Por Alfredo Saad Filho, via Revista Crítica Marxista
Este artigo interpreta a crise econômica e a crise política brasileira a partir de duas contradições: uma geral, entre os princípios inclusivos da transição democrática e os princípios excludentes da transição ao neoliberalismo, e outra mais concreta, entre as ambições petistas e o ‘tripé’ macroeconômico neoliberal imposto em 1999. Em circunstâncias favoráveis, os governos do PT puderam desarmar a direita, desmobilizar os trabalhadores e desconectar a esquerda radical de sua base social. Em circunstâncias adversas, aquelas contradições levaram à convergência das crises econômica e política, destruindo as alianças que sustentaram o PT e revertendo parcialmente os avanços econômicos, distributivos e sociais dos anos 2000. Comprovou-se, então, que o que era durável na experiência petista era a sua base econômica neoliberal, e o que era insustentável era a política distributiva superposta ao modelo econômico. Essas tensões foram destrutivas para a base social do governo, e favoreceram o surgimento de uma Nova Direita no país.
O Brasil atravessa uma severa crise econômica, comum aos países de renda média, e uma crise política de gravidade única mesmo entre os países latino-americanos da ‘Onda Rosa’. Essa crise inclui um profundo descontentamento social, o surgimento de uma ‘Nova Direita’, sucessivos escândalos de corrupção enredando políticos e empresários importantes, e uma campanha sem precedentes de ódio ao PT e à esquerda.
Esse artigo examina essas crises a partir de duas contradições. Primeiro, a contradição geral entre os princípios inclusivos da transição democrática, expressos no capítulo social da Constituição de 1988, e os princípios excludentes da transição ao neoliberalismo. Segundo, a contradição mais concreta entre as ambições das políticas sociais dos governos petistas, e as políticas do ‘tripé’ neoliberal imposto em 1999 (metas de inflação, liberdade de movimentos de capital e flutuação cambial, e políticas fiscais contracionistas). Essas contradições limitaram o projeto petista e levaram à convergência das crises econômica e política, destruindo os eixos de poder do PT: as alianças sociais que sustentaram o governo Lula, e os avanços econômicos dos anos 2000.
Transições em Contradição
Dois aspectos da transição democrática merecem destaque. Primeiro, o surgimento do PT no final dos anos setenta, congregando setores de esquerda e camadas populares, médias e intelectuais, e expressando a nova organização dos trabalhadores do setor formal. Segundo, a fundação de um Estado de Bem-Estar através da Constituição de 1988, a partir de direitos sociais na baseados na universalidade, seguridade social e cidadania, ao invés da focalização, seguro privado ou caridade.
Esses sucessos da esquerda foram sucedidos pela rearticulação das forças conservadoras no final dos anos oitenta, levando a transição democrática a ser sucedida pela transição econômica ao neoliberalismo. As ‘reformas’ foram justificadas pela ‘exaustão’ do Estado desenvolvimentista e a ‘luta contra a inflação’.
A transição neoliberal transformou a economia, a estrutura social e os padrões de emprego no Brasil. A contração permanente da demanda limitou o crescimento e deprimiu o investimento, num círculo vicioso. Nos anos noventa, 54% dos empregos criados foram informais ou não assalariados e, em 1997, o setor informal empregava 25% dos trabalhadores urbanos. O desemprego nas áreas metropolitanas cresceu de 8,7%, em 1989, para 18,3%, em 1998. Esses processos reduziram a fatia dos trabalhadores na renda nacional de 50%, em 1980, para 36% no início dos anos 2000. Eles foram acompanhados por uma grave deterioração fiscal. Apesar da austeridade e do aumento de impostos em 10% do PIB, a dívida pública doméstica cresceu de 33% do PIB, em 1993, para 55%, em 2002.[i]
Inevitavelmente, a expansão da provisão de bens e serviços públicos imposta pela Constituição se chocou com os limites políticos e orçamentários do neoliberalismo: enquanto este ampliava as necessidades sociais, devido à perda de dinamismo econômico, aumento do desemprego e informalização do trabalho, ele reduzia a capacidade e interesse do Estado em atender essas necessidades.
