A consciência como um processo físico decorrente da organização da energia no cérebro

Por Robert Pepperell, via Frontiers, traduzido por Tatiana Kurosaki

Para explicar a consciência como um processo físico devemos reconhecer o papel da energia no cérebro. A atividade energética é fundamental para todos os processos físicos e impulsiona causalmente o comportamento biológico. Recentes evidências científicas podem ser interpretadas de forma a sugerir que a consciência é um produto da organização da atividade energética no cérebro. No entanto, a natureza da energia em si permanece um mistério e não compreendemos completamente como esta contribui para a função cerebral ou a consciência. De acordo com o princípio delineado aqui, a energia, juntamente com a força e o trabalho, pode ser descrita como diferenças substanciais de movimento e tensão. Ao observar sistemas físicos, podemos inferir que há algo que é como ser submetido a diferenças substanciais da perspectiva intrínseca do sistema. A consciência ocorre porque há algo que, intrinsecamente, é como ser submetido a uma certa organização de diferenças substanciais no cérebro.


“Se os processos mentais são realmente processos físicos, então deve haver alguma coisa que, instrinsecamente, é como ser submetido a certos processos físicos. Permanece um mistério o que é para tal coisa ser o caso” (NAGEL, 1974)

O filósofo Thomas Nagel sintetizou um dos nossos maiores desafios intelectuais: como explicar processos mentais como processos físicos. O objetivo deste artigo é de delinear um princípio segundo o qual a consciência pode ser explicada como um processo físico causado pela organização da energia no cérebro1.

A energia é fundamentalmente importante em todos os processos físicos (Lotka, 1922; Schrödinger, 1944; Heisenberg, 1958; Boltzmann, 1886). Como o biofísico Harold Morowitz (1979) colocou: “o fluxo de energia através de um sistema atua para organizar este sistema”. Luz, reações químicas, eletricidade, trabalho mecânico, calor, e a vida em si podem ser descritas em termos de atividade energética  (Chaisson, 2001; Morowitz; Smith, 2007; Smil, 2008) assim como processos metabólicos no corpo e cérebro (Magistretti, 2008; Perez Velazquez, 2009). É surpreendente, portanto, que a energia receba, relativamente, tão pouca atenção nos estudos neurocientíficos e psicológicos da consciência. As principais teorias científicas da consciência não fazem referência a ela (Crick and Koch, 2003; Edelman et al., 2011; Dehaene, 2014; Oizumi et al., 2014), a atribuem um papel marginal (Hameroff; Penrose, 2014), ou a tratam como uma quantidade em teoria da informação (Friston, 2013; Riehl et al., 2017). Se sequer é discutida, é como um substrato sustentando uma dinâmica emergente de alto nível (Deacon, 2013) ou alimentando o processamento de informações neurais (Sterling; Laughlin, 2017).

Essa falta de destaque é ainda mais surpreendente dado que alguns dos pioneiros da neurobiologia, psicologia e fisiologia colocam a energia em um papel central em suas teorias, incluindo Hermann von Helmholtz (Cahan, 1995), Gustav Fechner (1905), Sigmund Freud (Gay, 1988), William James (James, 1907), e Charles Sherrington (1940)2. No entanto, há sinais que a atenção está se voltando novamente para teorias energéticas, ou teorias relacionadas a termodinâmica, da consciência em vários ramos da ciência (Deacon, 2013; Collell; Fauquet, 2015; Annila, 2016; Street, 2016; Tozzi et al., 2016; Marchetti, 2018) e em filosofia da mente (Strawson, 2008, 2017).

O presente artigo se baseia nestes trabalhos para propor que a energia, e as propriedades de força e trabalho relacionadas, podem ser descritas como diferenças substanciais de movimento e tensão, e diferenças substanciais – na frase de Nagel – “há algo que, intrinsecamente, é como ser submetido”. Recentes evidências neurocientíficas sugerem que a consciência é um produto da forma como a atividade energética é organizada no cérebro. Seguindo esta evidência, proponho que nós experimentamos a experiência porque há algo que, intrinsecamente, é como ser submetido a uma certa organização de diferenças substanciais no cérebro.

Diversos pesquisadores abordaram o problema da consciência tratando o cérebro em princípio como um processador de informações neurais. (e.g., Tononi et al., 2016; Dehaene et al., 2017; Ruffini, 2017). Eu vou argumentar que o princípio governante do cérebro a um nível neural não é de processamento de informações e sim, processamento de energia. A abordagem da teoria da informação para mensurar e modelar a atividade do cérebro, no entanto, pode complementar a abordagem energética delineada aqui.

Consciência e Energia no Cérebro

Nós não entendemos completamente a função biológica da energia no cérebro ou como esta se relaciona para a presença da consciência em uma pessoa3. Dado que o cérebro humano representa apenas 2% da massa corporal, ele demanda uma porção significativa do saldo total da energia do corpo, alguns estimam em 20% (Laughlin, 2001; Magistretti; Allaman, 2013). Grande parte desta energia é derivada da oxidação da glicose fornecida ao tecido cerebral através do sangue. Roy e Sherrington foram os primeiros a propor uma correspondência direta entre as mudanças do fluxo sanguíneo cerebral e a sua atividade funcional (Roy; Sherrington, 1890). Acredita-se que as características da anatomia cerebral, como o número de vasos sanguíneos por unidade de espaço, o comprimento da rede de conexões neurais, a largura dos axônios, e até a razão entre tamanho do cérebro e estômago, são determinadas por uma alta demanda metabólica associada a complexos processos cognitivos (Allen, 2009).

Para muitos neurocientistas, a principal função da energia no cérebro é alimentar os sinais neuronais e o processamento de informações (Magistretti, 2013); o suprimento de energia é visto como uma restrição no design e na operação da arquitetura computacional do cérebro (Laughlin, 2001; Hall et al., 2012; Sterling; Laughlin, 2017). Foi calculado, por exemplo, que a taxa do suprimento de energia no cérebro coloca um ‘limite máximo de velocidade’ no processamento neural de cerca de 1kHz (Attwell and Gibb, 2005). E Schölvinck et al. (2008) estimaram que a percepção consciente de estímulos sensoriais aumentam o consumo de energia no cérebro primitivo por menos de 6% quando comparado ao consumo de energia na ausência de uma percepção consciente4. Eles atribuíram essa pequena diferença a um eficiente “design estratégico” da energia no cérebro da atividade neural em que diminuições da atividade neural desempenham um papel funcional no processamento de informações, assim como os seus aumentos. A energia, segundo estes relatos, não desempenha um papel direto em processos mentais maiores, como a consciência.

