Por Daniel Alves Teixeira.
Não é esperado do “estrangeiro” que se mobilize politicamente, ou traga demandas de justiça. O importante é que ele reconheça a “nobreza” de sua acolhida e aceite as regras do jogo a que ele, talvez ainda mais do que aqueles que aqui nasceram, escolheu voluntariamente aderir. A ideologia é mesmo o lugar das aparências, pois aqui a “tolerância” é a forma exata da aparição de seu oposto.
Como afirma Dunker: “O muro é uma estrutura de defesa, uma forma de determinação do espaço como território. A defesa é um conceito psicanalítico que gira em torno das diferentes maneiras como a indeterminação, gerada pelo desejo, pela angústia, pelo trauma e pela pulsão, pode ser concernida em estruturas de determinação.”
O livro recentemente publicado de Christian Dunker, Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma, por uma coincidência que não se sabe feliz ou infeliz, ganha dimensões ainda mais relevantes neste momento em que toda a Europa parece ganhar as feições de um gigantesco condomínio, em face das ondas de imigrantes oriundos de países do Oriente Médio que buscam adentrar o território europeu. Isto poeque Dunker explora em seu livro como a expansão daquilo que chama de “lógica do condomínio”, além da evidente materialidade da separação física operada pelos emergentes muros e fronteiras fortemente vigiados, está ligada a déficits de processos de reconhecimento social e à fragilização do vínculo social, operantes em nossos tempos de capitalismo tardio.
Pois ali onde está o muro, a fronteira que deveria separar o dentro e o fora, o idêntico e o diferente, é exatamente o lugar “habitado por uma demanda”.[1] Lugar privilegiado, portanto, da interpelação ideológica, já que é ali que irão se constituir os processos de subjetivação, identificação e reconhecimento ligados igualmente às articulações do desejo, da Lei e do relacionamento com o Outro, inerentes às formações sociais. De fato, “O muro é uma estrutura de defesa, uma forma de determinação do espaço como território. A defesa (Abwehr) é um conceito psicanalítico que gira em torno das diferentes maneiras como a indeterminação, gerada pelo desejo, pela angústia, pelo trauma e pela pulsão, pode ser concernida em estruturas de determinação.”[2] Angústia ligada a excessiva proximidade de algo estranho, que não se submete rapidamente às leis de identificação imaginária do indivíduo.
Mas nosso propósito aqui é apontar como estas questões levantadas por Dunker concernentes a “lógica do condomínio” pode nos ajudar na crítica da cada vez mais paradoxal ideologia de nossos tempos, e com a qual, ao que parece, devemos ser cada vez mais contundentes na crítica para que as inconsistências dos discursos hoje hegemônicos venham à tona.
Isto porque o aumento da atenção midiática sobre a situação dos imigrantes ocorreu concomitantemente com a propagação série de medidas de “solidariedade” e “atenção humanitária” (e sua devida propaganda). Alguns milionários do futebol europeu, cheios de preocupação e atenção, logo mandaram alguns “milhões de euros” para a causa (não me pergunte o que esse dinheiro faz efetivamente), o Barcelona abriu suas portas e ofereceu emprego para um imigrante que havia sofrido uma rasteira de uma repórter, bem como a revista Veja decretou em sua capa dominical o fracasso de toda a humanidade frente à foto do pequeno menino sírio morto na beira mar. Antes de qualquer coisa, são seres humanos, pessoas como nós, e isso deve estar acima de qualquer ideologia.
No Brasil, onde a muralha bruta (ainda) não parece tão presente, o discurso envolvendo a entrada de haitianos, sírios e outros mais tem seguido a já velha imagem do Brasil “de todas as raças”, acolhedor, receptivo a todo tipo de pessoa, da alegria e da multiculturalidade. Diversos times de futebol (coincidência?) começaram campanhas para demonstrar toda sua acalorada solidariedade aos recém-chegados, bem como diversos programas e reportagens apressam-se a nos mostrar o enorme de sofrimento de que eram vítimas em sua terra natal, lugares de “fundamentalismo”, “tiranias” e “opressão” sem fim, e a promessa de liberdade que encontram em nossas terras de oportunidade.
