Lampedusa: o estado de exceção que se tornou a regra

Entrevista com Flavia Costa por Márcia Junges e Patricia Fachin, via Unisinos*, traduzido por Benno Dischinger.

A novidade da política moderna é que a exceção se tornou a regra; isto é, aquilo que aparecia incluído mediante sua exclusão (o estado de natureza, o ‘animal’ no homem) aparece agora indiferenciado com respeito ao seu oposto: o estado civil, o `humano’ no homem”, avalia a pesquisadora. “O ocorrido dias atrás nas costas de Lampedusa, Itália, onde morreram cerca de 300 pessoas escapando de suas terras, assinala o nó do que está em jogo na ideia de um ‘estado de exceção que se tornou a regra”, menciona Flavia Costa, ao explicitar o conceito abordado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben. Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, a pesquisadora explica que o estado de exceção “é, neste sentido, o dispositivo que mantém unidos violência e direito e, ao mesmo tempo, quando se realiza, o que rompe essa unidade. Por outro lado, o estado de exceção aparece como o paradigma da política contemporânea, ideia que parte da tese benjaminiana, segundo a qual, em nossa época, ‘o estado de exceção se tomou a regra”. Flavia assinala que Agamben chama a atenção para uma situação preocupante e recorrente desde o começo do século XX, a qual “passa inadvertida para a maioria: vivemos no contexto do que se tem denominado uma ‘guerra civil legal”. E esclarece: “O totalitarismo moderno se define como a instauração de uma guerra civil legal através do estado de exceção, e isso ocorre tanto para o regime nazi como para a situação em que se vive nos Estados Unidos desde que George W. Bush emitiu, em 13 de novembro de 2001, uma `military order’ que autoriza a ‘detenção indefinida’ dos não cidadãos estadunidenses suspeitos de atividades terroristas. Já não se trata de prisioneiros nem de acusados, senão de sujeitos de uma detenção indefinida — tanto no tempo como no modo de sua detenção —, que devem ser processados por comissões militares, distintas dos tribunais de guerra. Nesse marco mais geral, basta observar em cada nação a assiduidade com a qual os governos lançam mão de diferentes modalidades de exceção para impor, por exemplo, suas políticas de ‘ajuste’, para identificar a atualidade enorme do problema”. Flavia Costa é professora na Universidade de Buenos Aires — UBA.

 

IHU On-Line — O que é o estado de exceção para Agamben?

Flavia Costa — A tese de Agamben é que o estado de exceção, esse momento que se supõe provisório, no qual se suspende a ordem jurídica precisamente para garantir sua continuidade, se converteu durante o século XX em forma permanente e paradigmática de governo. Agamben utiliza aqui estado de exceção como um termo técnico para definir uma “totalidade coerente de fenômenos jurídicos” — denominados, segundo as diferentes doutrinas, estado de necessidade, decretos de necessidade e urgência, estado de emergência, estado de sítio etc. —, nos quais o poder político põe igualmente em suspenso a lei em defesa da ordem constituída. O estado de exceção constitui para Agamben, por um lado, o lugar chave onde se põe em plena luz a ambiguidade constitutiva da ordem jurídica, pela qual este parece estar, “ao mesmo tempo, fora e dentro de si mesmo, simultaneamente vida e norma, fato e direito”. O estado de exceção é, neste sentido, o dispositivo que mantém unidos violência e direito e, ao mesmo tempo, quando se realiza, o que rompe essa unidade. Por outro lado, como dizíamos, o estado de exceção aparece como o paradigma da política contemporânea, ideia que parte da tese benjaminiana, segundo a qual em nossa época “o estado de exceção se tornou a regra”.

IHU On-Line — Quais são os pensadores que o influenciaram na formulação desse conceito?

Flavia Costa — Fundamentalmente os dois que ele mesmo menciona como fontes primárias de sua reflexão no volume Homo sacer 11,1: Walter Benjamin e Carl Schmitt (embora desde já sejam influências diferentes). Segundo a leitura que oferece o próprio Agamben do debate mais ou menos secreto que ambos os pensadores alemães mantiveram sobre a questão do estado de exceção, foi Benjamin quem deu o pontapé inicial com seu texto “Para una crítica de la violência” (1921), ao qual Schmitt teria respondido com seu Teologia política (1922). E o diálogo ainda continuou, até a famosa Tese oitava de Filosofia da história, na qual Benjamin, poucos meses antes de sua morte, assinala: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ no qual vivemos é a regra. Devemos aderir a um conceito de história que corresponda a este fato”. Do ponto de vista das afinidades históricas, é claro que Benjamin é, nos inícios do projeto de Homo sacer, uma influência chave para Agamben, enquanto Schmitt é a fonte “negativa”; isto é, o que se propõe Agamben é tomar Schmitt para pensar contra Schmitt. É o jurista nazi que define ao soberano como detém, não tanto o monopólio da violência física, senão o monopólio da decisão sobre o estado de exceção. O soberano é quem, por sua particular posição em relação com a lei, relação de inclusão excludente ou exclusão inclusiva, pode suspender a lei para garantir a própria existência da lei. A terceira influência que se fará cada vez mais forte ao longo desses anos é Michel Foucault e, em particular, sua tese sobre a politização da vida biológica na Modernidade, tese que Agamben continuará e corrigirá, a seu modo, em diferentes etapas desta obra.

