Uma resposta aos meus críticos

Por Slavoj Žižek, via The Philosophical Salon, traduzido por Daniel Alves Teixeira, membro do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia.

Em recente artigo, o filosofo esloveno rebate seus críticos, comentando as polêmicas acusações de racista e homofóbico. Para isso Žižek enfrenta as questões do sujeito, ideologia, relação sexual, retomando os fundamentos de sua filosofia em Hegel e Lacan.


Ultimamente estou me acostumando a ataques que não só tomam a minha posição de uma maneira totalmente errada, mas que também fazem a difamação pura e simples, de modo que, neste nível, qualquer debate minimamente racional torna-se sem sentido. Entre muitos exemplos, basta mencionar Hamid Dabashi, que começa seu livro “Can Non-European Think?” (Não-Europeus podem pensar?) com:

“Vai se fuder, Walter Mignolo!” Com estas palavras grandiloquentes e o gesto que devem ter lhes ocasionado e acompanhado, o distinto e ilustre filósofo europeu Slavoj Žižek começa a sua resposta a uma peça que Walter Mignolo escreveu …”[1]

Não é de admirar que nenhuma referência é dada, já que eu nunca proferi a frase “Vai se fuder, Walter Mignolo!”. Em um discurso público no qual eu respondi ao ataque que Mignolo havia me feito, eu uso as palavras “vai se fuder”, mas elas não se referem a Mignolo: o seu nome não foi mencionado em conjunto com elas; elas eram uma exclamação geral dirigida (se para alguém) para o meu público. A partir daqui, é apenas um passo para elevar a minha exclamação em “O famoso ‘Vai se fuder, Walter Mignolo’ de Slavoj Žižek “, como fez Dan Glazerbrook. [2]

De volta ao livro de Dabashi. Na página 8, a comédia atinge o seu pico: a longa passagem citada é a mim atribuída (segue a “Žižek afirma:”) e após a citação do texto prossegue: “Isto é tudo muito bom e elegante – para Žižek. Ele pode fazer qualquer afirmação que quiser. Todo o poder para ele. Mas a questão é … ” Existe somente um pequeno problema: a passagem citada atribuída a mim e depois ridicularizada como um exemplo do meu racismo Europeu e de minha leitura errada de Fanon é do próprio Fanon (novamente, nenhuma referência é dada no livro de Dabashi – a passagem citada é do livro de Frantz Fanon, Black Skin, White Mask (Pele Negra, Máscaras Brancas N.T.), New York: Grove Press 2008, p 201-206).

Então, eu pensei que tínhamos chegado ao ponto mais baixo, embora em uma contribuição mais recente para a Al-Jazeera, Dabashi me coloque na mesma linha de Breivik, o racista assassino em massa norueguês.[3] Mas as reações ao meu “O Sexual é Político” demonstram que se pode ir ainda mais baixo. Navegando através de inúmeros tweets, blogs e e-mails, eu procurei em vão por um mínimo de argumentação. Os ataques na maior parte das vezes apenas tiravam sarro de uma posição que simplesmente não é a minha.

Eis aqui uma relativamente decente:

“Eu sei que isso é difícil de entender, principalmente porque ele extrai de seu grande pai o desprezível Lacan. Realmente, porém, tudo que Žižek está dizendo é que a oposição aos transsexuais representa uma ansiedade que segundo sua teoria ocorre por causa da diferença sexual; isto é, as pessoas transexuais perturbam os binários que construímos para colocar-nos em gêneros distintos. O que Žižek tenta dizer, ele não é um escritor muito bom em inglês, ao menos, é que o antagonismo vai existir mesmo se aceitarmos completamente as pessoas LGBT como membros da nossa comunidade porque eles sempre existem como uma ameaça para o binário. Eu não acho que, no limite, Žižek pense que podemos ir além do antagonismo social contra as pessoas LGBT enquanto o sistema binário existir. É por isso que ele cita a história de Salci Baci, para Žižek ela representa uma ameaça existencial para a identidade das pessoas. Em certo sentido, você pode dizer que é um conceito de extrema direita, porque ele está essencialmente dizendo que as pessoas transexuais são de fato a ameaça para a sociedade que lhes retrata assim. A questão poderia ser se Žižek aprova as ameaças à sociedade como o revolucionário que ele supõe ser?”[4]

