Por Alain Badiou, via Verso, traduzido por Daniel Alves Teixeira
Nos dias de hoje, tornou-se lugar comum prever o fim da raça humana tal como a conhecemos. Existem várias razões para tais previsões. De acordo com um tipo de ambientalismo messiânico, as excessivas predações de uma humanidade bestial logo trarão o fim da vida na Terra. Enquanto isso, aqueles que, ao contrário, apontam para avanços tecnológicos desenfreados, profetizam, indiscriminadamente, a automação de todo o trabalho pelos robôs, os grandes desenvolvimentos na computação, a arte gerada automaticamente, matadores automáticos revestidos de plástico e os perigos de uma inteligência super-humana.
De repente, vemos o surgimento de categorias ameaçadoras como o transhumanismo e o pós-humano – ou, sua imagem espelhada, um retorno ao nosso estado animal – que, dependendo, profetiza-se com base na inovação tecnológica ou lamenta-se de todos os ataques à Mãe Natureza.
Para mim, todas essas profecias são apenas um barulho ideológico, destinado a obscurecer o perigo real a que a humanidade está hoje exposta: isto é, o impasse a que o capitalismo globalizado está nos conduzindo. De fato, é essa forma de sociedade – e somente ela – que permite a exploração destrutiva dos recursos naturais, precisamente porque conecta essa exploração à busca ilimitada pelo lucro privado. O fato de que tantas espécies estão ameaçadas, que a mudança climática não pode ser controlada, que a água está se tornando um tesouro raro, é um subproduto da impiedosa competição entre predadores bilionários. Não há outra razão para o fato de que a inovação científica está sujeita à questão de quais tecnologias podem vender, em um mecanismo de seleção anárquico.
A pregação ambientalista às vezes usa descrições persuasivas do que está acontecendo – apesar dos exageros típicos do profeta. Mas na maioria das vezes isso se torna mera propaganda, útil para aqueles estados que querem mostrar seu rosto amigável. Assim como o é para as multinacionais que querem que acreditemos – para o maior benefício de seus balanços – na pureza natural, fraterna e nobre das mercadorias que eles traficam.
O fetichismo da tecnologia e a série ininterrupta de “revoluções” neste domínio – das quais a “revolução digital” é a mais em voga – espalharam constantemente tanto as crenças de que ela nos levará ao paraíso de um mundo sem trabalho – com robôs para nos servir, e nós deixando livres ao ócio – e também, por outro lado, que esse “pensamento” digital irá esmagar o intelecto humano. Hoje não há uma revista que não informe seus impressionados leitores da iminente “vitória” da inteligência artificial sobre a natural. Mas na maioria dos casos, nem a “natureza” nem o “artificial” são definidos de maneira clara ou adequada.
Desde a sua origem a filosofia também dedicou uma grande dose de pensamento para a tecnologia, ou as artes. Os gregos meditavam sobre a dialética da Techne e Physis – uma dialética dentro da qual eles situavam o animal humano. Eles estabeleceram a base para que esse animal fosse visto como “uma vareta, a mais fraca da natureza, mas … uma vareta pensante”. Para Pascal, isso significava que a humanidade era mais forte que a natureza e mais próxima de Deus. Há muito tempo, eles viram que o animal capaz de matemáticas faria grandes coisas à ordem da materialidade.
São estes “robôs” sobre os quais eles continuam martelando qualquer coisa mais do que o cálculo na forma de uma máquina? Dígitos em movimento? Sabemos que eles podem contar mais rápido que nós, mas fomos nós que os inventamos, precisamente para cumprir essa tarefa. Seria estúpido olhar para um guindaste levantando um pilar de concreto até uma grande altura, usar isso para argumentar que o homem é incapaz da mesma façanha, e então concluir dizendo que algum gigante muscular sobrehumano emergiu … Contagem-relâmpago também não é sinal de uma “inteligência” insuperável. O transumanismo tecnológico toca a mesma velha melodias – um tema inesgotável de filmes de terror e ficção científica – do criador dominado por sua própria criação. Ele o faz emocionado com o advento do super-homem – algo que esperávamos desde Nietzsche – ou temendo-o e refugiando-se sob a saia de Gaia, a Mãe Natureza.
Vamos colocar as coisas em um pouco mais de perspectiva.