Avanços …
A eleição de Lula, em 2002, deveu-se à exaustão do modelo neoliberal dos governos Collor, Itamar e FHC, e à formação de uma ‘aliança de perdedores’ incluindo amplas camadas que haviam sofrido perdas sistemáticas sob o neoliberalismo, capitaneada pela grande burguesia interna e apoiada pelos trabalhadores do setor formal.[ii] Entretanto, essa vitória política requereu a neutralização da base tradicional de apoio do PT e garantias de continuidade do ‘tripé’ macroeconômico introduzido no governo FHC.
Esse modelo levou a um crescimento econômico medíocre, até a economia brasileira ser impulsionada pelo ‘boom’ das commodities em 2003-04. Esse boom, as políticas distributivas do governo Lula (especialmente o aumento do salário mínimo, a expansão dos benefícios sociais e a formalização do trabalho), e o apoio aos setores com vantagens competitivas imediatas, especialmente o agribusiness, a mineração e o petróleo, sustentaram um breve circulo virtuoso que, no final dos anos 2000, parecia ter transformado a base econômica do país.
O primeiro governo Rousseff tentou intensificar esse circulo virtuoso sem perceber que sua base material fora superada pela crise global. A tentativa de internalizar o motor do crescimento através do relaxamento das políticas fiscais e monetárias, o investimento público, as intervenções setoriais, os créditos do BNDES, o endividamento privado e a expansão das políticas sociais não teve sucesso (ver abaixo).[iii]
Apesar desses limites, evidentes retrospectivamente, o padrão de crescimento foi distributivo, pelo menos até 2012. Isso fica evidente na criação de empregos (21 milhões de empregos criados nos anos 2000, contra 11 milhões nos anos noventa), sua concentração no segmento de baixos salários (90% dos novos empregos pagavam até 1,5 salários mínimos, em contraste com 51% nos anos noventa), e a formalização do mercado de trabalho (80% dos novos empregos no setor formal, que passou de 45% para 51% da força de trabalho). O desemprego caiu especialmente entre os trabalhadores de baixa renda. Após uma década de estagnação, os salários reais cresceram 4,2% ao ano entre 2003 e 2012, e o salário mínimo cresceu 72% entre 2005 e 2012, impactando tanto o mercado de trabalho quanto as transferências federais. A renda dos 10% mais pobres cresceu 6,3% ao ano entre 2001 e 2011, enquanto a renda dos 10% mais ricos cresceu apenas 1,4% ao ano. A pobreza declinou fortemente, e a distribuição melhorou: o coeficiente de Gini caiu de 0,60 no início do milênio para 0,53 em 2012.[iv]
… e Limites do Poder Petista
O crescimento econômico foi limitado pelo seu motor externo, pelo tripé neoliberal, e por uma política industrial tímida. Esses limites intensificaram a sobrevalorização cambial, a desindustrialização e a reprimarização da economia, e bloquearam a expansão da infraestrutura econômica e social. Apesar de um sucesso temporário respondendo à crise global, em 2009-10, logo ficou claro que a burguesia jamais encampou a internalização das fontes do crescimento. O investimento privado estagnou, a crise global se prolongou mais do que o governo esperava, e os países centrais inundaram o planeta com divisas. O real ficou muito valorizado, e o diferencial de juros, crescimento e produtividade entre o Brasil e os países centrais expandiu os déficits correntes rumo à insustentabilidade.
No campo político, a ‘aliança de perdedores’ se estreitou até o desaparecimento. Esse processo foi temporariamente compensado pela expansão das políticas sociais, que atraiu a Lula e Dilma amplas massas desorganizadas. Entretanto, o governo perdeu sistematicamente outras fontes de apoio. Essa hemorragia social e política foi marcada pela alienação da alta classe média devido ao ‘mensalão’ e às políticas de inclusão social, que diluíram a proeminência daquele grupo da elite. A burguesia financeira foi apaziguada pelos ganhos devidos à continuidade das políticas neoliberais, mas se afastou do governo Dilma com a tentativa de desmonte do tripé macroeconômico. A burguesia interna se afastou devido às políticas erráticas do governo e pela falta de influência sobre o Executivo.[v] Os três grupos passaram a compartilhar o discurso neoliberal midiático de que o Estado estava ‘fora de controle’ e a economia em declínio terminal.