Eu tenho que admitir que eu não podia acreditar nos meus olhos quando estava lendo estas palavras. É realmente tão difícil seguir a linha da minha argumentação? Primeira afirmação: “Tudo que Žižek está dizendo é que a oposição aos transsexuais representa uma ansiedade que em sua teoria ocorre por causa da diferença sexual; isto é, as pessoas transexuais perturbam os binários que construímos para colocar-nos em gêneros distintos” Não, eu não estou de forma alguma dizendo isso: eu não falo sobre a ansiedade experimentada pelos heterossexuais quando elas confrontam as pessoas transexuais. Meu ponto de partida é a ansiedade que as próprias pessoas transexuais experimentam quando confrontam uma escolha forçada onde elas não se reconhecem em nenhum dos seus termos exclusivos ( “homem”, “mulher”). E então eu generalizo essa ansiedade como uma característica de toda identificação sexual. Não são as pessoas transgênero que perturbam os gênero heterossexuais binários; esses binários são sempre-já perturbados pela natureza antagônica da própria diferença sexual. Esta é a distinção básica na qual eu repetidamente insisto e que é ignorada pelos meus críticos: no universo humano-simbólico, a diferença/antagonismo sexual não é o mesmo que a diferença dos papéis de gênero. Os transexuais não são traumáticos para os heterossexuais porque eles representam uma ameaça para os papéis de gênero binário estabelecido, mas porque eles trazem a tona a tensão antagônica que é constitutiva da sexualidade. Salci Baci não é uma ameaça para a diferença sexual; em vez disso, ela é essa diferença como irredutível às identidades de gênero opositivas.

Em suma, as pessoas transexuais não são simplesmente marginais que perturbam a norma heterossexual de gênero hegemônica; sua mensagem é universal, ela diz respeito a todos nós, eles trazem a tona a ansiedade que subjaz toda identificação sexual, seu caráter construído/instável. Isto, naturalmente, não implica uma generalização barata que iria atravessar os limites  do sofrimento das pessoas trans (“todos nós temos ansiedades e sofremos de alguma forma”);  é em transexuais que a ansiedade e o antagonismo, que de outra forma permanecem latentes, aparecem abertamente. Assim, da mesma forma que, para Marx, se alguém quiser compreender o funcionamento “normal” do capitalismo, deve-se tomar como ponto de partida as crises econômicas, se se quer analisar a heterossexualidade “normal”, deve-se começar com a ansiedade que explode em pessoas transexuais.

É por isso que não faz sentido falar de “antagonismo social contra as pessoas LGBT” (aliás, uma expressão sintomaticamente desajeitada e estranha: “antagonismo contra”?). O antagonismo (ou, como Lacan o dizia, o fato de que “não há relação sexual”) está trabalhando no próprio cerne da heterossexualidade normativa, e é o que a imposição violenta de normas de gênero se esforça para conter e ofuscar. É aqui que o meu paralelo com a figura anti-semita do judeu entra. O (a figura anti-semita do) “judeu” como a ameaça à ordem orgânica de uma sociedade, como o elemento que traz para ela a partir de fora corrupção e decadência, é um fetiche cuja função é mascarar o fato de que o antagonismo não vem de fora mas é imanente a toda sociedade de classes. O anti-semitismo “reifica” (incorpora em um grupo particular de pessoas), o antagonismo social inerente: ele trata os “judeus” como a Coisa que, de fora, invade o corpo social e perturba o seu equilíbrio. O que acontece na passagem da posição da luta de classes para o anti-semitismo fascista não é apenas a substituição de uma figura do inimigo (burguesia, a classe dominante) com outro (os judeus); a lógica da luta é totalmente diferente. Na luta de classes, as classes em si são apanhadas no antagonismo inerente à estrutura social, enquanto o judeu é um intruso estrangeiro que causa o antagonismo social, de modo que tudo o que precisamos para restaurar a harmonia social, de acordo com anti-semitismo fascista, é aniquilar os judeus. Esta é a velha tese marxista padrão: quando meu crítico escreve sobre a minha linha de pensamento “em certo sentido pode-se dizer que é um conceito de extrema-direita,” eu realmente gostaria de saber que sentido preciso ele tem em mente.