Robert Shulman e seus colegas argumentaram que há uma conexão direta entre a energia no cérebro e a consciência (Shulman et al., 2009; Shulman, 2013). Ao estudar a perda progressiva da resposta comportamental a estímulos externos desde estados de vigília a anestesias profundas, eles encontraram uma correspondente redução e a localização do metabolismo cerebral (um marcador do consumo de energia). Portanto, eles argumentaram que um alto metabolismo global é necessário para a consciência. Porém, eles também descartam que altas taxas metabólicas globais são suficientes, pois pacientes com síndrome do encarceramento e aqueles que sofrem de algumas formas de crise epiléptica podem registrar altos níveis de metabolismo cerebral global sem exibir comportamentos observáveis esperados de um pessoa consciente (Shulman, 2013; Bazzigaluppi et al., 2017). A tese de Shulman foi questionada em diversos quesitos. Por exemplo, tem sido apontado que a capacidade de resposta comportamental pode ser inadequada como uma medida de senciência dado que vestígios de consciência podem ser detectados em pessoas diagnosticadas em estados vegetativos com baixo metabolismo cerebral (Owen et al., 2006). Além disso, alguns pacientes que recuperam a consciência de estados vegetativos, o fazem independentemente de terem o metabolismo cerebral reduzido substancialmente quando comparado com controles normais  (Laureys et al., 1999; Chatelle et al., 2011).

Em anos recentes, houve um crescente interesse pela atividade intrínseca do cérebro (Clarke; Sokoloff, 1999; Raichle, 2011). Esse segundo plano ou atividade espontânea ocorre no estado de adormecimento na ausência de estímulos externos ou atenção direcionada, e a demanda de energia pode exceder aquela de ativações localizadas decorrentes da execução de uma tarefa ou atenção. A descoberta desta tão chamada “energia escura” no cérebro (Raichle, 2010) foi recepcionada com alguma surpresa na comunidade neurocientífica e permanece controversa (Morcom; Fletcher, 2007). Trabalhos na atividade intrínseca levaram à identificação de uma rede de modo padrão (‘default mode network’) no cérebro, um conjunto extenso de regiões interconectadas que utiliza altos níveis de energia quando uma pessoa está em um estado de não-atenção. O uso de energia cai significativamente nessa rede quando uma tarefa cognitivamente mais exigente, como prestar atenção em um estímulo, é realizada (Shulman et al., 1997; Raichle et al., 2001). Vanhaudenhuyse et al. (2009) reportaram que a conectividade dentro dessa rede de modo padrão em pacientes com dano cerebral severo deteriora proporcionalmente até o grau do impedimento da consciência, sugerindo que esta tem um papel essencial na manutenção da consciência.

Concomitantemente, é surpreendente descobrir que a energia utilizada durante a fase não-REM (do inglês, Rapid Eye Movement) do sono permanece em, aproximadamente, 85% daquela no estado de vigília, enquanto durante a fase de movimento rápido dos olhos (REM) do sono, o consumo de energia pode ser tão alto quanto no estado de vigília (Dinuzzo; Nedergaard, 2017). Ao mesmo tempo, a consciência pode ser minimamente mantida com um uso de energia de somente 42% do nível dos indivíduos sadios e conscientes, sugerindo que boa parte da atividade metabólica cerebral em estados de vigília não contribui diretamente para a consciência (Stender et al., 2016). Acredita-se que muitos agentes anestésicos obliteram a consciência porque atuam de forma a reduzir a taxa global do metabolismo cerebral (Hudetz, 2012). Por outro lado, ao administrar a cetamina há um aumento do metabolismo cerebral apesar de ainda levar a uma perda de resposta (Pai; Heining, 2007). No geral, parece que não encontramos uma correlação clara entre a quantidade total de energia usada pelo cérebro, ou o local onde a energia é usada, e o nível de consciência detectável na pessoa.

Consciência e a Organização do Processamento Energético no Cérebro

Uma forma alternativa, ou talvez complementar, de pensar sobre esse assunto é em termos de como a atividade energética no cérebro é organizada ao invés do seu nível global ou localização. De fato, esse tem sido implicitamente o foco de pesquisas recentes que almejam prover medidas quantitativas dos níveis de consciência. Em um estudo, pesquisadores utilizaram estimulação magnética transcraniana (TMS, transcranial magnetic stimulation) para enviar um pulso magnético através do cérebro em controles saudáveis e pacientes com diversos estados de consciência comprometida (Casali et al., 2013). Ao mensurar como o pulso perturbava o córtex, os pesquisadores puderam determinar a complexidade relativa e a extensão dos caminhos pelos quais o pulso se propagava e os correlacionar com os níveis de consciência. Estes pesquisadores calcularam o índice de perturbação-complexidade (PCI, perturbation-complexity index) que quantificou os níveis de consciência presente em cada pessoa estudada. Esse método foi validado como uma medida confiável e objetiva de níveis de consciência por Casarotto et al. (2016).

O PCI era calculado usando dados de medidas eletroencefalográficas (EEG) da perturbação cerebral após o TMS. Imagens do eletroencefalograma foram filtradas em dados binários que foram analisados utilizando a algoritmo Lempel-Ziv, uma técnica de teoria da informação comumente usada na qual a complexidade é medida em função da compressibilidade da sequência de dados, com sequências de dados mais complexas sendo menos compressíveis (Ziv; Lempel, 1977; Aboy et al., 2006). Outros pesquisadores desenvolveram métodos similares de teoria da informação para a quantificação da complexidade da atividade do cérebro e níveis de consciência. King et al. (2013) analisaram os dados de 181 gravações de EEG de pacientes diagnosticados com estados variados de comprometimento da consciência e aplicaram uma medida de informação mútua simbólica ponderada (wSMI, weighted symbolic mutual information) que distinguiu nitidamente pacientes em estado vegetativo, estado minimamente consciente, e estado consciente.

