Mind the gap: Ciência, Religião e os novos enfrentamentos

Por José Manuel de Sacadura Rocha

Com relação aos tempos sombrios a pergunta que não quer calar, e que sempre nos assalta nos períodos mais tenebrosos e insanos da humanidade, pelo menos há 300 anos, é se afinal pode ser afirmado que a Razão possui propriedades ontológicas quanto à objetividade lógica capaz de instruir o pensamento para o conhecimento e a ciência. 

Muito se afirma que o erro dos pensadores do Iluminismo foi terem acreditado que o homem é, por princípio, bom. Daqui  deduzem que seus erros e maldade derivam das condições ambientais – sócio empíricas -, ou, pior, que  os homens são maus por natureza – teses neohobbesianas, gene do mal, pecado original etc. Prefiro a ideia que não existem homens maus ou bons, no sentido restrito e único destes termos, e menos ainda que se possa, e deva, explicar o “fracasso da objetividade lógica” por argumentos darwinistas, naturalistas ou teológicos. Por outro lado, ainda que não possa fugir às condições socioambientais, não é menos verdade que o homem moderno demonstrou sua propensão para a supremacia da razão instrumental, que se ainda não é possível afirmar que domina universalmente suas escolhas, comportamentos e as ações práticas, acho eu, pelo menos está demonstrado o poder de persuasão e domínio da instrumentalidade lógica do pensamento sobre o conhecimento e a ciência.

Assim, tenho para mim, que o “erro” do Iluminismo – do qual ainda não saímos nos aspectos mais pragmáticos da vida (economia de mercado, democracia representativa, legislação punitiva, educação formalista, dogmatismo moral-religioso, conservadorismo familiar, racismo, xenofobia), cuja modernidade não conseguiu escapar para todos os efeitos, a não ser talvez através de domínios bastante escassos e específicos de contracultura hegemônica (penso em algo do tipo Q+) -, foi acreditar que afinal o lado bom da laranja não seria contaminado pelo lado ruim, ou que seria próprio da Razão a imanência da lógica objetiva sobre a especulativa dada à instrumentalização daquilo que na prática teria o poder para o domínio do conhecimento e ciência. Precisamente, pelo domínio dos espaços da prática na feitura da sua existência, demonstra-se quanto o homem se encontra longe das “luzes”, se encontra divorciado de uma pretensa ontologia do correto e do bem, a uma distância significativa, imanente ou natural, do pensamento cuja propriedade lógica, e por vias de sua própria estrutura e processo, levaria à supremacia da objetividade do conhecimento e ciência, acima da superstição, da trucagem, da mentira, do egoísmo, do pessimismo e do negacionismo. Ainda hoje tal isolacionismo da Razão e de seus atributos é um “mistério”: considerem-se todas as forças reais sobre ela, as mais pérfidas ou as mais pertinentes, a lógica da razão objetiva deveria ter triunfado.

Kant havia pensado como contornar o problema do domínio instrumental (Imperativo Hipotético) na seletividade racional, mesmo e apesar da lógica cartesiana do pensamento – o que de verdade nos fez modernos do ponto de vista do pensamento foi Descartes ao hipostenizar a dialética entre a razão e sua logicidade (como a existência de Deus, pois a razão só pode, logicamente, chegar a tal conclusão, quando fatidicamente só produz conhecimento pelo objeto anteriormente dado, sempre antes do pensamento e em complexidade superior a ele, senão, ele se extinguiria). Kant, engenhosamente, como que “isola” (não seria bem este o termo…) a parte que corresponde à objetividade, à lógica que não se submete, porque, segundo ele, existe um princípio imanente do Espírito, a Ética (Imperativo Categórico). Então, os processos do conhecimento passam agora pelo Espírito e não se restringem apenas ao espaço da racionalidade pura, mas a um sistema lógico-ético que de forma dialética se vê obrigado a considerar os valores e não apenas conformado pelas dinâmicas perversas da cotidianidade política, portanto, uma racionalidade não necessariamente instruída pela religião ou mercado. De fato, Kant não estava querendo nos fazer acreditar que a “luz” iluminista da Filosofia, da Ética, localizada no Espírito, seria suficiente para separar as aventuras da Razão, separar a razão objetiva científica da razão especulativa instrumental pseudocientífica, mas, acho eu, entregar uma ferramenta auxiliar para que o conhecimento e a ciência prevalecessem de forma ética sobre o domínio dos interesses despropositados ou desproporcionais.

