou-se inicialmente forte boato acerca do caráter criminoso da coluna.
Mas na prática, quando os guerrilheiros chegavam aos povoados, saqueavam impiedosamente os grandes proprietários e lojistas, distribuindo alimentos e bens para o povo pobre. De modo que, se o povo não compreendia o significado a Coluna Prestes, passou apreciar sua identificação com os pobres e humildes.
O balanço final do movimento guerrilheiro não pode ser considerado como vitorioso nem como derrotado. Se por um lado a guerrilha não engendra uma revolução no Brasil, por outro lado resistiu ao cerco das forças armadas até o exílio. O movimento expõe as contradições e acirra a crise da República Velha que tem como desdobramento a Revolução de 1930 (Era Vargas).
[1] O senso comum frequentemente expressa ideias vinculadas à ideologia dominante. A ideologia do ponto de vista do marxismo é o conjunto de ideias que beneficiam a classe dominante mas que se expressam como se dissessem respeito ao conjunto das classes sociais.
[2] O termo “malê” tem origem na palavra imalê, que significa “muçulmano” no idioma ioruba
[3] É bastante controvertida a participação de Lampião no conflito da coluna. Em depoimento pessoal do cangaceiro e como alguns historiadores crêem, Lampião por intermédio do Padre Cícero recebeu o convite das forças oficiais de mobilizar o seu grupo bandoleiro no encalço da coluna. Teria recebido até patente do exército, provavelmente falsa. Outra versão baseada em jornais e pronunciamentos parlamentares da época diz-se que Lampião deu apoio e cobertura aos colunistas, principalmente dando orientação do território dos rincões do norte e nordeste tão conhecidos pelos cangaceiros.