O papel do indivíduo na história

Por Guiorgui Valentinovitch Plekhanov.

Em sua brochura “O Papel do Indivíduo na História”, Plekhanov se debruça sobre as tradicionais críticas ao “determinismo” do “coletivismo” marxista, que anularia o papel da subjetividade e da vontade individual os processos históricos. Em oposição à perspectiva subjetivista, mas se distanciando do materialismo vulgar, Plekhanov apresenta uma leitura que tenta refletir a medida do papel das “grandes personalidades” nos eventos históricos.

Esse embate se insere no bojo da obra filosófica de Plekhanov sobre História, mencionada por Lenin como “a melhor exposição da filosofia do marxismo e do materialismo histórico”, a despeito das posições políticas do autor após a cisão entre bolcheviques e mencheviques. Um estudo preliminar da obra de Plekhanov é possível pela publicação da Expressão Popular, que agrupa sob o nome da brochura transcrita parcialmente abaixo duas outras obras: “Da filosofia da História” e “Da concepção materialista da História”.


[…]

As causas da Revolução Francesa residiam na natureza das relações sociais, e as pequenas causas supostas por Saint-Beuve podiam residir unicamente nas particularidades individuais de diferentes pessoas. É no estado das forças produtivas que se encontra a causa determinante das relações sociais. Esse estado depende somente das particularidades individuai de diferentes pessoas, no sentido de uma menor ou maior capacidade de tais indivíduos para impulsionar os aperfeiçoamentos técnicos, as descobertas e as invenções. Saint-Beuve não levou em conta esse gênero de particularidades. Mas, nenhuma outra particularidade provável garante a pessoas isoladas o exercício de uma influência direta sobre o estado das forças produtivas, e, por conseguintes, nas relações sociais por elas condicionadas, isto é, nas relações econômicas. Um dado individuo, quaisquer que sejam suas particularidades, não pode eliminar relações econômicas determinadas, quando estas correspondem a um determinado estado das forças produtivas. No entanto, as particularidades individuais da personalidade tornam-na mais ou menos apta a satisfazer as necessidades sociais que surgem em virtude de relações econômicas determinadas ou para opor-se a essa satisfação. A necessidade social mais urgente da França em fim do século 18 consistia na substituição das velhas instituições políticas por outras que se harmonizassem melhor como novo regime econômico. Os homens públicos mais eminentes e úteis daquela época foram precisamente aqueles mais capazes de contribuir para a satisfação dessa necessidade urgente. Suponhamos que tais homens fossem Mirabeau, Robespierre e Bonaparte. Que teria ocorrido se a morte prematura não tivesse eliminado Mirabeau da vida política? O partido da monarquia constitucional teria conservado por mais tempo essa personalidade de força considerável e, por tanto, sua resistência frente aos republicanos teria sido mais enérgica. Nada mais, no entanto. Nenhum Mirabeau estava então em condições de impedir o triunfo dos republicanos. A força de Mirabeau baseava-se integralmente na simpatia e na confiança do povo, e este almejava a República porque a corte o irritava com sua obstinada defesa do velho regime. Quando o povo se tivesse convencido de que Mirabeau não simpatizava com seus ideais republicanos, deixaria de simpatizar com Mirabeau, e, então, o grande orador teria perdido quase toda a influência e, mais tarde, provavelmente teria tombado vítima do movimento que ele se empenhara em deter. A mesma coisa, aproximadamente, podemos dizer de Robespierre. Admitamos que ele representasse em seu partido uma força absolutamente insubstituível. Mas, de qualquer modo, não era sua única força. Se a queda casual de uma telha o tivesse matado, suponhamos, em janeiro de 1739, seu posto teria sido ocupado, naturalmente, por outro e, embora esse outro tivesse sido inferior a ele em todos os sentido, os acontecimento, apesar de tudo, teriam tomado o mesmo rumo que tomaram com Robespierre. Assim, por exemplo, os girondinos, também neste caos, não teriam evitado, certamente, a derrota; mas é possível que o partido de Robespierre tivesse perdido o poder um pouco antes, de modo que agora não falaríamos em reação termidoriana, mas da florealiana, praiarialiana ou messidoriana. Alguns objetarão, talvez, que com o seu impiedoso terrorismo, Robespiere acelerou em vez de retardar a queda de seus partido. […] Em tal caso, haveria de supor que a queda do partido de Robespierre não se teria produzido em termidor, mas em  frutidor, vendemiário ou brumário. Em uma palavra, ter-se-ia produzido talvez antes ou depois, mas em todo caso ter-se-ia produzido infalivelmente porque a camada popular sobre a qual esse partido se apoiava não estava absolutamente preparada para se manter no poder por muito tempo. Em todo caso, não se pode falar de resultados “contrários” aos que se obtiveram graças à contribuição enérgica de Robespierre.