Embora ferramentas de teoria da informação estivessem sendo usadas para analisar e interpretar os dados nestes estudos, devemos observar que o que realmente estava sendo detectado pelos procedimentos experimentais não era a informação em si, mas a organização da atividade energética ou processamento no cérebro. O processamento energético – os processos no qual o cérebro regula o fluxo de energia através de suas estruturas – é rotineiramente detectada graus variáveis de resoluções espaciais e temporais, diretamente ou indiretamente, por técnicas de neuroimagem como tomografia de emissão de pósitron (PET, positron emission tomography), ressonância magnética funcional (fMRI, functional magnetic resonance image) e EEG (Niedermeyer; Lopes da Silva, 1987; Bailey et al., 2005; Shulman, 2013). Referindo-se novamente ao estudo de Casali et al. (2013), as perturbações a partir das quais o PCI foi calculado foram geradas por um pulso de energia magnética do TMS e foram capturadas com EEG, que mede diferenças de voltagem elétrica, ou seja, flutuações nos potenciais energéticos entre grupos de neurônios no córtex (Niedermeyer; Lopes da Silva, 1987; Hu et al., 2009; Koponen et al., 2015). O PCI e wSMI podem, portanto, serem interpretados como medidas da complexidade ou organização do processamento energético no cérebro durante os procedimentos experimentais.

Pesquisas subsequentes investigaram diretamente a conexão entre o metabolismo cerebral (como o cérebro regula a conversão de energia), organização cerebral, e os níveis de consciência ao combinar medidas de EEG com PET, uma medida mais específica do metabolismo cerebral. Chennu et al. (2017) coletaram os dados de 104 pacientes em estados variáveis de comprometimento da consciência utilizando ambas as técnicas. Ao analisar esses dados, eles determinaram uma métrica que discrimina os níveis de consciência com um alto grau de acurácia. Esse estudo é baseado em um trabalho prévio de  Demertzi et al. (2015) que utilizou fMRI para correlacionar a medida da conectividade funcional intrínseca no cérebro com níveis de consciência. O método PCI foi validado por um estudo combinando EEG com 18F-fluorodesoxiglicose (FDG)-PET (Bodart et al., 2017), reforçando a ligação entre níveis de consciência e a organização da atividade metabólica no cérebro.

Os métodos atuais de imagem cerebral não detectam, estritamente falando, o processamento da informação5. Eles, no entanto, detectam mudanças associadas ao aumento do consumo de energia (via fMRI e PET) e as flutuações na energia potencial elétrica (via EEG), ambos nos quais confiavelmente se correlacionam com as mudanças na função mental e comportamento. Com base no que podemos observar, o cérebro opera de acordo com o princípio do processamento de energia. A evidência discutida acima sugere que níveis de consciência são determinados pela organização do processamento de energia no cérebro ao invés do seu nível global ou localização; estados conscientes de vigília são associados com uma organização mais complexa. Para entender o porquê isto pode ser, devemos considerar o conceito de energia com maior profundidade.

Energia

O conceito de energia que estamos familiarizados hoje somente surgiu, vagarosamente, em seu início no final do século 18. Foi desenvolvido através de estudos da termodinâmica no século 19, e então descobriu seu lugar no centro das teorias da relatividade, mecânica quântica e cosmologia no século 20 (Coopersmith, 2010). No uso coloquial, o uso de energia se refere a ideias de vigor, vitalidade, energia, atividade, entusiasmo. Em seu uso científico, porém, a energia é definida como a habilidade de um sistema de realizar trabalho6. Trabalho é definido como a transferência de energia envolvida no movimento de um objeto através de uma distância por um força externa, em que, pelo menos, parte disto é aplicado na direção do deslocamento (Duncan, 2002). Cientistas e engenheiros muitas vezes referem-se à energia como uma propriedade abstrata: “A energia é uma abstração matemática que não existe a parte da sua relação funcional com outras variáveis” (Abbott; Van Ness, 1972; Rose, 1986). É uma propriedade que pode ser convertida de uma forma para outra, e em um sistema isolado a quantidade total é conservada (Smil, 2008).

Apesar do enorme interesse na física da energia e a sua importância central em diversas áreas da ciência, a sua natureza permanece misteriosa de vários modos (Feynman, 1963; Smil, 2008; Coopersmith, 2010) e tem sido o objeto de, relativamente, pouco questionamento filosófico (Coelho, 2009). Tratar a energia como uma quantidade abstrata é perfeitamente satisfatório para muitos propósitos científicos, onde há poucos motivos para questionar a sua natureza. Mas, se a energia desempenha um papel significante na consciência, como as evidências citadas acima a sugerem, então a natureza merece uma análise mais minuciosa.

O conceito de energia na tradição europeia intelectual pode ser traçada a Aristóteles que utilizou mas nunca definiu precisamente o termo energeia  (ενρεια) para transmitir ideias de ação, atividade, actualidade, estar em trabalho, e agindo propositalmente (Sachs em Aristotle, 2002). Estudiosos há muito debatem sobre o melhor jeito de traduzir energeia do grego antigo. A palavra ‘energia’ em si foi usada, assim como ‘atividade’ e ‘actualidade’, mas ‘estar em trabalho’ é atualmente preferida, parcialmente devido à raíz de energeia ser ergon, o grego antigo para trabalho (Aristotle, 1818; Ellrod, 1982; Sachs em Aristotle, 2002). Estudiosos modernos tendem a isolar o conceito antigo de energeia das ideias contemporâneas sobre a energia. Mas, o termo de Aristóteles pode ainda ter valor quando se pensa sobre a natureza da energia. Isso é especialmente verdade quando se considera as ideias do ancestral intelectual de Aristóteles, Heráclito, cuja visão cosmológica foi informada por três princípios centrais: (i) a atividade na natureza é impulsionada pelo “fogo” – que foi interpretada como um sinônimo de energia (Heisenberg, 1958), (ii) é objeto de fluxo contínuo ou movimento, e (iii) é estruturada no antagonismo ou tensão (Kahn, 1989; Sachs em Aristotle, 2002).

