Por Anita Leocadia Prestes, via PCB
Neste artigo, Anita Leocadia Prestes (professora do Programa de Pós-graduação em História Comparadada (PPGHC) da UFRJ) apresenta seu balanço crítico do etapismo brasileiro, que marcou a política do PCB antes de sua Reconstrução Revolucionária, iniciada apenas nos anos 90. O texto permite avaliar as diferentes táticas ensaiadas em torno da estratégia nacional-libertadora.
Nos debates existentes sobre a memória e a história do PCB (Partido Comunista Brasileiro), ao analisar dois documentos representativos da trajetória dos comunistas no Brasil – o “Manifesto de Agosto de 1950” e a “Declaração de Março de 1958” (Carone, 1982b:176-196) -, tornados públicos num intervalo de apenas oito anos, é frequente caracterizá-los como a representação de posicionamentos político-ideológicos opostos.
O “Manifesto de Agosto de 1950” seria a expressão de um compromisso dos comunistas brasileiros com a revolução, de uma declarada determinação de recorrer às armas para derrubar os governos de “traição nacional”, conforme eram definidos os governos de E. Dutra e de G. Vargas. Seria um documento marcado pelo esquerdismo, mas revelador do perfil revolucionário do PCB, do seu distanciamento de qualquer tendência oportunista de direita, ou seja, reformista burguesa.
Já a “Declaração de Março de 1958” representaria uma guinada à direita na política dos comunistas – uma adesão ao reformismo burguês, ou seja, a sujeição dos interesses da classe operária aos da burguesia, uma ilusão de que através de reformas do capitalismo seria possível alcançar a emancipação dos trabalhadores. Para alguns analistas, semelhante postura reformista seria altamente reprovável e, em alguns casos, poderia ser considerada uma traição aos trabalhadores, enquanto o esquerdismo do “Manifesto de Agosto” seria desculpável, pois ficaria mantida a fidelidade à revolução.
Aparentemente estaríamos diante de duas concepções divergentes do processo de transformação estrutural da sociedade brasileira: a primeira, revolucionária; a segunda, reformista. O PCB teria sido fiel à concepção revolucionária até a virada reformista ocorrida com a “Declaração” de 1958.
Ao analisar a concepção da revolução brasileira adotada pelo PCB desde a sua fundação em 1922, torna-se particularmente oportuno recorrer às teses de V. Lenin sobre os desvios ideológicos no seio do movimento operário, cuja justeza é confirmada por toda a história do movimento comunista internacional. Com base não apenas na teoria como na prática revolucionária, Lenin mostrou que tanto o oportunismo de direita, identificado com o empenho nas reformas e o abandono dos objetivos revolucionários, quanto o esquerdismo, que se distingue pela fraseologia revolucionária e a atitude voluntarista do assalto imediato ao poder, são faces de uma mesma moeda – a presença da ideologia burguesa ou pequeno-burguesa no movimento socialista ou comunista. Em outras palavras, trata-se de irmãos gêmeos. Seus adeptos revelam-se incapazes de compreender a complexidade do processo de transformação revolucionária das sociedades humanas. Os oportunistas de direita consideram que as reformas são tudo, abdicando da formação das forças sociais e políticas destinadas a alcançar o poder; os esquerdistas menosprezam as reformas e postulam a derrubada do poder através de apelos inflamados e de atos voluntaristas, também subestimando a preparação dos setores populares para a luta pelo poder político. (Lenin, 1960; 1959: 187)
Qual foi, entretanto, a concepção da revolução brasileira adotada pelo PCB desde seus primeiros anos de existência? Chama a atenção que, num aparente paradoxo, o partido que se intitulava “vanguarda da classe operária”, e adotava o “internacionalismo proletário” como princípio fundamental, estivesse comprometido com posições nacionalistas não só em seus documentos como na ação política cotidiana. Ainda no II Congresso do PCB, realizado em 1925, condenava-se a dominação imperialista do país e eram propostos caminhos que apontassem para a emancipação nacional, ou seja, para a superação da subordinação dos interesses nacionais ao imperialismo inglês e estadunidense. (Brandão, 2006). O socialismo não estava em pauta naquele momento.
