Por Frederico Lyra de Carvalho
O Nuit Debout talvez seja o início de alguma coisa, de algo que ainda vai tomar forma e realmente acontecer. Onde o primeiro sinal é todos iniciarem a noite se colocando de pé. O Nuit Debout, a noite de pé que recomeça a cada noite, pode ser um ensaio geral para a próxima noite. A última noite?
Depois do dia 31 de março jovens – mas não apenas – tem se reunido diariamente na Place da République no movimento autonomeado Nuit Debout. Tal evento foi deslanchado sobretudo em razão da lei El Kohmri, lei esta que pretende reformar (destruir?) o que resta das leis trabalhistas francesas de uma forma muito semelhante à que ronda a CLT brasileira. Tal proposta de lei furou o limite do intolerável e mandou para a rua aqueles que todos acreditavam estarem inertes. Vale também observar, além da ocupação da Place, os confrontos quase diários entre policiais e estudantes do 2o grau, na maior parte, conflitos sucedidos de denúncias de agressões graves por parte da polícia, mas também dos estudantes ocupando e bloqueando as escolas. A polícia daqui também bate muito forte, anda sem identificação e no meio desta movimentação toda também fez uma passeata por mais “direitos para bater e outras atrocidades”. Os mais jovens, estes bravos estudantes são, digamos, a vanguarda do movimento. Todavia, reduzir o que está acontecendo a uma reação a tal lei seria deveras injusto, e mesmo ingênuo.
Desde 2005 um Estado de Exceção – não declarado – reina nos “banlieus” (subúrbios) parisienses e também da provance. Além disto, como observado pelo filosofo Paulo Arantes em uma de suas palestras, os protestos neste país têm ocorrido de forma circular que, segundo ele, mantém tal padrão praticamente imutável há pelos menos a 30 anos. Um padrão que impedia que algo efetivo tomasse forma ou acontecesse. Após o atentado de 13 de novembro o Estado de Exceção passou a ser legal e a abarcar todo o território francês. O que dá de cara uma situação diferente, que permitiu que o cenário fosse deslocado, mudando completamente o terreno da ação: a Place de la République é logo ali no coração de Paris, um dos pontos turísticos da cidade. Se antes os ecos dos banlieus estavam distante demais para serem escutados, estando ali no centro fica difícil ignora-los – por mais que, como toda imprensa oficial, a francesa se esforce bastante para tanto. Além disto, na noite do atentado contra o Charlie Hebdo (07/01/2016) houve uma gigantesca – e espontânea – passeata que ocupou a Place de la République por toda a noite. Na sequência o monumento da Marianne, no centro da praça se tornou uma espécie de mausoléu em memória aos mortos, permanecendo até mesmo – aí sobretudo na sequência do atentado do 13 de novembro – isolado por grades e com vigilância policial constante. É como se um espírito fantasmagórico de morte rondasse a praça e estes jovens ocupando-a noite após noite fizessem ecoar estes espíritos trazendo de volta a vida a este mesmo espaço da Place de la République.
Na sua forma as ocupações seguem um padrão comum a qualquer outra, mas nem por isso menos interessante ou eficiente. Além das discussões e falas mais normais (com temas que vão da Panamá leaks a comentários sobre o próprio movimento), durante as Assembleias Gerais (AG) são feitas chamadas para intervenções que ocorrem em outros lugares. Umas das noites[1] foram convocados militantes com o intuito de bloquear o Boulevard St Germain, outra vez convocaram para ajudar na delegacia na pressão pela liberação de manifestantes que haviam sido presos, uma outra para ajudar alguns imigrantes sans-papier (sem documentos) a escaparem de uma ação policial no norte da cidade. Soubemos que todas estas ações foram bem sucedidas. Pude observar uma Assembleia Geral com alguns sans-papier onde estes buscavam uma saída, ao menos para aquela noite, de sua situação precária. A mais interessante, porém, foi uma Assembleia Geral onde vendedores de merguez (o equivalente a vendedores de cachorro-quente) discutiram sobre a situação e perspectiva deles em relação à Nuit Debout. Naquele momento vários estavam há dias estacionados nos entornos da praça, eles também faziam parte do movimento.