[…]

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Além disso, é necessário chamar a atenção para o seguinte: discorrendo sobre o papel das grande personalidades na História, somos quase sempre vítimas de certa ilusão ótica que convirá indicar ao leitor.

Desempenhando seu papel de “boa espada” salvadora da ordem social, Napoleão impediu que desempenhassem essa função outros generais, alguns dos quais talvez tivesse desempenhado tão bem ou quase tão bem quanto ele. Uma vez satisfeita a necessidade social de ter um ditador militar enérgico, a organização social fechou o caminho da ditadura a todos outros talentos militares. Sua força se transformou em uma força desfavorável para a revelação de outros talentos do mesmo gênero. Daí a ilusão ótica a que nos referimos. A força pessoal da Napoleão se nos apresenta sob uma forma extremamente exagerada, posto que lhe atribuímos toda a fora social que a levou a primeiro plano e que a apoiava. Essa força pessoal parece-nos algo completamente excepcional, porque as demais forças idênticas a ela não se transformaram de potenciais em reais. E quando nos perguntamos o que teria ocorrido se Napoleão não tivesse existido, nossa imaginação confunde-se a parece-nos que todo o movimento social sobre que se baseava sua força e sua influência não teria podido produzir-se sem ele.

Na história do desenvolvimento intelectual da humanidade é muito mais raro que o êxito de uma indivíduo impeça o de outro. Quando determinada situação social coloca ante seus representantes espirituais certas tarefas, estras atraem a atenção dos espíritos eminentes até que estes as resolvam. Uma vez conseguido isso, sua atenção se orienta para outro objeto. Depois de resolver o problema X, o homem de talento A desvia, com isso, a atenção do homem de talento B desse problema já resolvido para outro problema Y. E quando nos perguntamos o que teria acontecido se A tivesse morrido antes de conseguir resolver o problema X ,pensamos que o fio do desenvolvimento intelectual da sociedade se teria rompido. Esquecemos que no caso de A morrer, B ou C ou D poderiam ter-se encarregado da solução do problema e que desse modo, o fio do desenvolvimento intelectual não se teria rompido apesar da morte prematura de A.

Duas condições são necessárias para que o homem dotado de certo talento exerça, graça a ele, grande influência sobre o ocurso dos acontecimento. É preciso, em primeiro lugar, que seu talento corresponda melhor que os outros às necessidade sociais de uma época determinada: se Napoleão, em lugar de seu gênio militar, houvesse possuído o gênio musical de Beethoven, não teria chegado, naturalmente, a ser imperador. Em segundo lugar, o regime social vigente não deve alçar obstáculo no caminho do indivíduo adotar de um determinado talento, necessário e útil justamente naquela ocasião. O próprio Napoleão teria morrido como um general pouco conhecido ou com o nome de coronel Bonaparte se o antigo regime tivesse durado na França mais 75 anos. Em 1789, Davout, Desaix, Marmont e MacDonald eram subtenentes; Bernadotte, sargento-mor; Hoche, Marceau, Lefebre, Picjegru, Neu, Massena, Murat, Soult, suboficiais; Augereau, professor de esgrima; Lannes, tintureiro; Gouvion-Saint-Cyr, ator; Jourdan, merceeiro; Bessiers, barbeiro; Brune, tipógrafo; Joubrt e Junor eram estudantes da Faculdade de Direito; Kleber era arquiteto; antes da Revolução, Mortier nunca servira no exército.