Desde os anos 1920, o PCB seguiria a estratégia política da “revolução democrático-burguesa” – adotada pela Internacional Comunista (IC) para os países classificados como coloniais e semicoloniais – ou, em outras palavras, da chamada “revolução agrária e anti-imperialista”, no caso brasileiro. De acordo com tal diretriz, a luta nacional-libertadora pela superação da dominação imperialista constituiria o aspecto fundamental dessa etapa da revolução. Segundo a estratégia adotada pela IC, e seguida pelo PCB, haveria um segundo momento da revolução – a etapa socialista, para cuja realização seria necessário conquistar a “hegemonia do proletariado” na fase anterior, agrária e anti-imperialista (Carone, 1982a).
A definição do caráter “democrático-burguês” da revolução brasileira (da mesma forma que da revolução na maioria das nações latino-americanas, segundo os documentos da IC) refletia o mimetismo vigente entre os comunistas da época. Tratava-se da cópia das teses formuladas por Lênin sobre a Rússia czarista e o caráter da revolução nesse país. A “análise concreta da situação concreta” levara Lênin a escrever que a monarquia russa era o esteio dos latifundiários feudais, da velha burocracia e do generalato (Lênin, 1972: 25), constituindo tais fatores um entrave para o “desenvolvimento vasto e rápido, europeu e não-asiático do capitalismo” (Lênin, 1945: 73). Lenin afirmava:
Em países tais como a Rússia, a classe operária sofre menos em consequência do capitalismo do que pela insuficiência de desenvolvimento desse último. Por isso, a classe operária está absolutamente interessada no mais vasto, mais livre, mais rápido desenvolvimento do capitalismo. É indubitavelmente benéfica para a classe operária a eliminação de todas as velhas reminiscências que entorpecem o desenvolvimento amplo, livre e rápido do capitalismo. A revolução burguesa é, exatamente, a revolução que mais decididamente varre os restos do que é antiquado, as reminiscências do feudalismo (as quais pertencem não só à autocracia, mas também à monarquia) e garante, de modo mais completo, o desenvolvimento mais amplo, mais livre, mais rápido do capitalismo.(Idem: 75- 76; grifos do autor)
Lênin mostrava que, nas condições da Rússia do início do século XX, na época do imperialismo, a burguesia só era a favor da revolução de uma “forma inconsequente, interesseira e covarde” (idem: 152). A única classe capaz de levar a revolução burguesa até o fim, segundo o líder da Revolução Russa, era o proletariado em aliança com os camponeses. Eis a razão do caráter “democrático-burguês” da revolução e da necessidade de o proletariado alcançar a hegemonia no processo revolucionário para assegurar sua continuidade rumo à etapa socialista da revolução.
As tendências dogmáticas tanto na IC quanto no PCB propiciaram a transposição mecânica das teses leninistas para uma realidade distinta, como era o caso da América Latina, em geral, e do Brasil, em particular. Em vez de adotar-se como ponto de partida o exame da situação presente nesses países, identificava-se no campo um suposto feudalismo, que, juntamente com o imperialismo, constituiriam entraves ao desenvolvimento do capitalismo. Enquanto na realidade o capitalismo encontrava novas formas de expandir-se, nas condições de subordinação aos grandes grupos internacionais e de manutenção de relações de produção não-capitalistas na agricultura, os comunistas pretendiam realizar a revolução agrária e anti-imperialista – a forma que a etapa democrático-burguesa deveria assumir nos países definidos como semicoloniais.