IHU On-Line — Como podemos compreender o paradoxo de que o soberano decrete uma ordem que está fora ou mesmo acima da lei, que inclua e exclua os sujeitos ao mesmo tempo naquilo que podemos chamar de incluso excludente, ou exclusão inclusiva?

Flavia Costa — Vejamos, e desculpem esta resposta longa: o chamado ‘paradoxo da soberania’ consiste em que o soberano se encontra ao mesmo tempo dentro e fora do ordenamento jurídico. O que quer dizer isto? Que tem, por lei, a potestade de suspender a lei para poder garantir seu funcionamento. Por um lado, a relação de exceção, própria da soberania, constitui o dispositivo especifico e a forma de relação entre direito e vida. A situação criada por esta exceção soberana introduz, entre o fato e o direito, uma zona de indiferença, um umbral de indistinção: é nesse umbral, e a partir dele, que algo assim como “fato” e “direito” podem aparecer. Por isso diz Agamben que a exceção é a estrutura político jurídica fundamental e originária. Por outro lado, a produção própria deste dispositivo é a vida desnuda (nuda vita), isto é, aquilo que produz quando captura a vida biológica dentro do direito. É importante recordar sempre que a nuda vita não é, em absoluto, num dado natural, senão uma produção minuciosa da biopolítica. Ao incluir a vida do vivente, enquanto vida desnuda, dentro do direito, mediante sua exclusão (o poder produz, mediante a exceção, a cisão entre cidadania e vida desnuda), a política se torna biopolítica. E o estado de exceção, enquanto cria as condições jurídicas para que o poder disponha dos cidadãos enquanto vidas desnudas, é um dispositivo biopolítico chave.

IHU On-Line – Quais são os nexos que podem ser estabelecidos entre o estado de exceção e o controle biopolítico?

Flavia Costa – Para Agamben, pelo que vínhamos dizendo, a exceção, enquanto relação de exclusão-inclusiva, é a estrutura originária que funda a biopolítica, e não só a biopolítica moderna. Aqui Agamben retoma Foucault de “Direito de morte e poder sobre a vida”, mas também o corrige. A novidade da política moderna não consiste tanto em ter se convertido em biopolítica: toda política era biopolítica já desde a Antiguidade. A novidade da política moderna é que a exceção se tornou a regra; isto é, aquilo que aparecia incluído mediante sua exclusão (o estado de natureza, o “animal” no homem) aparece agora indiferenciado com respeito ao seu oposto: o estado civil, o “humano” no homem. E, neste mesmo sentido, a política (a politização da vida) é uma operação metafísica de primeira ordem, na medida em que funciona como o umbral entre vivente e logos, entre vida desnuda e existência qualificada, entre inclusão e exclusão.

IHU On-Line – Que imbricações são perceptíveis com a ideia de vida nua (homo sacer)?

Flavia Costa – Como recém mencionada, esta relação entre exceção soberana e nuda vita é íntima. Poderíamos dizer que se trata de uma bipolaridade, onde em cada um dos polos aparecem as figuras simétricas e opostas do soberano e o homo sacer. Assim como o soberano está incluído na lei como aquele que está constitutivamente excluído, porque é capaz de estar ao mesmo tempo dentro e fora da lei, também o homo sacer está numa posição de exterioridade-interioridade com respeito à lei: pertence (negativamente) ao divino enquanto é insacrificável e está incluído (negativamente) na comunidade sob a forma da possibilidade de que seja morto impunemente. O homo sacer reúne, assim, de maneira paradigmática, as características da vida sujeita ao poder soberano, ao seu poder de dar a morte. Por isso, pode dizer Agamben: “soberano é aquele com respeito ao qual todos os homens são potencialmente homines sacri, e homo sacer é aquele com respeito ao qual todos os homens atuam como soberanos”.

IHU On-Line – Qual é a atualidade do conceito de estado de exceção ante a situação política de inúmeras nações em nossos dias?