Agora nós entendemos que há duas principais formas de energia: cinética e potencial. Energia cinética é associada a objetos em movimento, enquanto energia potencial é associada a objetos devido a sua posição relativa ou configuração. Todas as outras formas de energia, como térmica, eletromagnética, solar, química, gravitacional, atômica e entre outras são em si formas de energia cinética ou potencial  (Duncan, 2002; Smil, 2008). Muito pode ser dito sobre a energia cinética e potencial, incluindo o fato de serem causalmente eficazes, ou seja, elas causam uma mudança real e atividade no mundo material7. Mas, eu quero trazer a atenção aqui para o fato de ambas serem manifestações de diferença. Energia cinética é a diferença como movimento ou mudanças; energia potencial é a diferença como tensão ou antagonismo. Nem a energia cinética nem a potencial são absolutamente inerentes aos objetos, mas são propriedades relacionais; movimento e mudança ocorrem relativa a uma referência, e tensão ou antagonismo ocorre entre um objeto, ou força, e outro. O conceito de diferença então é de última importância quando considera a natureza da energia e a suas propriedades relacionadas de força e trabalho8.

Diferenças Substanciais

Se a energia é a habilidade de realizar trabalho, então o deslocamento de um corpo sob trabalho é devido à força, definida como um “agente que tende a mudar o momentum de um corpo maciço” (Rennie, 2015) ou menos formalmente como “ação e reação”. Forças que agem e reagem antagonicamente em pares igualmente opostos e, portanto, como a energia, manifestações de diferença. A disciplina da física é conveniente em tratar a energia, forças e trabalho como quantidades distintas a serem balanceadas em equações matemáticas abstratas. Mas, na natureza eles são integrais e substanciais, atuando coletivamente no tempo e espaço com eficácia causal.

Observando a natureza, podemos inferir que há ‘algo que é como’ em um sistema físico submetido a interações forçadas antagonistas, e o que é como será variável de acordo com a variação das interações9. Há algo que é como, por exemplo, ser um pedaço de corda submetido a uma grande tensão, que é diferente de algo que é como ser uma mesma corda em repouso, ou uma pedra atingir a terra estando em uma queda livre. Alguns efeitos dessas interações podem ser observados por uma perspectiva extrínseca; nós podemos ouvir um rangido ou estalo. Mas, há algo que é como ser submetido a interações a si mesmos é uma propriedade intrínseca do sistema observado no qual o observador extrínseco não tem acesso. É por essa razão que a sua presença e natureza pode ser somente inferida10.

Essa não é uma alegação que forças agindo em uma escala subatômica entre partículas, ou a escala macroscópica na corda ou pedra, submete-se a qualquer coisa como a experiência que nós somos submetidos como humanos conscientes11. Algo é parecido não é suficiente para a consciência.  Ao contrário, é reconhecer que:

(i) energia, força e trabalho são substanciais,

(ii) eles são expressões de diferenças, e

(iii) há algo que, intrinsecamente, é como ser submetido a diferenças substanciais.

Eu uso o termo diferenças substanciais para se referir a ativa, antagônica natureza da energia, força e trabalho em uma forma que encompassa a cosmologia Heraclitiana, energeia Aristotélica, e as descrições científicas contemporâneas de energia. Equações matemáticas podem representar diferenças substanciais com diferenças abstratas, na forma de símbolos e números, mas não o que quer que coloque “fogo na equação”(Hawking, 1988)12. Para isso, devemos nos referir à própria natureza – ao território e não ao mapa (Korzybski, 1933).

Energia e Informação

Para muitos cientistas contemporâneos, informação é uma propriedade fundamental da natureza. Para alguns é a propriedade mais fundamental da natureza (Davies, 2010). Neurocientistas muitas vezes alegam que o cérebro opera de acordo com o princípio do processamento de informação. Nós lemos que “o cérebro é fundamentalmente um órgão que manipula a informação” (Sterling; Laughlin, 2017) e que os cérebros são “máquinas de processamento de informações” (Ruffini, 2017). Neurônios individuais são tratados como unidades de processamento de informações, enquanto padrões de ativação neural são convertidos em sequência de dígitos binários (1 e 0) que codifica informações (Koch, 2004). Teorias recentes proeminentes alegam que a consciência é idêntica a (Tononi et al., 2016) ou são resultados de (Dehaene et al., 2017) certos tipos de estruturas de informação ou processos de informação no cérebro.

A informação é definida de forma variável e as vezes imprecisa na ciência (Capurro; Hjørland, 2003), seu significado é fortemente contestado (Lombardi et al., 2016; Roederer, 2016), e muitas pessoas o consideram como subjetivo até certo ponto, relativista, ou dependente do observador  (von Foerster, 2003; Deacon, 2010; Werner, 2011; Logan, 2012; Searle, 2013; de-Wit et al., 2016). O termo é usado frequentemente na ciência coloquialmente (significando ‘o que é transmitido por um arranjo de coisas’) ou “intuitivamente” (Erra et al., 2016). E onde um espera achar uma definição clara, como em um dicionário de física, biologia ou química, não se encontra nenhuma (Hine, 2015; Rennie, 2015, 2016).

A definição técnica de informação mais citada e difundida é dada por  Shannon (1948) como parte de sua teoria matemática da comunicação. Para Shannon, a informação não se refere a seu significado ou semântica, como é coloquialmente. A informação é a quantidade de incerteza em uma mensagem (sequência de dados) medida através da análise probabilística de seus elementos. A teoria da informação se desenvolveu em uma ferramenta matemática excepcionalmente poderosa que pode ser utilizada, entre diversas outras coisas, para mensurar a complexidade de sistemas físicos. Mas, a quantidade da informação de Shannon é uma medida de o que pode se saber sobre um sistema distinto do sistema em si. A informação está com o mensurador ao invés do mensurado13.

Outra definição de informação comumente citada é de Gregory Bateson “a diferença que faz a diferença”  (Bateson, 1979). Como seu colega teórico cibernético Wiener (1948), Bateson distinguiu nitidamente informação de energia. Diferença não é a propriedade do que ele chama de “material ordinário do universo” governado pela atividade energética. Não é um objeto dos efeitos de impactos e forças, mas uma propriedade abstrata e relativa da mente que existe fora do reino da causalidade física: “Diferença, sendo da relação da natureza, não está localizado no tempo ou espaço”. O conceito de informação definido de acordo com Bateson como uma diferença abstrata “não-substancial” não pode ser utilizada para explicar a consciência como um processo físico14.