Então, o que é a ansiedade a qual me referi? Por um breve momento, deixe-me ignorar meus críticos anteriores e me envolver em um breve exercício teórico. A estrutura subjacente aqui é a de uma interpelação falhada (onde “interpelação” refere-se ao mecanismo ideológico básico descrito por Louis Althusser). No caso da interpelação, o próprio exemplo de Althusser contém mais do que sua própria teorização tira dele. Althusser evoca um indivíduo que, enquanto descuidadamente caminha pela rua, de repente é abordado por um policial: “Ei, você aí!” Ao atender ao chamado – isto é, parando e voltando-se para o policial – o indivíduo reconhece-constitui a si mesmo como sujeito do Poder, do grande Outro-Sujeito. A ideologia:

“Transforma” os indivíduos em sujeitos (ela transforma todos eles) por essa operação muito precisa que eu chamei de interpelação ou chamado, e que pode ser imaginada ao longo das linhas do mais comum e diário chamado policial (ou de um outro qualquer): ‘Ei, você aí!’.”

Assumindo que a cena teórica que imaginei acontece na rua, o indivíduo chamado vai se virar. Por esta mera conversão física de cento e oitenta graus, ele se torna um sujeito. Por quê? Porque ele reconheceu que o chamado era “realmente” dirigido a ele, e “que era realmente ele que foi chamado”(e não outra pessoa). A experiência mostra que a transmissão prática dos chamados é tal que ele quase nunca perde o seu homem: chamada verbal ou assobio, o chamado sempre reconhece que ele é realmente aquele que está sendo chamado. E ainda assim isso é um fenômeno estranho, e que não pode ser explicado apenas por “sentimentos de culpa,” apesar do grande número daqueles que “têm algo em suas consciências.”

Naturalmente, para a conveniência e clareza de meu pequeno teatro teórico, eu tive que apresentar as coisas sob a forma de uma sequência, com um antes e um depois, e, portanto, sob a forma de uma sucessão temporal. Há indivíduos caminhando. Em algum lugar (geralmente por trás deles) o chamado ressoa: ‘Ei, você aí!’ Um indivíduo (nove em cada dez vezes é o correto) se vira, acreditando/suspeitando/sabendo que é para ele, ou seja, reconhecendo que “realmente é ele” que é o mencionado pelo chamado. Mas na realidade essas coisas acontecem sem qualquer sucessão. A existência da ideologia e o chamado ou interpelação dos indivíduos como sujeitos são uma e mesma coisa. “[5]

A primeira coisa que salta aos olhos nesta passagem é a referência implícita de Althusser a tese de Lacan sobre uma carta que “sempre chega ao seu destino”: a carta interpelativa não pode perder seu destinatário uma vez que, em virtude de seu carácter “atemporal”, é somente a aceitação/reconhecimento do destinatário que a constitui como uma carta. A característica crucial da passagem citada, no entanto, é a dupla negação trabalhando nela: a negação da explicação do reconhecimento interpelativo por meio de um “sentimento de culpa”, bem como a negação da temporalidade do processo de interpelação (estritamente falando, os indivíduos não “se tornam” sujeitos, eles “sempre-já” são sujeitos).[6] Esta negação dupla é para ser lida como uma negação freudiana: o que o caráter “atemporal” da interpelação torna invisível é uma espécie de sequencialidade atemporal que é muito mais complexa do que o “teatro teórico” encenado por Althusser em nome de um álibi suspeito de “conveniência e clareza.” Essa sequência “reprimida” diz respeito a um “sentimento de culpa” de natureza puramente formal, “não-patológica” (no sentido kantiano), uma culpa que, precisamente por essa razão, pesa mais fortemente sobre aqueles indivíduos que “não têm nada em suas consciências.” Para perguntar de forma diferente: Em que, exatamente, consiste a primeira reação do indivíduo ao “Ei, você aí!” do policial”? Em uma mistura incoerente de dois elementos: (1) por que eu? o que é que o policial quer de mim? Sou inocente, eu estou apenas cuidando da mina própria vida e passeando por aí …; no entanto, este protesto perplexo de inocência é sempre acompanhado por (2) uma sensação kafkiana indeterminada de culpa “abstrata”, uma sensação de que, aos olhos do Poder, eu sou aprioristicamente terrivelmente culpado de alguma coisa, embora não seja possível para mim saber exatamente do que eu sou culpado. E por essa razão – já que eu não sei do que eu sou culpado – eu sou ainda mais culpado;  ou, mais incisivamente, é nessa própria ignorância minha que consiste minha verdadeira culpa.[7]