Ao mesmo tempo, no Brasil, de longa data, a questão nacional estivera presente no debate intelectual (Oliveira, 1990) e, nos momentos de crise, passaria a “englobar e sintetizar as demais”, levando a que o nacionalismo se transformasse em um “conceito inclusivo” (idem: 23). Da mesma maneira, é possível dizer que “historicamente, a construção do nacionalismo” se constituiu “em uma das preocupações fundamentais dos intelectuais” (Velloso, 2003: 149). Entretanto, é no período da Primeira Guerra Mundial que, nas palavras de Daniel Pécaut, “o nacionalismo invadiu a cultura brasileira” (Pécaut, 1990: 15) e, segundo Renato Ortiz, ocorre a “emergência de um espírito nacionalista, que procura se desvencilhar das teorias raciais e ambientais características do início da República Velha” (Ortiz, 1985: 22).
Dessa forma, as concepções nacional-libertadoras adotadas pelo PCB frutificaram no Brasil graças à sua aceitação por amplos setores sociais influenciados pelo pensamento nacionalista. Se as teses citadas encontraram repercussão não só entre os comunistas, como também junto a outros setores da sociedade brasileira, isso se deveu, em grande medida, à circunstância de tais posições tenderem a convergir com os sentimentos nacionalistas amplamente difundidos na sociedade civil do país, dentre os quais se destacava a preocupação com a garantia da soberania nacional. Fica claro, portanto, que a política do PCB não foi um mero reflexo de supostas imposições da IC ou do movimento comunista internacional, como frequentemente se afirma.
Como procurei mostrar em trabalhos anteriores, o nacionalismo – ou seja, as propostas de caráter nacional-libertador – esteve cada vez mais presente na política do PCB seja no início dos anos trinta, culminando com a participação dos comunistas na Aliança Nacional Libertadora (ANL) e nos levantes antifascistas de novembro de 1935, seja no período posterior, de 1938 a 1947, quando o partido adotou a consigna de “União Nacional” com o próprio Getúlio Vargas visando derrotar o fascismo e alcançar a democracia (Prestes, A. L.,1997; 2001; 2010).
No que se refere ao papel da ANL, pode-se dizer que “num período de intensa polarização política no cenário mundial, diante do avanço do fascismo em nível internacional e do integralismo em âmbito nacional”, a ANL “ajudou a formar, no Brasil, uma consciência antifascista, anti-imperialista e antilatifundista, que a derrota de novembro de 35 não seria capaz de apagar”. Consciência que, “embora naquele momento histórico tivesse sido abafada pelos donos do poder, viria a ressurgir mais tarde, com grande força, a partir das lutas pela entrada do Brasil na Guerra (…) e pela democratização do país” (Prestes, A.L., 1997: 141-142, 74).
Vale lembrar que, em 1930, Luiz Carlos Prestes, na época a maior liderança popular e de oposição ao poder das oligarquias, com seu célebre Manifesto de Maio, aderira de público às posições nacional-libertadoras do PCB. Alguns anos mais tarde, com o avanço mundial dos regimes fascistas e a crescente ameaça do integralismo no Brasil, as posições nacional-libertadoras dos comunistas e de parte significativa de seus aliados se associariam às bandeiras do antifascismo e do anti-integralismo. A Aliança Nacional Libertadora (ANL), fundada em março de 1935, foi a expressão mais clara de tal entrelaçamento entre as posições nacional-libertadoras e antifascistas, o que encontrava reflexo em seu programa, cujos pontos principais foram a luta contra o imperialismo, pela reforma agrária, contra o fascismo e o integralismo (idem, 1997).
É paradigmática a carta dirigida por Prestes, presidente de honra da ANL, a Roberto Sisson, secretário da entidade, em setembro de 1935. Prestes se referia à “grande causa da libertação nacional do nosso país”, acrescentando a seguir:
A ANL é um movimento nacional que luta realmente pela independência do Brasil e pelo bem estar do seu povo. (…) luta pela emancipação nacional do nosso povo. (Prestes, L. C., s.d.:15-17)
Adiante Prestes afirmava: “a quase totalidade da população do país é nacionalista”, referindo-se à ANL como “nossa frente única anti-imperialista e antifascista”. Propunha a luta “contra o imperialismo e contra o fascismo” e defendia a necessidade de “organizar um grupo anti-integralista e anti-imperialista no Parlamento”. Finalmente, defendia “a vitória da ANL, a instalação de um governo popular e nacionalista realmente democrático e anti-imperialista” (idem: 17-19).