A teoria da informação da consciência integrada (IIT, integrated information theory) proposta por Tononi et al. (2016) fornece uma definição alternativa, não-Shannoniana, da informação como “uma forma no espaço de causa-efeito”. Espaço de causa-efeito, de acordo com a teoria formulada por eles, contém uma “estrutura conceitual” – uma constelação de conceitos relacionados – que é especificado pelo “substrato físico da consciência” (PSC, physical substrate of consciousness), sendo estes precisamente os complexos da ativação neural envolvida em qualquer experiência. Cada experiência consciente é idêntica com essa “forma”, denotada por Φmax quando é integrada ao máximo. Mas, enquanto, IIT é apresentada como uma teoria da informação integrada, pode servir igualmente como uma teoria de como o processamento energético é organizado já que o PSC consiste em padrões causalmente interrelacionados de ativação neural que são idênticos com a experiência consciente.

Tratar o cérebro como um processador de informações neurais não nos ajuda a compreender a consciência como um processo físico porque a informação, de acordo com as definições mais aceitáveis, não é uma propriedade física do cérebro em um nível neural; não há nenhuma informação em um neurônio15. É útil, no entanto, aplicar os métodos de teoria da informação para estudar a organização de sistemas físicos, como o cérebro. Wiener (1948) afirmou: “…a quantidade de informação em um sistema é uma medida do grau de organização…”. Como exemplificado em diversos estudos e teorias citados aqui, podemos mensurar e modelar o modo como a organização de processos energéticos no cérebro contribui para a presença da consciência em uma pessoa16. Mas, a diferença abstrata entre 0 e 1 não é equivalente a diferenças substanciais entre um neurônio em repouso e ativado.

O Cérebro como um ‘Mecanismo de Diferença’

O desafio de explicar a consciência como um processo físico se torna mais maleável, sugiro, através de reconhecer que o cérebro opera sob o princípio do processamento de energia. Neurônios, em conjunto com outras estruturas materiais como astrócitos e mitocôndrias, convertem, distribuem e dissipam a energia eletroquímica através de vias altamente organizadas a fim de conduzir comportamentos críticos para a sobrevivência do organismo. Isso faz sentido quando consideramos o fato de organismos habitarem um mundo físico estruturado através da ação de energia, força e trabalho. Para sobreviver e prosperar neste mundo, eles devem trabalhar continuamente para adquirir novos suprimentos de alto nível de energia ou energia livre para manter um estado interno longe do equilíbrio termodinâmico (Boltzmann, 1886; Schrödinger, 1944; Schneider; Sagan, 2005). Além da regulação interna, o sistema nervoso permite aos organismos executar duas tarefas: distinguir entre variações de condições ambientais, como temperatura, acidez, salinidade, níveis de nutrientes, ou a presença de predadores, e mover-se em direção a condições ambientais mais benéficas para a sobrevivência e para longe daquelas que são prejudiciais.

Os mecanismos que permitem o desempenho destas tarefas podem ser vistas como o trabalho em organismos com sistemas nervosos relativamente simples, como os nematódeos C. elegans (Sterling; Laughlin, 2017). Gradientes químicos no ambiente ativam neurônios quimiosenssoriais, localizados na superfície desses nematódeos, e se conectam via intraneuronal a neurônios motores que controlam a ação dos músculos dorsal e ventral, que, por sua vez, controla o movimento do animal (de Bono; Maricq, 2005). Desta forma, as diferenças de energia potencial química no ambiente são convertidas em diferenças de energia eletroquímica no aparato sensorial do organismo e então, convertidas em diferenças de energia química nos músculos, que, por ação antagônica, são convertidas em energia cinética no movimento do organismo. O organismo faz discriminações no ambiente relevantes para o seu interesse para que possa tomar ações apropriadas como resposta.

Podemos ver o mesmo princípio básico em ação na biologia em complexidades muito maiores. O sistema visual humano, por exemplo, possui uma alta demanda no saldo de energia no cérebro (Wong-Riley, 2010). Mas, o benefício da evolução da visão humana é a capacidade que a confere de guiar ações corporais finamente controladas à luz das condições ambientais. Isso é alcançada através de uma complexa sequência de conversões de energia, começando com a chegada da energia eletromagnética do meio ambiente na retina passando por numerosas trocas energéticas, em cascata, nas vias neurais do sistema visual, que progressivamente diferenciam características do ambiente (Hubel; Livingstone, 1987). Isto frequentemente resulta na conversão de energia eletroquímica no sistema motor e muscular para a energia cinética do movimento corporal  (Goodale, 2014). O fato de nosso complexo biológico suportar um repertório tão rico de discriminações sensoriais e respostas motoras pode ser apenas por uma diferença em grau e ao invés por uma diferença de espécie com o humilde verme.

Podemos pensar em células sensoriais respondendo a um estímulo da energia do ambiente através da excitação ou por aumento da ativação neural local. Mas, fotorrecepetores de vertebrados são, ao contrário do que um espera, hiperpolarizados pela absorção de fótons. Isso significa que eles ‘desligam’ quando expostos à luz e ‘ligam’ no escuro, mesmo que eles usem mais energia no escuro (Wong-Riley, 2010)17. Enquanto isso, algumas evidências neurobiológicas citadas na seção “Consciência e Energia no Cérebro” nos alertam contra assumir que a estimulação sensorial sempre resulta no aumento da ativação neural. Diminuições na ativação no cérebro pode ocorrer em resposta a tarefas mais exigentes cognitivamente, mas podem passar despercebidas em estudos de imagem com metodologias desenhadas para detectar aumentos da taxa metabólicas acima da linha basal evocados pela realização de tarefas (Raichle et al., 2001; Schölvinck et a., 2008). E é claro que nem toda ativação neural é excitatória; a inibição neural é vitalmente importante  na função cerebral, como em outras partes do sistema nervoso, e isso também acarreta um custo energético (Buzsáki et al., 2007). Há evidência que um equilíbrio ótimo entre excitação neural e inibição (equilíbrio E-I) no córtex cerebral é crítico para o bom funcionamento do cérebro (Zhou and Yu, 2018).