O que temos aqui portanto é toda a estrutura lacaniana do sujeito dividido entre a culpa inocente, abstrata e indeterminada, confrontado com uma chamada não-transparente que emana do Outro (“Ei, você aí!”), uma chamada onde não é claro para o sujeito o que o Outro realmente quer dele (“Che vuoi?”). Em suma, o que encontramos aqui é a interpelação antes da identificação. Antes do reconhecimento na chamada do Outro por meio do qual o indivíduo se constitui “sempre-já” como sujeito, somos obrigados a reconhecer este instante “atemporal” do impasse, quando a inocência coincide com a culpa indeterminada: a identificação ideológica por meio da qual eu assumo um mandato simbólico e me reconheço como sujeito do Poder acontece apenas como uma resposta para esse impasse. Então o que resta “impensado” na teoria da interpelação de Althusser é o fato de que antes do reconhecimento ideológico temos um momento intermediário de interpelação obscena, impenetrável, sem identificação, uma espécie de mediador evanescente que tem de se tornar invisível para o sujeito alcançar uma identidade simbólica , ou seja, para realizar o gesto de subjetivação. Em suma, o “impensado” de Althusser é que já existe um sujeito estranho precedendo o gesto de subjetivação.

E o mesmo acontece de uma forma muito mais forte na interpelação sexual. Minha identificação como “homem” ou “mulher” é sempre uma reação secundária à ansiedade “castrativa” do que eu sou. Uma – tradicional –  maneira de evitar essa ansiedade é impor uma norma heterossexual, que especifica o papel de cada sexo, e a outra é defender a superação da sexualidade enquanto tal (a posição pós-gênero). Quanto à relação entre transgêneros e pós-gêneros, meu ponto é simplesmente que a fluidificação universal das identidades sexuais inevitavelmente atinge o seu apogeu no cancelamento do sexo enquanto tal. Da mesma maneira como, para Marx, a única maneira de ser um monarquista em geral é ser um republicano, a única maneira de ser sexualizado em geral é ser assexuado. Esta ambiguidade caracteriza o conjunto da sexualidade e da liberdade em todo o século XX: quanto mais radicais ficam as tentativas para libertar a sexualidade, mais elas se aproximam de sua auto-superação e se transformam em tentativas de promulgar uma libertação da sexualidade, ou, como Aaron Schuster colocou (em uma comunicação pessoal):

“Se parte do programa revolucionário do século XX para criar uma relação social radicalmente nova e um novo homem foi a libertação da sexualidade, esta aspiração foi marcado por uma ambiguidade fundamental: é a sexualidade que deve ser libertada, livrada de preconceitos morais e proibições legais, e então será permitido às pulsões uma expressão mais aberta e fluida, ou é a humanidade que tem de ser libertada da sexualidade, finalmente livre de suas dependências obscuras e constrangimentos tirânicos? A revolução irá trazer uma eflorescência de energia libidinal ou, vendo-a como uma distração perigosa para a árdua tarefa de construir um novo mundo, demandar a sua supressão? Em uma palavra, a sexualidade é o objeto ou o obstáculo à emancipação?”

A oscilação entre esses dois extremos é claramente perceptível já na primeira década após a Revolução de Outubro, quando os apelos feministas para a libertação da sexualidade logo foram suplementados pelos apelos gnósticos-cosmológicos por um novo homem que deixaria para trás a própria sexualidade como a armadilha final burguesa. Hoje, com a ascensão do “Mundo da Internet ” e da biogenética, essa perspectiva tem um novo impulso. E, como uma parte desta nova perspectiva, eu prevejo que novas exigências de superação de velhas limitações irão surgir. Entre eles haverão demandas para legalização de casamentos múltiplos (que já existiam, não apenas como poligamia mas também como poliandria, especialmente na região do Himalaia), como também demandas por algum tipo de legalização dos intensos laços emocionais com animais. Eu não estou falando de sexo com animais (embora eu lembre da minha juventude, a partir do momento do final dos anos 1960, a tendência generalizada para a prática de sexo com animais), menos ainda sobre “bestialidades”, mas de uma tendência para reconhecer alguns animais (digamos, um cão fiel) como parceiros legítimos. Não se trata de “bestialidades”, mas da “culturalização” dos animais, sua elevação a um parceiro legal.