Se em 1930 Prestes defendera a estratégia da “revolução agrária e anti-imperialista”, nos anos seguintes, tal objetivo não só não fora abandonado, mas se apresentaria associado à luta contra o fascismo e o integralismo. Em carta ao tenente Severo Fournier, escrita da prisão, em 1938, Prestes reafirmava o caráter nacional-libertador do movimento aliancista e propunha três pontos a serem defendidos por todos os patriotas:
1)Democracia; 2)”Nacionalismo (não chauvinismo),isto é, medidas práticas que assegurem a nossa emancipação econômica (como a criação de uma indústria pesada e efetivamente nacional) e que facilitem a organização da defesa nacional”; 3) Bem-estar do povo. (Prestes, L. C., s. d.: 25)
Mais tarde, em especial a partir de 1938, passariam a predominar em amplos e diversificados setores da sociedade brasileira as posições nacionalistas, nutridas basicamente pelo temor diante do perigo do expansionismo das potências do Eixo e, em particular, das ameaças de agressão à soberania nacional por parte do nazifascismo. (Prestes, A. L., 2001: cap. VII).
Formava-se, no Brasil, um tipo de “nacionalismo antifascista”, que, conforme E. Hobsbawm, “emergiu no contexto de uma guerra civil-ideológica internacional, na qual uma parte das numerosas classes dominantes nacionais parecia optar por um alinhamento político internacional das direitas, e por Estados identificados com ele”. (Hobsbawm, 1990: 174-175; grifo do autor)
Segundo Hobsbawm, “tais partidos domésticos de direita então se despojaram do apelo ao patriotismo xenófobo”, o que “facilitou às esquerdas tomarem de volta a bandeira nacional do pulso, agora frouxo, das direitas”. Prosseguindo na análise do “reencontro da revolução social com o sentimento patriótico”, o historiador inglês assinala que “trabalhadores e intelectuais também fizeram uma escolha internacional, mas a que justamente reforçava o sentimento nacional” (idem: 175; grifo do autor). E conclui que “o nacionalismo antifascista estava sem dúvida engajado num conflito ao mesmo tempo social e nacional, como se tornou claro no final da Segunda Guerra Mundial” (idem: 175-176).
É importante lembrar que o sentimento nacionalista não era novo no Brasil e que, para o surgimento no país do “nacionalismo antifascista”, fora decisiva a atuação da ANL.
No Brasil, a tática de “União Nacional”, adotada pelos comunistas a partir de 1938, levou seus dirigentes e militantes a se inserirem de maneira espontânea e pouco crítica no movimento generalizado de repúdio às ameaças expansionistas e agressoras do nazifascismo europeu, secundado pelos integralistas, seus agentes internos em nosso país. Movimento que empolgou setores muito amplos do espectro político brasileiro, incluindo numerosas camadas populares.
Se o nacionalismo antifascista foi um sentimento generalizado no cenário mundial, no Brasil, dada a gravidade da ameaça do expansionismo nazifascista, tal fenômeno não poderia deixar de estar marcado pelas especificidades da situação presente no país.
Entre tais especificidades, considerei necessário examinar o papel desempenhado pelos comunistas brasileiros (Prestes, A. L., 2001). A análise da atuação do PCB nesse período nos revela que, após os acontecimentos de novembro de 1935, os comunistas, profundamente golpeados e desarticulados, com grandes dificuldades para restabelecer os contatos com a IC, não tiveram condições de manter uma postura ideologicamente independente.
A ausência, por parte do PCB, de uma justa compreensão da realidade do país, contribuiu para que a direção do Partido tivesse dificuldade de formular uma orientação política capaz de articular adequadamente a luta pela democracia no plano internacional, ou seja, o combate ao nazifascismo e aos seus agentes internos, com a luta pela democratização do país – contra o regime ditatorial do Estado Novo – e o empenho necessário para a construção das forças sociais e políticas capazes de levarem adiante um projeto voltado para a emancipação econômica e social do país. Um projeto que apontasse para uma efetiva transformação socialista, conforme constava dos documentos programáticos do PCB (idem).