Flavia Costa – Desde começos do século XX assistimos, segundo Agamben, a um fato preocupante, que passa inadvertido para a maioria: vivemos no contexto do que se tem denominado uma “guerra civil legal”. O totalitarismo moderno se define como a instauração de uma guerra civil legal através do estado de exceção, e isto ocorre tanto para o regime nazi como para a situação em que se vive nos Estados Unidos desde que George W. Bush emitiu, em 13 de novembro de 2001, uma “military order” que autoriza a “detenção indefinida” dos não cidadãos estadunidenses suspeitos de atividades terroristas. Já não se trata de prisioneiros nem de acusados, senão de sujeitos de uma detenção indefinida – tanto no tempo como no modo de sua detenção -, que devem ser processados por comissões militares, distintas dos tribunais de guerra. Nesse marco mais geral, basta observar, em cada nação, a assiduidade com a qual os governos lançam mão de diferentes modalidades de exceção para impor, por exemplo, suas políticas de “ajuste”, para identificar a atualidade enorme do problema.

IHU On-Line – Qual é o nexo que une a máquina governamental e a máquina antropológica no estado de exceção?

Flavia Costa – Na máquina governamental do Ocidente, que produz o político através da articulação de soberania e governo, o estado de exceção constitui o dispositivo específico de atuação do poder soberano, seja qual for o regime ou o sistema político formal. Na máquina antropológica dos modernos, que produz o humano através da articulação [que é, ao mesmo tempo, união e separação] entre o vivente e o cidadão, entre a vida biológica e a vida qualificada, entre o animal e o homem, o estado de exceção é o paradigma ou modelo da produção do inumano a partir do humano.

IHU On-Line — Como podemos compreender as implicações de que o estado democrático de direito não conseguiu abolir plenamente a vontade soberana? O que isso significa em termos de persecução às “populações perigosas” ou economicamente improdutivas?

Flavia Costa — As implicações, creio eu, são claras, radicais e provavelmente esmagadoras: a necessidade imperiosa de pensar uma política não soberana.

IHU On-Line — Que exemplos atuais de aplicação do estado de exceção são emblemáticos na política ao redor do mundo? Flavia Costa — Embora não se trate da aplicação, dentro de um Estado, de um regime de exceção, creio que precisamente por isto mesmo o ocorrido dias atrás nas costas de Lampedusa, Itália, onde morreram cerca de 300 pessoas escapando de suas terras, assinala o nó do que está em jogo na ideia de um “estado de exceção que se tornou a regra”, assim como a da “guerra civil legal” estendida ao mundo inteiro. A informação publicada pela BBC londrina destaca, não sem sua cota de cinismo: “Eritreia é um dos países mais isolados e politicamente mais repressivos da África. Muita gente quer ir embora dali. Na vizinha Somália há problemas similares, agravados pela guerra civil que começou em 1991 e da qual apenas agora parece estar saindo, graças a um esforço multinacional. Também muitos somalianos querem sair. (…) Mas, sem a documentação necessária, a única maneira que tem a maioria dos cidadãos desses países de chegar à Europa é pondo-se nas mãos de bandos criminosos que traficam seres humanos”.

IHU On-Line — Há uma vinculação velada ou evidente entre estado de exceção e pobreza, seja nas favelas da América Latina ou entre os refugiados que assomam à Europa diariamente? Flavia Costa — Entendo que sim, existe este vínculo, não sempre evidente. De fato, Agamben nos dá pistas sobre isto quando, em “Medíos sin fin” [Meios sem fim] (AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine. Note sulla politica. Torino: Bollti Boringhieri, 1996) e logo em Homo sacer I (AGAM-BEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010), escreve sobre a figura do refugiado e sobre o povo como figuras-limite que revelam a fração biopolítica fundamental instaurada por meio da relação de exceção, ou relação de bando-abandono. Em relação com o refugiado, isto é, o homem desprovido de cidadania, ao romper a identidade entre homem e cidadão, entre nascimento e nacionalidade, põe em crise “a ficção originária da soberania”, diz Agamben. Quanto ao povo, trata-se de uma noção bipolar que designa, nas línguas romanas modernas, tanto o Povo dos cidadãos como o povo dos pobres, os excluídos, os não documentados. Isto reflete o caráter dual do conceito de povo, que implica também que a conformação de um corpo político se realiza sempre por meio de uma cisão, na qual é possível reconhecer os pares categoriais nuda vita (povo) e existência política (Povo), zoé e bios, exclusão e inclusão. Para Agamben, com efeito, “o projeto democrático-capitalista de pôr fim, por meio do desenvolvimento, à existência das classes pobres, “não só reproduz em seu próprio seio o povo dos excluídos, senão que transforma em nuda vita todas as populações do “Terceiro Mundo”. É toda uma definição e um verdadeiro desafio para o pensamento político.

*Publicado Originalmente em “Cadernos IHU em formação” Ano 9, nº 45, 2013 – Universidade Vale do Vale do Rio dos Sinos – Instituto Humanitas Unisinos

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