Para recapitular, eu não só apoio totalmente a luta dos transsexuais contra a segregação legal, como eu também estou profundamente afetado pelos seus relatos de seu sofrimento, e eu não os vejo como um grupo marginal, que deve ser “tolerado”, mas como um grupo cuja mensagem é radicalmente universal: ela diz respeito a todos nos; ela diz a verdade sobre todos nós como seres sexuais. Eu me diferencio da opinião predominante em dois pontos interligados que a dizem respeito à teoria: (1) Eu vejo a ansiedade a propósito das identidades sexuais como uma característica universal da sexualidade humana, não apenas como um efeito específico de exclusões e segregações sexuais, razão pela qual não se deve esperar que ela desapareça com o progresso da desegregação sexual; (2) Eu faço uma distinção estrita entre a diferença sexual (como o antagonismo constitutiva da sexualidade humana) e o binário (ou pluralidade) de gêneros. Ambos estes pontos são, é claro, totalmente mal interpretados ou ignorados pelos meus críticos.

Quanto ao meu “reducionismo de classe,” qualquer um minimamente familiarizado com o meu trabalho sabe que um dos problemas com que estou lidando é precisamente como trazer a luta dos povos do Terceiro Mundo contra a opressão neo-colonial e a luta pela emancipação sexual (mulheres e direitos dos homossexuais) no Ocidente desenvolvido em conjunto. Alguns esquerdistas alegam que deveríamos nos focar na luta anti-capitalista universal, permitindo que cada grupo étnico ou religioso mantenha sua cultura particular ou “modo de vida”. Eu vejo um problema nesta solução fácil: não se pode distinguir de forma direta a dimensão universal do projeto emancipatório e a identidade de um modo particular de vida, de modo que enquanto estamos todos juntos envolvidos em uma luta universal, nos estejamos simultaneamente respeitando plenamente o direito de cada grupo ao seu modo particular de vida. Não devemos esquecer que para um sujeito que vive em um modo de vida particular, todos os universais aparecem “coloridos” por este modo de vida. Cada identidade (modo de vida) compreende também uma forma específica de se relacionar com outros modos de vida. Assim, quando postulamos como uma diretriz que a cada grupo deve ser deixado adotar a sua identidade particular, para praticar o seu próprio modo de vida, o problema imediatamente surge: onde é que os costumes que formam a minha identidade acabam e onde a injustiça começa? Os direitos da mulher são apenas o nosso costume, ou a luta pelos direitos das mulheres é também universal (e parte da luta emancipatória, como foi em toda a tradição socialista de Engels a Mao)? É a homofobia apenas uma coisa de uma cultura particular a ser tolerada como um componente de sua identidade? Deveriam os casamentos arranjados (que formam o próprio núcleo das estruturas de parentesco de algumas sociedades) igualmente serem aceitas como parte de uma identidade particular? Etc.

Essa “mediação” do universal com o (modo de vida) particular vale para todas as culturas, a nossa (Ocidental) incluída, é claro. Os princípios “universais” defendidos pelo ocidente são também coloridos pelo modo de vida ocidental, então nós nunca devemos esquecer a ascensão do fundamentalismo religioso-nacionalista em países como a Polônia, Hungria e Croácia. Nas ultimas décadas, a Polônia foi uma das poucas histórias de sucesso definitivo na Europa. Após a queda do socialismo, o produto interno bruto per capita mais do que duplicou, e durante os últimos dois anos, o governo liberal-centrista moderado de Donald Tusk comandou. E então, quase do nada, sem grandes escândalos de corrupção como na Hungria, a extrema direita assumiu, e  existe agora um movimento generalizado para proibir o aborto mesmo nos casos limite de perigo mortal para a saúde da mãe, estupros e deformidades do feto. Toda uma série de problemas surgem aqui: e se a igualdade entre os humanos está em tensão com a igualdade entre as culturas (na medida em que algumas culturas negligenciam a igualdade)?