Tais impasses na trajetória do movimento comunista no Brasil teriam como consequência a transformação do PCB num partido sob a influência das ideias nacionalistas presentes na sociedade brasileira. Um partido progressista, em que, entretanto, o conflito entre trabalho e capital ficaria relegado a um segundo plano.
Se o PCB, desde o início de sua formação, sofrera forte influência das ideias e das posturas nacionalistas presentes na sociedade brasileira da época, nos anos 1940-1950 – quando o nacionalismo se tornou um verdadeiro “divisor de águas” (Sodré, 2006: 93), – a adesão do PCB às teses nacionalistas então em voga seria particularmente marcante (Prestes, A. L., 2010). Com o “Manifesto de Agosto de 1950”, os comunistas brasileiros abandonavam a política anterior de amplas alianças, incluindo setores burgueses, assim como a aposta na via eleitoral, para adotar o “caminho revolucionário” entendido como o recurso à “luta armada pela libertação nacional” . Mas a estratégia da revolução permanecia a mesma de antes – uma revolução democrático-burguesa ou agrária e anti-imperialista, definida como “revolução democrática em sua forma e burguesa pelo seu conteúdo econômico e social”, que só poderia ser realizada “sob a direção do proletariado” . Embora, nos documentos partidários a tática tivesse sofrido uma inflexão à esquerda com a adoção da consigna de “derrubada do atual governo”, o PCB mantinha-se fiel ao ideário nacional-libertador que sempre norteara suas ações. Continuava presente na agenda dos comunistas brasileiros a conquista de um capitalismo autônomo, objetivo a ser alcançado por meio da revolução nacional-libertadora.
Diante da permanência de semelhante concepção da revolução brasileira – nacional-libertadora, comprometida com um projeto de implantação no Brasil de um capitalismo autônomo -, seria possível aceitar a definição do “Manifesto de Agosto” como de caráter revolucionário? Ou, na realidade, temos uma estratégia reformista que, na prática, não contribuiu para o avanço da organização das forças sociais e políticas capazes de levarem adiante o processo revolucionário brasileiro, que, nas condições existentes na América Latina e no Brasil, durante o século XX, só poderia ter sucesso se direcionado para a transformação socialista dessas sociedades?
Ainda no final da década de 1920, José Carlos Mariátegui afirmava o caráter socialista da revolução na América Latina, embora o revolucionário peruano registrasse a necessidade de considerar as peculiaridades do capitalismo em cada país do nosso continente e defendesse a luta por um socialismo que não fosse “nem cópia nem decalque, mas sim invenção heroica” dos nossos povos (Mariátegui, 2008: 153). A esse respeito, ele escrevia:
Sin prescindir del empleo de ningún elemento de agitación anti-imperialista, ni de ningún médio de movilización de los sectores sociales que eventualmente pueden concurir a esta lucha, nuestra misión es explicar y demonstrar a las masas que sólo la revolución socialista opondrá al avance del imperialismo uma valla definitiva y verdadera. (Idem: 51)
Sem negar que a revolução socialista constitui um processo, que em cada país terá suas particularidades, Mariátegui verificara que, no século XX, o imperialismo penetrara profundamente e se articulara estreitamente com as diversas relações de produção existentes em cada nação do subcontinente latino-americano. Tornara-se, portanto, impossível derrotar o imperialismo sem avançar no caminho da revolução socialista. O problema era, e continuou sendo, como empreender, na prática, tal caminho sem se desviar para o etapismo e o decorrente reformismo, de acordo com o qual a solução revolucionária acaba sendo abandonada (Borón, 2010).
Ao aprovar a “Declaração de Março de 1958”, a direção do PCB, sob o impacto dos acontecimentos tanto na arena internacional quanto no cenário nacional, empreendia, mais uma vez, uma virada tática na política partidária – o abandono da luta armada e a adoção do caminho pacífico e eleitoral -, sem que mudasse a estratégia da revolução, agrária e anti-imperialista. A partir desse documento, a primeira etapa da revolução passaria a ser denominada de nacional e democrática, sublinhando-se assim o seu caráter nacional-libertador (Prestes, A. L., 2010; 2012).