À luz desses mecanismos, o cérebro faminto por energia pode ser entendido como uma espécie de ‘mecanismo de diferença’ que funciona acionando padrões complexos de movimento (propagação do potencial de ação) e tensão (ação e reação antagônicos entre forças) em várias escalas espaço-temporais. Taxas de ativação e potenciais elétricos são variáveis nos neurônios, entre neurônios, entre rede de neurônios, e entre regiões do cérebro, maximizando os estados diferenciais que o cérebro passa. Uma diminuição da ativação, ou a redução da taxa de ativação, pode criar um estado diferencial tanto quanto um aumento. E, como foi indicado pelo trabalho de Schölvinck et al. (2008), a desativação pode ser uma maneira eficiente energeticamente do cérebro aumentar o seu repertório de estados diferenciais. Enquanto isso, acredita-se que manter um equilíbrio global E-I entre escalas espaço-temporais promove uma ‘codificação eficiente’ no processamento sensorial e cognitivo (Zhou and Yu, 2018). Tudo isso tende a apoiar a ideia, proposta acima, de que um dos papéis da atividade energética no cérebro é para ativar efetivamente as diferenças de movimento e tensão que promovem os interesses do organismo portador do cérebro. São as diferenças substanciais que fazem diferença.

Organização energética como causa da consciência

Em teoria, poderíamos contabilizar todos os processos altamente complexos que ocorrem no cérebro em termos de energia, força, e trabalho, ou seja, como processos físicos, químicos e biológicos. Mas, o problema, aparentemente inquestionável, de como qualquer um destes processos pode causar a consciência permanece. O princípio delineado aqui – há algo que, intrinsecamente, é como ser submetido a diferenças devido a ação antagônica de energia, força e trabalho – pode oferecer um ponto de apoio neste problema escorregadio. Há algo que, intrinsecamente, é como ser um músculo tenso que é diferente de ser um músculo relaxado. Há algo que, intrinsecamente, é como ser vias neuronais em estados fantasticamente complexos de diferenciação substancial de outras vias, com propagação de potenciais de ação por uma vasta matriz de fibras. Mas todo este algo que é como não é, em si, suficiente para a consciência. Músculos não são conscientes, e as vias de neurônios são ativadas no cérebro quando estamos em um sono sem sonhos ou sob anestesia. O que há nos processos de organização energética no cérebro, conforme discutido na seção “Consciência e a Organização do Processamento Energético no Cérebro” que determinam o nível de consciência que experienciamos?

Nós ganhamos alguma perspectiva na associação entre a consciência e a organização do processamento energético no cérebro através de estudos de anestesia. A razão pela qual anestésicos obliteram a consciência não é compreendida (Mashour, 2004). Trabalhos recentes focaram em como eles podem interferir na capacidade do cérebro de gerar padrões de diferenciação localizada (frequentemente chamado de ‘informação’) e de interligar ou integrar esses padrões por redes cerebrais altamente distribuídas  (Hudetz, 2012; Hudetz; Mashour, 2016). A evidência desses estudos nos efeitos neurológicos de anestésicos sugerem que a consciência é perdida quando as regiões distantes do cérebro se tornam funcionalmente isoladas e a integração global é quebrada (Lewis et al., 2012). A ideia que a consciência depende da maximização da diferenciação e integração no cérebro está no coração do ITT (Tononi, 2012; Oizumi et al., 2014).

Um mecanismo potencial que suporta a integração global da diferenciação local é o processamento recorrente ou reentrante, no qual áreas amplamente distribuídas do cérebro se envolvem em ciclos complexos de retroalimentação (feedback) cortical por meio de conexões massivamente paralelas (Eldeman et al., 2011; Edelman; Gally, 2013). Um número de estudos sobre os efeitos dos anestésicos demonstrou como eles interrompem a conectividade de retroalimentação e, portanto, a integração, particularmente na área frontoparietal do cérebro (Lee et al., 2009; Hudetz; Mashour, 2016). Estudos da organização do cérebro durante o sono profundo também reportaram um aumento em modularidade consistente com a perda da integração entre regiões do cérebro no estado de vigília  (Tagliazucchi et al., 2013). Isto sugere que a presença da consciência em uma pessoa acordada depende em um certo nível da integração funcional suportada por ciclos de retroalimentação cortical (Edelman, 2004; Alkire et al., 2008) mas não é conhecido o como ou o porquê.

Uma contribuição majoritária da teoria cibernética foi de reconhecer a importância de mecanismos de feedback por controlar o comportamento em sistemas mecânicos e vivos (Wiener, 1948; Bateson, 1972). Sistemas de retroalimentação são auto-referenciais; uma parte do sistema casualmente afeta a outra, que por sua vez afeta a primeira. Tais sistemas são aptos a gerar comportamentos que são propriedades irredutíveis do sistema como um todo  (Hofstadter, 2007; Deacon, 2013). Um exemplo é a retroalimentação de vídeo, que ocorre quando uma câmera de vídeo é apontada para um monitor mostrando a saída da câmera (Crutchfield, 1984). Quando posicionado corretamente, o monitor mostrará inicialmente uma imagem semelhante a um túnel que então “florescerá” espontaneamente em um padrão intrincado e semi-estável de notável diversidade e beleza fascinante (ver Figura 1)18. Uma vez que este é um processo energeticamente acionado podemos inferir, seguindo os argumentos já dados, que há algo como ser o sistema de retroalimentação de vídeo em plena floração, a partir de sua perspectiva intrínseca. Mas não é consciente.

Gerald Edelman propôs que “a experiência fenomênica em si é acarretada pela atividade intracortical reentrante apropriada” (Edelman and Gally, 2013). O cérebro humano passa por comportamentos recursivos ou reentrantes de uma ordem de complexidade inimaginavelmente mais alta que um sistema de vídeo19. Mas, o princípio operante fundamental pode ser análogo. A retroalimentação do vídeo surge porque o sistema é organizado como um circuito de auto-observação. Se nós assumirmos que a atividade reentrante no cérebro também é como um circuito de auto-observação nos quais os processos de uma parte do cérebro tanto afeta como é afetada por processos em outras partes, então podemos envisionar um tipo de padrão florescendo no cérebro análogo àquelas vistas na retroalimentação de vídeo. Esse padrão seria acionado por atividade eletroquímica suficientemente organizada, entre neurônios e neurotransmissores, canalizada por circuitos neurais reentrantes.