Se o velho regime tivesse continuado a existir até hoje, a nenhum de nós teriam ocorrido pensar que, em fins do século passado, na França, alguns atores, tipógrafos, barbeiros, tintureiros, acadêmicos de Direito, merceeiro e professores de esgrima eram gênios militares em potencial.

Stendhal observa que um homem nascido no mesmo ano que Ticiano, isto é, 1477, teria podido ser contemporâneo de Rafael (falecido em 1529) e de Leonardo da Vinci (que morreu em 1519) durante 40 anos; teria podido passar longos anos com Coreggio, que morreu em 534 e com Micheângelo, que viveu até 1563; não teria senão 34 anos quando Giorgione morreu; teria podido conhecer Tintoreto, Bassano, Veronésio, Júlio Romano e Andrea del Sarto; em uma palavra, teria sido contemporâneo de todos os pintores mais famosos, com exceção dos que pertenciam à escola de Bolonha, que surgiu um século mais tarde. Pode-se dizer, do mesmo modo, que um homem nascido no mesmo ano que Wouwerman teria podido conhecer pessoalmente quase todos os grandes pintores da Holanda, e que um homem da mesma idade de Shakespeare teria sido contemporâneo de toda uma plêiade de notáveis dramaturgos.

Há tempos que se fez a observação de que os talentos aparecem, sempre e em toda parte, onde existem condições sociais favoráveis para seu desenvolvimento. Isso significa que todo talento que se manifestou efetivamente, isto é, todo talento convertido numa força social é fruto das relações sociais. Mas, se isso é assim, compreende-se porque os homens de talento, como dissemos, só podem fazer variar o aspecto individual e não a orientação geral dos acontecimentos; eles próprios só existem graças a essa orientação; se não fosse por isso nunca teriam podido cruzar o umbral que separa o potencial do real.

Compreende-se que os vário talentos não são iguais.

“Quando uma nova etapa no desenvolvimento da civilização dá orgiem a um novo gênero de arte – diz com razão Taine* – surgem dezenas de talentos que expressam apenas em parte o pensamento social, ao ado de um ou dois gênios que exprimem com perfeição.”

Se causas mecânicas o fisiológicas, desligadas do curso geral do desenvolvimento social, político e intelectual da Itália, tivesse causado a morte de Rafael, Michelângelo e Leonardo da Vinci em sua infância, a arte pictórica italiana seria menos perfeita, mas a tendência geral de seu desenvolvimento na época do Renascimento não teria sido diferente. Essa tendência não foi criada por Rafael, Leonardo da Vinci ou Michelângelo: eles foram apenas seus melhores representantes. é verdade que em torno de um homem genial se forma geralmente toda uma escola, cujos discípulos procuram imitar até os menores detalhes do mestre; por isso, a lacuna que Rafael, Michelângelo e Leonardo da Vinci teriam deixado, com sua morte prematura, na arte italiana do Renascimento, teria exercido grande influência sobre muitas particularidades secundárias de sua história. Mas essa história não se teria modificado essencialmente se, devido a certas causas gerais, não se tivesse produzido uma mudança fundamental no curo geral do desenvolvimento intelectual da Itália.

É sabido, no entanto, que as diferenças quantitativas se transformam, finalmente, em qualitativas. Isso é sempre uma verdade e, portanto, também o é na História. Uma determinada corrente artística pode nada deixar de notável se uma confluência de circunstâncias desfavoráveis fizer com que desapareçam, um após outros, vários homens de talentos que poderiam ter se convertido em seus representares. Mas a morte prematura desses homens não impede a manifestação artística dessa corrente, a menos que não seja suficientemente profunda para destacar novos talentos. E como a profundidade de qualquer corrente dada, tanto na literatura quanto na arte, é determinada pela importância que tem para a classe ou camada social cujos gostos expressa, bem como pelo papel social desta classe ou camada, aqui também tudo depende, em última instância, do curso do desenvolvimento social e da correlação das forças sociais.

*Taine, Histoire de la Littérature Anglaise, Paris, 1863, T. II. p. 4.

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