Quem organiza tais Assembleias Gerais são jovens mal saídos da adolescência com uma enorme paciência e capacidade de escuta. Ali: falar ↔ escutar. É um exercício da escuta e fala coletiva. Tal Assembleia Geral possui um nome muito oportuno: Convergência de Lutas. É o espaço onde todas as lutas invisíveis podem convergir. O objetivo passa a ser o de compartilha-las através da palavra com outros, descobrindo que não estão só e com isso dar forma a algo comum. Algo comum que parece só poder ser descoberto através de um processo como este. Como convergir efetivamente todas as lutas? Ninguém tem a resposta, mas talvez o momento que isto acontecer já será a vitória. Uma garota, em uma conversa, me disse que depois de escutar a história de tantas lutas percebeu que o local onde elas convergem é na destruição do sistema capitalista.
Ninguém fala pelo movimento, quem dá entrevista é o indivíduo. A esquerda oficial se faz ausente, embora hajam alguns estandes de associações e editoras anarquistas e um do PKK. O movimento ganhou rapidamente uma dimensão nacional, ocorrendo Nuit Debout nas principais cidades da França, mas também em algumas cidades menores e banlieus. Além disto, ele também se internacionalizou rapidamente ocorrendo Nuit Debout na Alemanha, Espanha e Bélgica. A maior invenção do movimento, até aqui, parece ser o mês de março sem fim, na Nuit Debout o mês de março não acaba. Hoje, dia 16 de abril no qual escrevo, na Place de la République é o dia 47 de março.
Pensadores como Anselm Jappe marcaram presença no Nuit Debout. Alain Badiou, no seu seminário do dia 11 de abril, afirmou que um tal movimento poderia ser visto como uma etapa do pensamento e abria uma nova possibilidade de reinvenção. Entretanto, o pensador que tem sido visto como chave para este movimento é o filosófo, economista e professor da EHESS: Frédéric Lordon. Segundo Lordon devemos acabar com os combates defensivos e nos preparar para falhar, para deixar algo e para tentar novamente. Ele aponta que o Nuit Debout estaria mudando as regras do jogo furando o Estado de Exceção Permanente formalmente instalado na França. Tal movimento mostrou que é possível sair do sono político, do isolamento e do medo, para encontrar no Outro o suporte e a força necessária, criando um coletivo na praça da República e reunindo os que antes estavam separados. Ele chama atenção para o fato de que o primeiro gesto foi de imaginação: a imaginação da catástrofe. Em seguida o objetivo do Nuit Debut, segundo ele, deve ser o de levar tal catástrofe para o governo, dar de presente a catástrofe que eles tanto querem.
Um dos problemas do Nuit Debout é a ainda baixa presença dos jovens negros e árabes dos subúrbios parisienses. Aqueles que se manifestaram em 2005. Porém uma questão surge daí. Ao que parece os jovens da classe média francesa tomaram consciência de que não existe mais futuro e tal tomada de consciência parece coincidir com o mesmo problema que outros franceses, os da periferia, descobriram há mais de dez anos, em 2005. Seria demais imaginar que a próxima etapa da luta será o momento em que os dois grupos, tendo descoberto que não existe mais futuro nem para um nem para o outro, se juntarem para através de um gigantesco corpo político criar um outro futuro?
O Nuit Debout talvez seja o início de alguma coisa, de algo que ainda vai tomar forma e realmente acontecer. Onde o primeiro sinal é todos iniciarem a noite se colocando de pé. O Nuit Debout, a noite de pé que recomeça a cada noite, pode ser um ensaio geral para a próxima noite. A última noite?
*Musicólogo, doutorando em filosofia da arte e membro do CEII – Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia
[1] Entre o dia 31 e 16 de março estive presente em 6 noites diferentes.
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