O algo que é como com a qual um cérebro organizado dessa maneira estaria submetido é de uma ordem diferente daquela de um cérebro com integração diminuída no sono sem sonhos ou sob anestesia. Nenhum outro sistema físico, até onde sabemos, tem a mesma capacidade de processamento recursivo complexo (diferenciado e integrado) que o cérebro humano, e essa organização dinâmica atinge seu apogeu quando estamos conscientes, como sugerem as evidências citadas na seção “Consciência e a Organização do Processamento Energético no Cérebro.” Quando os processos energéticos em nossos cérebros estão operando em um certo nível de organização recursiva dinâmica – a “atividade intracortical reentrante apropriada” – então nós sofreremos algo que, intrinsecamente, é como ser submetido a algo que, intrinsecamente, é como ser submetido a algo que é como … recursivamente.  Em outras palavras, há algo que, intrinsecamente, é como ser algo que é como, recursivamente, ser submetido a uma particular organização de diferenças substanciais encontradas no cérebro consciente. Para isto, nós temos a mais direta e irrefutável evidência possível – como é ser submetido a nossa própria experiência de consciência20.

Então, é razoável propor que a consciência é causada pela forma que a atividade energética é dinamicamente e recursivamente organizada no cérebro? Não é menos razoável que atribuir as causas para outros fenômenos biológicos, como o comportamento do verme nematódeo, até o jeito como a atividade energética é organizada. Se a consciência é um processo físico (biológico e química), e se processo físicos são causados por atividade energética (em conjunto com força e trabalho), então a consciência, em princípio, pode ser causada por atividade energética e como ela é organizada.

Naturalizando a Consciência

Em 1937-8, Charles Sherrington deu uma série de palestras sobre o relacionamento entre energia e mente, reunidas no volume Man on his Nature (Sherrington, 1940). Alinhado com a física de seu tempo, Sherrington compreendeu que o mundo natural era composto de formas de energia. Mas ele não pode conceber como a mente poderia ser forjada dessa energia: “O conceito da energia da Ciência coleta todos os chamados tipos de energia em bando e procura em vão pela mente entre eles”. O mistério foi aprofundado por ele pelo conhecimento, então emergindo através de estudos da atividade elétrica e metabólica no cérebro, sobre o quão intimamente a energia e a função mental são conectadas. Ele foi obrigado a se perguntar: “A mente é, em algum sentido estrito, energia?”, mas relutantemente concluiu que “…pensamentos, sentimentos e assim por diante não são passíveis do conceito de energia (matéria)”. Estão fora do alcance das ciências naturais, apesar do “constrangimento” que isso causa à biologia.

Se nós formos naturalizar a consciência, então devemos reconciliar a energia e a mente. Eu delineei um princípio que pode ajudar a explicar a consciência como um processo físico. Implica em reexaminar o conceito científico moderno de energia à luz da energeia de Aristóteles e suas raízes heraclitianas. Consequentemente, chegamos a uma visão dos processos físicos na natureza como diferenças substanciais de movimento e tensão. Sherrington entendeu que “a energia atua, ou seja, é movimento”. Mas ele continuou “… de uma mente, uma dificuldade é saber se é movimento”. Tratar o cérebro como um mecanismo de diferença que trabalha para substanciar e organizar diferenças de movimento e tensão para servir aos interesses do organismo é, afirmo, uma abordagem natural para entender a consciência como um processo físico.

Conclusão

Se a consciência é um processo físico natural, então deveria ser explicada em termos de energia, força e trabalho. Energia é uma propriedade física da natureza que é, causalmente, eficaz e, como força e trabalho, podem ser concebidas como diferenças substanciais de movimento e tensão.

A evidência da neurobiologia indica que o cérebro opera sob o princípio do processamento energético e que uma certa organização da energia no cérebro, mensurada com técnicas de teoria da informação, podem confiavelmente predizer a presença e o nível da consciência. Como a energia é causalmente eficaz em sistemas físicos, é razoável alegar que a consciência é um princípio causado pela atividade energética e como é dinamicamente organizada no cérebro.

Informação no contexto biológico é melhor entendida como uma medida de como a atividade energética é organizada, ou seja, a complexidade ou grau de diferenciação e integração. Técnicas de teoria da informação fornecem ferramentas poderosas para mensurar, modelar e mapear a organização de processos energéticos, mas nós não devemos confundir o mapa com o território.

Diferenças substanciais, distintas das diferenças abstratas representadas em matemática e teoria da informação, são caracterizadas por há algo que, intrinsecamente, é como ser submetido a estas diferenças, ou seja, a ser submetido a estados antagônicos de forças opostas. Todas as diferenças substanciais submetem-se a esse algo que é semelhante, mas não contribui para toda a consciência.

Propõe-se que um tipo particular de atividade ocorre no cérebro humano que causa nossa experiência consciente. É uma certa organização dinâmica de processos energéticos com alto grau de diferenciação e integração. Essa organização é recursivamente autorreferencial e resulta em um padrão de atividade energética que floresce em um grau de complexidade suficiente para a consciência.

Se a consciência é um processo físico, e os processos físicos são conduzidos por diferenças substanciais de movimento e tensão, então há algo que é como sofrer diferenças substanciais organizadas de uma certa maneira no cérebro, e é isso que experimentamos – intrinsecamente21.