Mas é claro, mesmo orientada por certos princípios ou máximas morais bastante razoáveis ou lógicas para o pensamento, do tipo “Não faças aos outros o que não gostarias que fizessem contigo”, ou, consequentemente, “Agir sempre e de tal forma que tua ação seja um exemplo para os demais”, a filosofia kantiana é sempre uma filosofia de limites, uma filosofia de fronteiras, uma filosofia de paradigmas estabelecidos – mas não é moralista nem imutável como se pode pensar. Mas é algo pessimista – ela pressupõe que o “mistério” da pretensão da lógica científica, mesmo para a Modernidade, imanente dos processos mentais racionais, não supõe grandemente o triunfo do conhecimento e do caráter. Aristóteles já havia dito basicamente a mesma coisa:  o erro e a violência são produto da ignorância (falta de letras), mas o domínio das letras e do conhecimento não garante por si o acerto, a honestidade e a bem-aventurança dos homens.

Contudo, o problema do pessimismo na Modernidade tem origens e fundamentações bem mais recentes. O grande marco do pessimismo na Filosofia Analítica moderna ainda é Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer. Saídos das fileiras dos intelectuais marxistas no final da primeira metade do século XX, a Escola de Frankfurt enveredou, diante dos acontecimentos da Segunda Grande Guerra e do holocausto, e também do totalitarismo de Estado da ex-URSS, pela demonstração dos males do desenvolvimento técnico-científico abrupto e embrutecedor, sua lógica de dominação perversa e desumanidade, unidimensionalidade do pensamento (Marcuse) e domesticação dos corpos e vontades humanas. E as leituras que se seguiram, quanto à produção e ação da tecnologia e ciência (de Jacques Ellul (A técnica e o desafio do século) a Zigmunt Bauman (Modernidade e Holocausto)), foram arrebatadas por este pessimismo, afinal tão fácil de ser demonstrado empiricamente na vida moderna. De forma singular, deixa claro Zizek (A filosofia não é um diálogo. LavraPalavra, 23 de fev de 2021. Trad. Thales Fonseca), que optamos por ver os malefícios da ciência e não os seus benefícios, mas esse não é o problema. O problema são as consequências de uma obra como esta para o pensamento moderno, que por definição deveria ser progressista e não conservador, quando não é reacionário.

Em 2008, antecipando questões de bioética, com relação ao desenvolvimento das pesquisas com células-tronco embrionárias, demonstrava eu a incoerência do pensamento daqueles que são contra o aborto em todas as circunstâncias, presumivelmente em nome da vida, mas contra a vida quando esquecem que a pesquisa e o desenvolvimento técnico-científico, como a pesquisa genética, salva vidas (Direito e Ética: o caso das células tronco embrionárias. NEJ – Núcleo de Ética, 21 de mar de 2008). Ninguém de fato está disposto a morrer pelo princípio da recusa inconteste e obstinada de uso de raios-X ou tomógrafo, ou algo que o valha. Isso não quer dizer que não exista no Mundo ignorância e obstinação, irracionalidade consideráveis a ponto de se sacrificar pessoas por convicções religiosas e supremacistas. De certa forma, toda a convicção moral é supremacista – em suma, toda a narrativa não científica é dogmática, todo o fanatismo é axiomático, portanto, toda doxa é supremacista. Este é o limite da Ciência. Se ela enveredar por tais narrativas deixa de ser ciência. A Ciência pressupõe não só a dúvida, a incerteza, mas uma logicidade dialógica (Sloterdijk), a controvérsia.

Não basta mais apenas dizer que o pessimismo deturpa o favorecimento do conhecimento e ciência, desmascarar o negacionismo e o fanatismo que acreditam ter lido a pior parte da “Crítica da razão pura” ou da “Dialética do esclarecimento” e que transformaram a Filosofia e a razão iluminista no pior dos infernos para os homens de hoje. Na melhor das hipóteses, o que resulta desse pretenso diálogo com a verdadeira razão instrumental no domínio da procura egoísta da “prosperidade”, é a noção neokantiana de limites e obstáculos ao conhecimento e ciência, nos moldes fundamentalistas da pior Filosofia e práticas de perseguição e negação medievais. As regulamentações, os órgãos de controle, a desregulamentação que regulamenta (e não se percebe), quando inseridas no sistema de mercado e no regime de acumulação privada, atendem à reprodução do capital e sua extrema concentração, tanto por parte de particulares como de Estados. É assim que o discurso da Fé, como do Estado e de grupos progressistas se equivalem, tanto quando negam em absoluto o conhecimento e a ciência, como lhe querem impor limites, não porque estejam realmente interessados na humanidade por trás, ou a supremacia da razão objetiva, mas em instrumentalizar o conhecimento para o poder e/a dominação mercantil, direta ou indiretamente.