Durante quatro ou cinco milênios, a humanidade foi organizada pela tríade da propriedade privada – que concentra enorme riqueza nas mãos de oligarquias muito estreitas; da família, na qual as fortunas são transmitidas via herança; e do estado, que protege a propriedade e a família pela força armada. Essa tríade definiu a era neolítica de nossa espécie, e nós ainda estamos neste ponto – podemos até dizer, agora mais do que nunca. O capitalismo é a forma contemporânea do neolítico. Sua escravização da tecnologia ao interesse da competição, do lucro e do capital concentrador apenas eleva em sua extensão as desigualdades monstruosas, os absurdos sociais, as guerras assassinas e as ideologias prejudiciais que sempre acompanharam a implantação de novas tecnologias sob o domínio da classe hierárquica ao longo da história.
Devemos deixar claro que as invenções tecnológicas foram as condições preliminares da chegada da era neolítica, e de modo algum seu resultado. Se considerarmos o destino da nossa espécie, vemos que a agricultura sedentária, a domesticação de gado e cavalos, cerâmica, bronze, armas metálicas, escrita, nacionalidades, arquitetura monumental e as religiões monoteístas são invenções pelo menos tão importantes quanto o avião ou o smartphone. Ao longo da história, o que quer que tenha sido humano sempre foi, por definição, artificial. Se isso não existisse, não haveria a humanidade neolítica, – a humanidade que conhecemos – mas uma permanente proximidade com a vida animal; algo que realmente existiu, na forma de pequenos grupos nômades, por cerca de 200.000 anos.
Um primitivismo temeroso e obscurantista tem suas raízes no conceito falacioso do “comunismo primitivo”. Hoje podemos ver esse culto das antigas sociedades em que bebês, homens, mulheres e idosos supostamente viviam em fraternidade, sem nada artificial, e de fato viviam em comum com os ratos, as rãs e os ursos. Em última análise, tudo isso não é nada além de propaganda reacionária ridícula. Pois tudo sugere que as sociedades em questão eram extremamente violentas. Afinal, até mesmo suas necessidades mais básicas de sobrevivência estavam constantemente sob ameaça.
Falar com medo da vitória do artificial sobre a natureza, do robô sobre o homem, é hoje uma regressão insustentável, algo verdadeiramente absurdo. É bastante fácil responder a tais medos, tais profecias. Ao julgar por este padrão, até mesmo um simples machado, ou um cavalo domesticado, para não mencionar um papiro coberto de símbolos, é um caso exemplar do pós ou trans-humano. Até um ábaco permite cálculos mais rápidos que os dedos da mão humana.
Hoje não precisamos nem de um retorno ao primitivismo, nem do medo das “devastações” que o advento da tecnologia pode trazer. Tampouco há qualquer utilidade no fascínio mórbido pela ficção científica de robôs conquistadores. A tarefa urgente que enfrentamos é a busca metódica por uma saída da ordem neolítica. Esta última durou milênios, valorizando apenas a competição e a hierarquia e tolerando a pobreza de bilhões de seres humanos. Deve ser superada a todo custo. Exceto, isto é, ao custo das guerras de alta tecnologia tão bem conhecidas na era neolítica, na linhagem das guerras de 1914-1918 e 1939-1945, com suas dezenas de milhões de mortos. E desta vez poderia ser muito mais.
O problema não é tecnologia ou a natureza. O problema é como organizar as sociedades em escala global. Precisamos postular que uma maneira não-neolítica de organizar a sociedade é possível. Isso significa que não há propriedade privada daquilo que deve ser tido em comum, ou seja, a produção de todas as necessidades da vida humana. Isso significa que não há poder herdado ou concentração de riqueza. Nenhum estado separado para proteger as oligarquias. Nenhuma divisão hierárquica do trabalho. Nenhuma nação, e nenhuma identidade fechada e hostil. Uma organização coletiva de tudo que é de interesse coletivo.
Tudo isso tem um nome, na verdade, um bonito nome: comunismo. O capitalismo é apenas a fase final das restrições que a forma neolítica de sociedade impôs à vida humana. É o estágio final do Neolítico. A humanidade, esse belo animal, deve dar um último impulso para sair de uma condição em que 5.000 anos de invenções serviram a um punhado de pessoas. Por quase dois séculos – desde Marx, de qualquer forma – sabemos que temos que começar a nova era. Uma era de tecnologias incríveis para todos nós, de tarefas distribuídas igualmente entre todos nós, da partilha de tudo e da educação que afirma a genialidade de todos. Talvez este novo comunismo, em toda parte e em toda questão, resista à sobrevivência mórbida do capitalismo. Esse capitalismo, essa aparente “modernidade”, representa um mundo neolítico que, de fato, vem acontecendo há cinco milênios. E isso significa que ele é velho – velho demais.
1 comentário em “O neolítico, o capitalismo e o comunismo”
Texto lindo… Animou meu dia!