Notas

  1. ^ Entendo que os processos físicos ocorrem no tempo e no espaço e são causalmente determinados pelas ações de energia, forças e trabalho sobre a matéria. Considero a consciência a capacidade de percepção de si mesmo e do mundo, que é particularmente altamente desenvolvida nos seres humanos.
  2. ^ Para maior discussão sobre o contexto histórico ver Pepperell (2018).
  3. ^ Embora, por uma questão de brevidade, eu me refira neste artigo à consciência que ocorre no cérebro, a consciência é algo pelo qual as pessoas passam. Os cérebros não podem sustentar a consciência independentemente das pessoas nas quais estão alojados (Pepperell, 1995)
  4. ^ Estritamente falando, a energia não é consumida e sim convertida de uma forma para outra
  5. ^ Os autores de Wollstadt et al. (2017), por exemplo, estudaram a divisão do processamento de informações locais sob anestesia usando métodos teóricos da informação. Eles apontam que o procedimento de EEG que eles usaram não registrou diretamente o processamento de informações no cérebro, mas potenciais de campo locais, ou seja, flutuações nas quantidades de energia potencial.
  6. ^ Parece haver uma ambiguidade em alguns livros sobre se a energia é uma propriedade habilitante possuída por um sistema ou corpo, por exemplo, Duncan (2002), ou uma medida de tal propriedade, por exemplo, Rennie (2015). Vou considerar a energia uma propriedade possuída por sistemas ou corpos, cujas quantidades podem ser medidas.
  7. ^ “A energia pode ser chamada de causa fundamental para toda a mudança no mundo” (Heisenberg, 1958). O neurobiologista Gerald Edelman definiu nitidamente uma eficiência causal como “A ação no mundo físico das forças ou energias que levam a efeitos e desfechos físicos” (Edelman, 2004).
  8. ^ Neuroatropologista Terence Deacon define a energia como uma “relação de diferença” (Deacon, 2013). Note que a energia é diferença, mas nem toda diferença é energia; vermelho é uma cor; nem todas as cores são vermelhas.
  9. ^ Nagel esclareceu o termo ‘algo que é como’ como um significado não como algo que remete a “como é” para o sistema(Nagel, 1974).
  10. ^ Note que essa alegação não é tão absurda como pode parecer de primeira: Se (i) a consciência em pessoas é um processo físico – devido a energia, forças e trabalho – e (ii) nós inferimos a presença da consciência em outras pessoas com base na observação extrínseca deles – como nós estamos habituados – e (iii) há algo que é como ser uma pessoa consciente – como nós assumimos- então (iv)nós rotineiramente inferimos a presença de algo intrínseco que é como em um processo físico com base na observação de uma perspectiva extrínseca. Porém como discutido abaixo, a consciência humana é um tipo particular de algo que é como que ocorre quando apenas algumas circunstâncias são atingidas.
  11. ^ Em discussões de natureza e comportamento de forças a um nível microscópico, nós frequentemente achamos referências sobre como eles ‘sentem’ (Feynman, 1963), ou como nós ‘experimentamos’ uns aos outros no campo (Rennie, 2015). Seria interessante investigar o que motiva o uso destes termos nesse contexto.
  12. ^ A diferença entre 1 e 0, por exemplo, é a diferença abstrata concebida dentro de uma mente consciente
  13. ^ Arieh Ben-Naim expõe com alguns detalhes como a informação de Shannon é uma medida probabilística em vez de uma propriedade física (Ben-Naim, 2015). Observe que o ato de medição pressupõe uma mente consciente capaz de realizar o procedimento de medição e interpretar o resultado.
  14. ^ Se ele tivesse uma compreensão mais completa da natureza da energia, Bateson poderia não ter sido tão desdenhoso sobre seu papel nos processos mentais. Em Mind and Nature (Bateson, 1979), ele se referiu apenas à energia cinética (que ele definiu como “MV2”), ignorando assim a energia potencial e, segundo ele mesmo, “não estava atualizado na física moderna”. Na verdade, modificando ligeiramente a frase muito citada de Bateson para uma diferença substancial que faz a diferença, produz uma descrição da essência da ação energética, ou seja, a maneira como a energia, as forças e o trabalho agem de forma antagônica para efetuar a mudança e causar outras ações.
  15. ^ Os cérebros – como partes das pessoas – processam informações no sentido coloquial, assim como processam ideias abstratas, equações, números, pensamentos, emoções ou memórias. Mas eles o fazem como consequência do processamento energético subjacente (conversão, distribuição e dissipação) que ocorre no tecido neural. Os computadores também “processam” informações no sentido coloquial. Mecanicamente e eletronicamente falando, no entanto, eles realmente manipulam estados de energia (voltagens, luz, etc.) cujos resultados nós, como pessoas conscientes, interpretamos informacionalmente. Vale a pena notar que todo processamento de informação mecânica implica necessariamente a dissipação de uma certa quantidade de energia (Landauer, 1961). Experimentos recentes confirmaram esse princípio e demonstraram a íntima ligação entre energia e o que muitos chamam de informação (Bérut et al., 2012).
  16. ^ Logan (2012), em trabalho realizado com Stuart Kauffman e outros, define ‘informação biótica’ como a organização da troca de energia e matéria entre organismo e ambiente – mais um exemplo da teoria da informação sendo usada para quantificar a organização biológica dos fluxos de energia.
  17. ^ Acontece que esse arranjo é energeticamente eficiente para o sistema visual em geral (Wong-Riley, 2010).
  18. ^ Exemplos podem ser encontrados no YouTube.
  19. ^ Uma forma de quantificar essa relativa complexidade seria seguir a proposta de Chaisson (2001) e comparar a densidade da taxa de energia (medida que ele chama de Φm) entre os dois sistemas. Observe também que Edelman e Gally têm o cuidado de distinguir o feedback cibernético em sistemas de controle de máquinas do processamento reentrante no cérebro, sendo este último muito mais complexo (Edelman e Gally, 2013).
  20. ^ “Penso, portanto, que estou passando por uma certa organização recursiva de diferenças substanciais.” Também propus anteriormente um modelo de feedback da consciência parcialmente inspirado na teoria de Edelman do processamento reentrante como parte de uma tentativa de projetar uma obra de arte artificialmente consciente (Pepperell, 2003).
  21. ^ O princípio explicativo delineado aqui pode ser interpretado como uma forma de pampsiquismo ou panexperiencialismo. Minha afirmação não é que a consciência seja uma propriedade fundamental da natureza, distribuída universalmente. Em vez disso, afirmo que é uma propriedade de todos os sistemas físicos que haja algo intrinsecamente semelhante a sofrer diferenças substanciais, uma certa organização das quais causa a consciência.

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