Tal definição da revolução brasileira como nacional-libertadora significava a adoção da sua concepção etapista. Pretendia-se, primeiro, eliminar a dominação do imperialismo e a presença do latifúndio, propiciando assim o desenvolvimento de um capitalismo supostamente autônomo, para, num segundo momento, criar as condições que iriam permitir a realização das transformações socialistas. Dessa maneira, a luta contra o imperialismo e pela reforma agrária era separada artificialmente da luta pelo socialismo. Não se percebia que, para golpear efetivamente o imperialismo e seus aliados internos, seria necessário desfechar um golpe mortal no próprio sistema capitalista.
A estratégia da revolução nacional e democrática seria mantida nos documentos do PCB, incluídas as resoluções do seu VI Congresso, realizado no final de 1967. Mas a tática passaria por sucessivas guinadas, por vezes drásticas, determinadas pelas mudanças conjunturais na política nacional.
Com o golpe civil-militar de 1964, o PCB concentraria seus esforços na luta pela formação de uma ampla frente antiditatorial com o objetivo de derrotar a ditadura instaurada no país. Mais uma vez, a presença de uma definição estratégica falsa, que não contemplava a preparação das forças sociais e políticas para a realização de transformações profundas, que apontassem para o socialismo, levaria o PCB a ficar a reboque dos políticos da burguesia liberal na luta contra a ditadura. O PCB dissolvia-se no seio da oposição consentida – o MDB (Movimento Democrático Brasileiro) -, sem conseguir levar adiante propostas que permitissem aos trabalhadores e aos setores populares avançar rumo à conquista de uma democracia que ultrapassasse os estreitos limites da democracia burguesa. Na realidade, a “transição” da ditadura para o regime democrático, que ficou consagrado na Constituição de 1988, seria extremamente limitada. (Prestes, A. L., 2012).
Se nos anos 50, o PCB, com o “Manifesto de Agosto”, adotara uma tática esquerdista, a partir da “Declaração de Março de 1958”, as táticas postas em prática oscilaram entre posições ora mais à “direita” ora mais à “esquerda”, como aconteceu com a diretriz de luta contra a “conciliação de João Goulart”, às vésperas do golpe de 1964 (idem: 69-79). Na verdade, a tática mudava ao sabor dos acontecimentos; não era decorrência de uma concepção estratégica que estivesse contribuindo para acumular forças direcionadas para transformações estruturais profundas, que, nas condições então existentes no país e no mundo, deveriam apontar para o socialismo.
Embora os comunistas tivessem sempre participado de todas as lutas pelas causas justas do povo brasileiro (direitos sociais, liberdades públicas, reforma agrária, defesa do petróleo, etc.), por uma série de razões históricas, dentre as quais se destaca o atraso cultural do país, não tiveram êxito na formulação de uma estratégia para a revolução brasileira que correspondesse à realidade nacional durante o século XX. Uma estratégia política baseada numa concepção falsa teria que conduzir a táticas improvisadas e desligadas do processo de organização das forças sociais e políticas capazes de conduzir os setores populares adiante, rumo a transformações cada vez mais profundas e significativas. Uma estratégia política falsa levou o PCB à crise, denunciada por Luiz Carlos Prestes em sua “Carta aos comunistas” (Prestes, L.C., 1980), e ao colapso organizativo do partido a partir dos anos 1980. (Prestes, A. L., 2012).
Uma falsa estratégia marcou tanto o “Manifesto de Agosto de 1950” quanto a “Declaração de Março de 1958”; ambos os documentos foram fruto da concepção nacional-libertadora da revolução no Brasil que permaneceu na história do PCB durante toda sua trajetória política. Ambos os documentos revelam a influência da ideologia burguesa na direção do PCB, criando dificuldades ao avanço do processo revolucionário no País.
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