Os trabalhadores organizados foram alijados pela virada ortodoxa do governo, a deterioração da economia, a escassez de empregos qualificados e a percepção de corrupção no Estado, enquanto os trabalhadores informais também foram afetados pelas restrições às políticas sociais. Essa insatisfação surda se agravou com a deterioração da vida urbana devido à falta de investimentos em infraestrutura.
Por fim, os governos petistas tiveram relações complexas com o Congresso. A fragmentação partidária compeliu todos os governos democráticos a formar amplas alianças que tendiam a ser instáveis e vulneráveis à corrupção tanto por parte do governo, quanto pelo financiamento das campanhas. Essas vulnerabilidades estruturais tornaram-se explosivas devido à crise econômica e à incapacidade do governo Dilma em negociar com os políticos profissionais. Nesse meio-tempo, o Judiciário e a Polícia Federal tornaram-se cada vez mais hostis ao governo apesar de sua autonomia e recursos sem precedentes, como parte da alienação da classe média-alta. Os escândalos na Petrobras catalisaram a explosão: a credibilidade do governo se esfarinhou, as relações entre o Executivo e a burguesia interna tornaram-se incertas, e as formas de financiamento que apoiaram a ascensão do PT tornaram-se inviáveis.
Em circunstâncias econômicas favoráveis, as políticas do PT e a maior legitimidade do Estado seguindo à eleição de Lula desarmaram a direita, desmobilizaram os trabalhadores e desconectaram a esquerda radical de sua base social. Entretanto, a retração econômica reduziu o espaço para a conciliação de interesses. Após doze anos de poder federal, o PT, que parecia politicamente hegemônico, perdeu a capacidade de administrar o Estado; o partido parece comandar a corrupção na República, e tornou-se incapaz de liderar o movimento de massas.
Dos Novos Movimentos à Nova Direita
O governo Dilma respondeu ao fracasso econômico, ao isolamento político e à ofensiva neoliberal com um recuo generalizado a partir de 2012. O tripé macroeconômico foi restaurado para ganhar tempo e credibilidade com a grande burguesia; entretanto, a busca desesperada de alianças precárias no topo da sociedade isolou o governo da base tradicional do PT – justamente os setores que mais ganharam econômica e socialmente desde 2003. A esses grupos, o governo pode prometer apenas um arrocho a perder de vista.
O mal-estar nacional explodiu nas manifestações de 2013. Elas revelaram graves tensões sociais devido à distância entre as expectativas de amplas camadas urbanas e suas condições de vida, a revolta frente à estagnação econômica, a rejeição das políticas públicas pela alta classe média, e a percepção generalizada de disfuncionalidade e corrupção do Estado.[vi]
É preocupante notar que a recomposição da classe trabalhadora no neoliberalismo corroeu a cultura de classe e a coletividade baseada em circunstâncias materiais comuns. A ‘nova’ classe trabalhadora é estruturalmente desorganizada e tende a desconfiar de estruturas de representação que lhe parecem ineficazes ou perversas. Ao mesmo tempo, os trabalhadores se apegaram às comunicações diretas via internet, que parecem expressar as aspirações sem qualquer estrutura de representação.
Essas formas de comunicação dificultam a organização da classe, para além da decomposição das estruturas profissionais. Elas também estimulam a formulação de demandas através da linguagem dos ‘direitos’ (ao transporte, habitação, emprego, saúde, drogas, aborto, etc.), e ‘respeito’ aos grupos auto-identificados (mulheres, negros, gays, caminhoneiros, vizinhos, e assim por diante): a decomposição da classe trabalhadora sob o neoliberalismo canalizou o descontentamento rumo a uma ética universal, evitando as realidades de classe.