Diante da especulação do saber, da negação do conhecimento, da pior politização da ciência, a melhor forma de enfrentar aquele “mistério”, de certa forma, o fracasso iluminista da Razão, é perspectivar sua ação: a pergunta fundamental é “de que forma o desenvolvimento técnico científico poderia ser pensado do ponto de vista da superação do estágio atual da condição social sofrível de [toda] humanidade”, cujos “Capitães de areia” encontram-se escancarados até para as consciências mais simples. Não se deve ficar na discussão linear e mais ou menos óbvia dos limites, pretensamente em nome de uma moral ou ética que de fato interessa ao controle da pesquisa e educação, nos termos neokantianos em que ela está dada pela dominação econômica e seus “guardiões”. Dado que esta defesa, só pode ser efetuada, devido ao avanço das forças produtivasà direita de forma negacionista e fundamentalista, pseudocientífica, à esquerda deve-se cerrar fileiras em torno do desenvolvimento da ciência e evitar cair na armadilha do pessimismo derrotista que quer o conhecimento submetido irreversivelmente à lógica instrumental, que é a própria lógica mercantil.

Não existe defesa para um moralismo progressista, menos ainda quando se diz de esquerda. Uma agenda proposta para estabelecer os limites à pesquisa é, por princípio, um desserviço para a emancipação da humanidade de sua “indigência” (Jappe). A primeira tarefa de Marx foi dar conta de si, de sua constituição religiosa (A questão judaica). A filosofia materialista histórica teve que ultrapassar a moral religiosa, certos mitos e dogmas, em muitos casos os próprios ritos de passagem, para ser histórica, ou seja, para se fazer científica. Não existe um fim da História.

Diante da inevitabilidade das tecnociências, presentes até mesmo nos mais distantes e ínfimos capilares da vida contemporânea, a única forma “coerente” de se contrapor qualquer tipo de narrativa pseudocientífica, é negando-as. O negacionismo, para além do discurso marcado de ignorância e violência, encerra a única forma de diálogo possível com as mentes obtusas e passíveis – o fanatismo e à lógica perversa do capital, que são passivas, de forma mirabolante se aliam para sua continuidade recíproca. Como não é possível negar e obstaculizar o avanço das forças produtivas materiais e imateriais, os fanáticos e os ignorantes, as ignoram, e os patronos e prepostos guardiões do capital fazem o mesmo, as contornam logo que a acumulação privada sofre algum risco.

De fato, o tempo de trabalho disponível, que outrora jogava apenas os patrões e as elites arrendatárias, e rentistas, na ociosidade improdutiva, agora coloca os trabalhadores assalariados do capital no desemprego, subemprego e miséria absoluta. A ociosidade criativa de uns poucos ainda perdurará por muito tempo sobre a ociosidade forçada e vida indigna de muitos milhões. De qualquer forma, iniciativas da dita economia criativa e cultura têm se estendido às camadas mais populares da população. Em breve o tempo de trabalho disponível e não trabalho deverá ser remunerado a partir dessas iniciativas. As populações estarão, então, em transição do trabalho capitalista para o trabalho comunitário e coletivo, e as sociedades de classes estarão mais polarizadas, não sem certa paradoxalidade, entre a Ciência e a Fé. Para a fé persistir é necessária a negação da ciência por milhões. A fé termina logo que a ciência se apresenta à humanidade.

distância entre estes polos acirrar-se-á quanto ao conhecimento, o desencanto de uns os levará para o domínio da subsunção do Eu e os revelará dolorosamente (isto não é pessimismo!); quanto à ignorância, a pobreza da maioria os jogará no domínio do Céu e os escravizará (isto é certo!). Claramente o processo se desenvolve já de forma acelerada. Alea jacta est.

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2 comentários em “Mind the gap: Ciência, Religião e os novos enfrentamentos”

  1. Precisarei reler o artigo para captar compropriedade todas as suas nuances analíticas. Belíssimo texto! Contundente e necessário! A revista acabou de ganhar um seguidor e divulgador.

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