por Daniel Alves Teixeira
Catherine Malabou é uma filósofa francesa que ainda não provocou no Brasil as repercussões que seu trabalho merece, talvez em função da falta de traduções de suas obras para o português. Isto porque Malabou empreende uma inovadora leitura de Hegel, principalmente no livro que foi escrito tendo por base a tese de doutorado que escreveu sob a supervisão de Jacques Derrida e Jean-Luc Marion, L’avenir de Hegel (O futuro de Hegel). Posteriormente, passou ao desenvolvimento das teses principais elaboradas nesta obra, confrontando-as com questões atuais como o desenvolvimento das ciências do cérebro em Que faire de notre cerveau? (O que fazer de nosso cérebro?) e as novas formas de subjetividade surgidas dos traumas físicos e psíquicos da contemporaneidade em Les Nouveaux blessés (As novas feridas). Podemos afirmar, entretanto, que se as obras mais recentes de Malabou não deixam de provocar interesse e de apontar novas relações entre os problemas atuais e a filosofia, sua obra inaugural sobre Hegel permanece seminal para a compreensão do que veio depois e das linhas gerais de seu pensamento.
O que torna mais instigante a leitura de L’avenir de Hegel é que, assim como outros filósofos contemporâneos como Slavoj Zizek e Fredric Jameson, nessa obra Malabou promove uma defesa aberta de Hegel frente aos tradicionais críticos de sua obra, como Heiddeger e Derrida (que apesar de muito ter lhe inspirado, confessa ter tido que romper do ponto de vista teórico, não sem algum amargor), para tentar dar corpo à uma nova interpretação de Hegel que entendia haver encontrado. E a expressão “encontro” vem bem ao comento, pois, como a própria Malabou afirma, já na conclusão de L’avenir de Hegel, seu empreendimento de uma nova leitura de Hegel se deu em função de uma “queda”, um “tropeço”, em um conceito não muito explorado, e podemos mesmo dizer “secundário”, do filósofo alemão, a ideia de plasticidade:
“Tudo começou – ou recomeçou – quando, “caindo” um dia sobre o termo ‘plástico’, eu aqui me detive, de uma vez intrigada e reconhecida. Intrigada por sua discrição no corpus hegeliano, por tudo o desconhecido que, através dele, parecia se entrever. Reconhecimento do essencial que ele repentinamente dava a conhecer.”[1]
Malabou irá então se servir deste “encontro” com o conceito de “plasticidade” para desenvolver sua tese em uma proposta clara: refutar as alegações de que Hegel seria um pensador sem futuro. E, como explica, sem futuro em dois sentidos. Primeiro, a ideia de que a teoria de Hegel, onde tudo se “suprassume” no conceito, onde toda a realidade empírica é destruída pelo poder da negatividade abstrata do pensamento, fecha o horizonte para qualquer tipo de evento, de uma verdadeira transformação na ordem do mundo. E, talvez como consequência deste entendimento, a ideia de que não haveria assim um futuro da filosofia de Hegel, que seria para muitos o último monólito da metafisica ocidental e sua intenção de tornar a razão e o pensamento o centro de todas as coisas, tempo filosófico superado pela ditas teorias “pós-modernas”.
Frente a tais afirmações, a filósofa francesa afirmará que, ao contrário, a partir da nova ótica proporcionada por um conceito aparentemente “acidental” em sua obra, uma releitura atenta da filosofia de Hegel é capaz de demonstrar sua abertura radical para o futuro, pelo que sua pertinência e potencialidades não estariam esgotadas. Um novo horizonte de pensamento poderia ser aberto ao voltar os argumentos habitualmente levantados contra Hegel “contra eles mesmos”, valendo-se para tanto dos próprios conceitos hegelianos, demonstrando assim que sua filosofia comporta um devir, uma plasticidade própria, e que talvez seja somente agora, após muitos anos de “anti-hegelianismo”, que o futuro de Hegel se torne algo visível para nós.