Esse processo é limitado em quatro níveis. Primeiro, a mera agregação de demandas individuais não gera programas coerentes ou plataformas viáveis de transformação social. Segundo, a expressão direta das demandas via internet estimula o ‘senso comum’ em detrimento de projetos transformadores. Terceiro, a mobilização via internet pode ser momentaneamente eficaz, mas ela não favorece o debate ou a construção da confiança, que são essenciais para a consolidação dos movimentos sociais. Quarto, a horizontalidade favorece o individualismo e a explosão desorganizada, deixando demandas que jamais serão satisfeitas. A repetição desses protestos pode corroer o edifício político da burguesia, mas ela não constrói alternativas.
Conclusão
Os governos da ‘Onda Rosa’ buscaram a acomodação com o neoliberalismo, não internalizaram o motor do crescimento e implementaram políticas econômicas insustentáveis e, eventualmente, desestabilizadoras. Suas reformas foram minimalistas, dirigidas tecnocraticamente e limitadas pelas instituições neoliberais. No Brasil, essas contradições foram agravadas, primeiro, pelo conflito entre os princípios sociais inclusivos da Constituição e as políticas econômicas excludentes impostas pela transição neoliberal. Segundo, os governos petistas jamais perceberam que o acúmulo de transformações miúdas levaria a grandes obstáculos: a estrutura do sistema político, o financiamento partidário, a posse da terra, o papel da imprensa, o sistema tributário, e assim por diante.
Comprovou-se, então, que o que era sustentável na ‘Onda Rosa’ era a sua base neoliberal, e o que era insustentável era a política distributiva superposta ao modelo econômico. Essas tensões foram destrutivas para a base social do governo, e favoreceram o surgimento de uma Nova Direita extremamente agressiva e que parece posicionada para tomar o poder, de uma forma ou de outra, nos próximos meses.
* Alfredo Saad Filho é professor do Departamento de Estudos do Desenvolvimento na SOAS (Escola de Estudos Orientais e Africanos), Universidade de Londres.
Referências
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Morais, L. e Saad-Filho, A. (2012) ‘Neo-Developmentalism and the Challenges of Economic Policy-Making under Dilma Rousseff’, Critical Sociology 38 (6), pp.789-798.
Paes de Barros, R., Grosner, D. and Mascarenhas, A. (2012) Vozes da Classe Média: Desigualdade, Heterogeneidade e Diversidade. Brasília: Presidência da República.
Pochmann, M. (2003) ‘Sobre a Nova Condição de Agregado Social no Brasil’, Revista Paranaense de Desenvolvimento 105, pp.5-23.
Pomar, W. (2013) ‘Debatendo Classes e Luta de Classes no Brasil’, http://novo.fpabramo.org.br.
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Saad-Filho, A. (2014) ‘Brazil: Development Strategies and Social Change from Import-Substitution to the “Events of June”’, Studies in Political Economy, 94, pp.3-31.
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Saad-Filho, A. e Morais, L. (2014) ‘Mass Protests: Brazilian Spring or Brazilian Malaise?’, em: L. Panitch e G. Albo (orgs.), Socialist Register. Londres: Merlin Press.
Santos J. (2001) ‘Mudanças na Estrutura de Posições e Segmentos de Classe no Brasil’, http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582001000100005
[i] Antunes e Pochmann (2008, pp.5-6), Pochmann (2003, p.7; 2011, p.16), Pomar (2013, pp.41-45) e Santos (2001).
[ii] Saad-Filho e Morais (2014).
[iii] Saad-Filho e Morais (2011, 2012).
[iv] Paes de Barros, Grosner and Mascarenhas (2012, p.15), Pomar (2013, p.42) e a pesquisa mensal de emprego do IBGE.
[v] Boito e Saad-Filho (2016) e Saad-Filho e Boito (2016).
[vi] Saad-Filho (2013, 2014).
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