A tarefa é portanto trazer a tona a luta em cada modo de vida particular. Cada “modo de vida” particular é antagônico, cheio de tensões e inconsistências internas, e a única maneira de proceder é trabalhar para uma aliança de lutas em diferentes culturas. A partir daqui eu gostaria de voltar para o projeto da aliança entre a classe média progressista e proletários nômades: Em termos de uma problemática concreta, isto significa que a luta político-econômico contra o capitalismo global e a luta pelos direitos das mulheres, etc. tem que ser concebidas como dois momentos de uma mesma luta emancipatória pela igualdade.

Estes dois aspectos – a imposição de valores ocidentais, como os direitos humanos universais e o respeito pelas diferentes culturas independentemente dos horrores que podem fazer parte destas culturas – são as duas faces da mesma mistificação ideológica. Muito tem sido escrito sobre como a universalidade dos direitos humanos universais é distorcida, como eles secretamente dão preferência aos valores e normas culturais ocidentais (a prioridade do indivíduo sobre seu/sua comunidade, e assim por diante). Mas devemos acrescentar a esta visão que a defesa anti-colonialista multiculturalista da multiplicidade de modos de vida também é também falsa: ela encobre os antagonismos que existem dentro de cada uma destas formas particulares de vida, justificando atos de brutalidade, sexismo e racismo como expressões de uma cultura particular que não temos o direito de julgar pelos valores ocidentais estrangeiros.

Este aspecto não deve de forma alguma ser descartado como marginal. Do Boko Haram e Mugabe à Putin, a crítica anti-colonialista do Ocidente cada vez mais aparece como a rejeição da confusão “sexual” ocidental e como demanda para retornar a hierarquia sexual tradicional. É verdade, naturalmente, que a exportação imediata do feminismo ocidental e dos direitos humanos individuais podem servir como uma ferramenta de neo-colonialismo ideológico e econômico. (Todos nos lembramos como algumas feministas americanas apoiaram a intervenção norte-americana no Iraque como uma maneira de libertar as mulheres de lá, enquanto o resultado é exatamente o contrário). Mas deve-se no entanto rejeitar absolutamente tirar disto a conclusão de que os esquerdistas ocidentais deveriam fazer aqui um “compromisso estratégico”, silenciosamente tolerar “costumes” de humilhar as mulheres e gays em nome da luta “maior” anti-imperialista.

A luta comunista pela emancipação universal significa uma luta que corta cada identidade particular, dividindo-a por dentro. Quando há racismo, quando há dominação sobre as mulheres, é sempre como parte integrante de um “modo de vida” particular, um bárbaro avesso integrante de uma cultura particular. No mundo ocidental “desenvolvido”, a luta comunista significa uma luta brutal e de princípios contra todas as formações ideológicas que, mesmo que elas se apresentem como “progressista”, servem como um obstáculo à emancipação universal (feminismo liberal, etc.). Isso significa não só atacar nossos próprios fundamentalismos racistas e religiosos, mas também demonstrar a forma como elas surgem das inconsistências do liberalismo predominante. E nos países muçulmanos, a estratégia comunista não deve de modo algum ser a de endossar seu “modo de vida” tradicional, que inclui os crimes de honra, etc .; ela não só deve colaborar com as forças nestes países que combatem o patriarcado tradicional, mas deve também fazer um passo fundamental e demonstrar como, longe de servir como um ponto de resistência contra o capitalismo global, tal ideologia tradicional é uma ferramenta direta do imperialismo neocolonialista.


[1] Hamid Dabashi, Can Non-Europeans Think?, London: Zed Books 2015, p. 1.

[2] Tirado de http://www.counterpunch.org/2015/03/16/with-enemies-like-this-imperialism-doesnt-need-friends/

[3] Ver http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2016/06/europe-creation-world-160613063926420.html.

[4] Tirado de https://m.reddit.com/r/GamerGhazi/comments/4vxmfk/philosopher_slavoj_zizek_knows_next_to_nothing/.

[5] Louis Althusser, “Ideology and Ideological State Apparatuses” in Essays in Ideology, London: Verso 1984, p. 163.

[6] Eu resumo aqui uma leitura crítica mais detalhada da noção de ideologia de Althusser do Capítulo 3 do Slavoj Zizek The Metastases of Enjoyment, London: Verso Books, 2006.

[7] Aqui eu sigo as observações perspicazes de Henry Krips. Ver seu excelente manuscrito inédito “O sujeito de Althusser e Lacan.«

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