Neste ponto, por mais que as imagens de solidariedade e humanismo nos comovam, é preciso retomar a coragem para pensar, uma vez que mesmo uma análise superficial já é capaz de demonstra rapidamente que toda a preocupação humanitária esconde dimensões políticas e ideológicas importantes. Primeiramente, e a evidência disto salta aos olhos, com toda essa história de caridade e atenção social o Ocidente “esclarecido” consegue a proeza de aparecer como salvador e benfeitor dos expropriados de suas próprias guerras. O truque de mágica aqui é notável. Quase todos os movimentos imigratórios que vemos no momento são frutos dos mais diversos movimentos do expansionismo capitalista, ou então do simples abandono dos países colonizados após anos de exploração. Obviamente, a tentativa é imputar toda a culpa no “fundamentalismo islâmico” ou no “atraso econômico” de países subdesenvolvidos e mal governados. Não é o interesse deste artigo entrar detalhadamente nesta questão agora, mas a tópica do “liberalismo” x “fundamentalismo” é em si amplamente ideológica e problemática, e neste caso mais uma vez serve para ocultar a verdadeira dimensão do problema.
Porém, retomando a problemática do reconhecimento tal como Dunker explora em sua análise da “lógica do condomínio”, talvez uma análise mais incisiva possa ser feita da questão se nos atentarmos nesse processo de “assimilação” do estrangeiro. “Assimilação” é a palavra escolhida pois quase todos os veículos midiáticos brasileiros, quando abordam o problema do imigrante fazem questão de destacar, antes de qualquer coisa, sua maravilhosa, e penosa, jornada pelo emprego, a longa peregrinação pela oportunidade resolvida pelo milagre do salário, que permite a ele desfrutar da satisfação de cuidar autonomamente de sua vida. O que importa é destacar que, apesar dos pesares, aqui se encontram “oportunidades” de emprego e, portanto, de dignidade e felicidade, obviamente objetivos universalmente partilhados. Trata-se de fazer aparecer um outro que é rapidamente normalizado, um igual entre nós, humano com suas limitações, esperanças e sonhos.
Mas a verdadeira intenção de narrativas como essas é de justamente fazer com que esse outro, que, como explica Dunker, é o lugar de onde provém a demanda, e com esta, a angústia, rapidamente seja fagocitado pela gigantesca classe anônima trabalhadora e do subemprego, de forma que o incômodo causado pela presença do estranho e do diferente desapareça, fazendo aparecer em seu lugar um idêntico. Por isso mesmo, não é esperado deste “estrangeiro” que ele se mobilize politicamente, ou que traga demandas de justiça dos países miseravelmente atacados e explorados pelas potências ocidentais. Antes, o importante é que ele reconheça a “nobreza” de sua acolhida e aceite as regras do jogo a que ele, talvez ainda mais do que aqueles que aqui nasceram, escolheu voluntariamente aderir. A ideologia é mesmo o lugar das aparências, pois aqui a “tolerância” é a forma exata da aparição de seu oposto.
O que temos aqui é mais um fenômeno de algo que aparentemente vem se tornando o padrão das operações ideológicas. Depois do café sem cafeína, do chocolate sem gordura, temos o outro sem Outro. E devemos levar a sério está problemática, pois as consequências políticas de atitudes como essas são fundamentais. Este processo pelo qual o outro é entendido sempre como finito, determinado, e resumido a suas aspirações particulares possui como contrapartida a foraclusão dos mecanismo ideológicos que sustentam a base de nossa própria sociabilidade. Isto é assim descrito por Slavoj Zizek:
“Em nosso universo pós-moderno, todo pequeno outro é “finitizado” (percebido como falível, imperfeito, “meramente humano”, ridículo), inadequado para dar corpo ao grande Outro – e, dessa maneira, preserva a pureza do grande Outro sem as manchas de seus fracassos. (…) A raiz dessa claustrofobia é que a falta de representantes incorporados do grande Outro, ao invés de abrir o espaço social, privando-o de qualquer figura de Mestre, torna o invisível “grande Outro”, o mecanismo que regula a interação dos “pequenos outros”, muito mais difícil”.[3]
Ou seja, a que sociedade exatamente o imigrante ou estrangeiro está sendo “integrado”, e qual é a qualidade própria dessa dita “integração”? Se não fizermos essas perguntas estaremos entrando num ciclo fatal de idealização de nossa própria sociedade e sua liberdade formal mercantil, ignorando que em verdade é ela própria a responsável direta pelo surgimento de uma quantidade cada vez maior dessas pessoas “sem-lugar”, expatriadas, pelo que que o modus operandi básico da ideologia será justamente buscar cada vez mais “obliterar” sua incomôda existência.