Fruto do encontro entre a subjetividade grega e cristã, a subjetividade moderna teria se tornado para Hegel, na leitura de Malabou, não um ápice histórico definitivo, com sua concepção “totalitária” de racionalidade, como dizem alguns (mais bem resumida pela sua tanta vezes criticada ideia do “fim da história”), mas antes a sinalização de um corte radical, de um ponto incontornável de seu próprio (auto)desenvolvimento. Tal subjetividade seria assim dotada de um devir singular, que conteria em si, em sua plasticidade explosiva, um passado e um futuro ainda necessariamente desconhecidos para os indivíduos envolvidos em seu advento. No encontro desses dois tempos (grego e cristão) surge uma nova forma da consciência, e com isso um novo tempo com seu próprio tempo de desenvolvimento e formação. Nas palavras de Malabou:
“Na realidade, Homem, Deus, Filosofia, longe de serem sujeitos pré-constituídos, se revelam como os lugares onde a subjetividade se constitui, as instâncias plásticas, onde os três grandes momentos da autodeterminação: o grego, o moderno e aquele do saber absoluto, se dão a forma de momentos, quer dizer, criam sua temporalidade especifica. Portanto, o conceito de “estágio” perde seu conteúdo evolutivo para designar então um corte – a operação de corte – na autoformação do tempo.”[2]
Desta forma, tomando uma ideia aparentemente acidental em Hegel e fazendo dela a essência de sua leitura, Malabou é capaz de realizar uma leitura que oferece uma nova perspectiva sobre temas importantes encontrados na obra de um dos mais importantes filósofos do idealismo alemão, como subjetividade, razão, liberdade e sistema, para assim dar-lhes uma nova feição e, quem sabe, um futuro ainda desconhecido de sua obra. Leitura indispensável (não só) para aqueles interessados na obra de Hegel e seus leitores contemporâneos, com uma potencialidade para pesquisa e desenvolvimentos teóricos ainda que quase inexplorados.
Catherine Malabou estará presente no Brasil em uma séria de exposições organizadas sob o nome de Mutações, a serem realizadas no Rio de Janeiro e São Paulo, junto de outros grandes nomes e temas das mais variadas áreas das ciências humanas, como o também francês Jean-Pirre Dupuy, Vladimir Safatle, Maria Rita Kehl, entre outros. Mais informações sobre o evento podem ser vistas no link: http://www.mutacoes.com.br/programacao/. Algumas informações úteis sobre a obra de Malabou podem também ser encontradas na Wikipédia: https://en.wikipedia.org/wiki/Catherine_Malabou.
[1] Malabou, Catherine. L’avenir de Hegel: Plasticité, Temporalité, Dialectique. Paris, Ed. Librairie Philosophique J. Vrin, 2012, pg. 246/247. Tradução livre.
[2] Malabou, Catherine. L’avenir de Hegel: Plasticité, Temporalité, Dialectique. Paris, Ed. Librairie Philosophique J. Vrin, 2012, p. 36. Tradução livre.
2 comentários em “Catherine Malabou, por um futuro de Hegel”
Durante o texto a noção de “plasticidade destrutiva” emerge sem aviso prévio: problema sério de estrutura(ção): a ambiguidade da plasticite francesa para o pensar de Malabou é crucial: capacidade de receber forma, de formar e de explodir. Esse nó triplo alimenta o pensamento da francesa, o que é muito diferente de só dizer “plasticidade” pra lá e pra cá em português e subitamente surgir com outra construção pouco ou nada coerente ao uso até então. A destrutividade referida é parte crucial do pensamento dela, aparecendo nos novos traumatizados (ou “as novas feridas” como prefere o autor), o que se articula maravilhosamente bem com a estilística impenetrável de Hegel, suas conclusões paradoxais e sua dessubstancialização/esvaziamento da noção de ‘sujeito’ (tomando-o por chão último para a medida da suficiência dos saberes). Displicência patente: a editora Cultura & Barbárie, (daqui) de Florianópolis, capital de SC, sul do país, traduziu e lançou um livro dela: Ontologia do Acidente, exatamente onde a destrutividade é sistematizada e explorada. Que feio.
Valeu pelo comentário massa, Daniel!
Não domino tanto o francês para sacar de modo preciso o que a autora quer dizer – ainda tô no corre da versão inglesa. Mas, a partir da postagem, é possível apontar que na obra “Pensamento e Fala” de Lev Vigotski (1934) já rola uma interpretação de muito parecida com a de Malabou. Apesar do autor russo perscrutar a relação entre pensamento e fala no desenvolvimento social do indivíduo, a categoria plasticidade, do ponto de vista psicológico, é debatida constantemente – tanto que no último capítulo do livro referido, Vigotski sugere seus débitos com o filósofo alemão.
No mais, foi essa interpretação que rolou. Mas posso estar errada…
O que acha?