Este processo de “finitização” do sujeito, espécie de normalização social, serve também para sufocar as possíveis demandas que poderiam surgir justamente em função de sua posição “deslocada”. Se o muro e o Outro fazem surgir o lugar do desejo e a problemática de seu reconhecimento, podemos muito bem imaginar qual seria a réplica de um “liberal” caso um “estrangeiro” ou “imigrante” começasse a pautar causas políticas ou se mobilizar socialmente: “Nós o recebemos de braços abertos, você tem aqui todas as oportunidades que nunca teve em sua terra, e agora vem fazer exigências e causar confusão? Você deveria estar satisfeito!” Ou seja, insistir na satisfação da demanda do Outro pode ser a melhor forma de exigir sua distância.
Vejamos exatamente como Zizek descreve a passagem de uma demanda particular para a explosão da Universalidade:
“Vamos lembrar o exemplo padrão de um protesto popular (demonstração de massa, greve, boicote) dirigida a um ponto específico, isso é, focando em uma demanda particular “(Acabem com essa nova taxa! Justiça para o aprisionado! Parem de explorar os recursos naturais” ….) – a situação se torna politizada quando essa demanda particular começa a funcionar como um metáfora condensadora da oposição global contra Eles, aqueles no poder, e então o protesto não é então realmente somente sobre aquela demanda, mas sobre a dimensão universal que ressoa naquela demanda particular (por essa razão, os protestantes geralmente se sentem de alguma forma ludibriados quando aqueles no poder contra os quais seu protesto era endereçado simplesmente aceitam sua demanda – como se, dessa maneira, eles tivessem de alguma forma lhes frustrado, privando-os do verdadeiro alvo de seu protesto pela própria conduta de aceitar sua demanda). O que a pós-política tenta prevenir é precisamente essa universalização metafórica das demandas particulares: a pós-política mobiliza o vasto aparato de experts, trabalhadores sociais, etc, para reduzir a demanda global (queixa) de um grupo particular para somente essa demanda, esse conteúdo particular – não admira que esse fechamento sufocante dê nascimento a “irracionais” explosões de violência como o único caminho para dar expressão a dimensão além da particularidade”[4]
Portanto, a tendência atual da ideologia dominante, longe de procurar sufocar as particularidades para tender a uma “homogeneização” progressiva dos indivíduos, como algumas vezes algumas tendências críticas parecem sugerir, é a de insistir nas particularidades das demandas para justamente evitar o aparecimento de sua dimensão Universal, de suas aspirações a uma transformação radical. É fácil imaginar os jogadores da seleção alemã se solidarizando com os imigrantes que chegam a seu país, muito mais difícil é imaginar a mesma solidariedade com o Syriza ou outros movimentos que tentem mobilizar ativamente esses “excedentes sociais”. A própria visão de tal mobilização já causa terror nos corações liberais do Ocidente.
Esse terror é constitutivo da subjetividade humana enquanto tal, fruto do encontro com o enigma (e a jouissance) do Outro. Podemos imaginar um laço social fundada nisso que parece o pior? Vladimir Safatle parece dizer que sim quando diz:
“Muito haveria a se dizer a respeito desse amor do que, no outro, não é constituído a partir da imagem de um Eu. Amor que, por abalar a exigência de integração, não pode ser pensado como figura do Eros unificador próprio a pulsão freudiana de vida. Esse amor, ao contrário, tem a força de se voltar, de reconhecer algo de impessoal e de despersonalizado que se encontra no outro. Algo que leva o deseja a se vincular com o que não se submete diretamente ao principium individuationis, a procurar a felicidade lá onde o Eu não consegue mais projetar a imagem de si mesmo, lá onde ele deve ser superado.”[5]
[1] Dunker, Christian Ingo Lenz Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo, Ed. Boitempo, 2015, págs. 65
[2] [2] Dunker, Christian Ingo Lenz Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo, Ed. Boitempo, 2015, pág. 59
[3] Zizek, Slavoj Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, págs. 54/55
[4] Zizek, Slavoj. The ticklish subject: The Absent Centre of Political Ontology. Londres, Ed. Verso, 2008, págs. 243/244 (traduzido do inglês pelo autor)
[5] Safatle, Vladimir Grande Hotel Abismo: por uma reconstrução da teoria do reconhecimento. São Paulo, Ed. WMF Martins Fontes, 2012, pág. 191