A luta anticolonial contra o império cognitivo

Por Eduardo Bonzatto

Os italianos têm um ditado que diz que o diabo faz as panelas, mas não faz as tampas. O significado é que ele abre o malefício, a caixa de pandora, mas não deixa fechar para revelar o que se fez. Assim é a luta anticolonial, que é a luta contra as verdades universais cunhadas pelo império cognitivo como fundamento para sua expansão.


O império cognitivo é um centro irradiador eurocêntrico: no homem, na igreja, no estado, no iluminismo (aqui foram criados todos os ismos), na ciência, na família, na escola, no trabalho. Desse centro vão expandindo as ondas das verdades universais.

Trabalho, desigualdade, luta de classes, evolução, terra redonda, progresso, desenvolvimento, soberania da ciência, soberania da educação, família nuclear, patriarcado, mulher e homem, adulto e criança, forte e fraco, riqueza e pobreza, dentre tantas verdades universais precisam ser evocadas e esmiuçadas para confrontar o império cognitivo que a partir delas se institui.

Vejamos como os sistemas das verdades universais se enraízam na base da pirâmide social para solapar todas as alternativas.

Primeiro vem alguém dizer que o homem é o centro do universo e não deus. Isso pode fazer sentido num dado momento da história em que a luta contra a igreja carece de ideólogos. Então, logo virá outro dizer que a Terra não é mais o centro do universo, mas é o sol e tudo gira em torno dele.

Aí vem outro e afirma com todas as letras que a Terra não é plana, mas redonda. E logo virá outro que a colocará numa certa posição, digamos com o norte para a parte de cima de um globo que bóia num universo de gazes e fluidos.

E então outro virá argumentar que de fato a nossa forma de entender esse globo é um plano cartesiano que demonstra como é a geografia e as retas que devemos percorrer de um ponto a outro. E logo outro camarada que diz que o tempo também é linear e se move do passado para o futuro.

Então virá outro dizer que o futuro é melhor do que o passado. E que no futuro existe a possibilidade de melhora, aliando agora o que diz a ciência com o que diz a religião, que só depois da vida existe a vida boa.

E então se ajustam as diretrizes, de que o trabalho é uma função natural biológica que colabora para esse futuro prometido. E que na história os oprimidos sempre lutaram contra os opressores e que a liberdade virá dessa luta eterna que vem do tempo das cavernas.

E que a gente precisa desenvolver para melhorar, ou seja, deixar de envolvimentos com a tradição e investir no futuro como um indivíduo capaz de lidar com sua própria sorte. E assim rompemos com nossa ancestralidade e a gente deve competir com nossos próximos e lutarmos contra nossos inimigos, de nações diferentes das nossas, diferentes por conta da nossa língua, da nossa cultura e que nosso destino está em nossas mãos.

E logo vem outro e diz que o pai é superior ao filho, que o professor é superior ao aluno e que o patrão é superior ao trabalhador. E se consolida que o homem é superior à mulher e que o adulto é superior à criança e que o rico é superior ao pobre e assim por diante vai o império cognitivo se azeitando nas verdades universais que nos ensinam.

Isso só acontece depois que o Darwin afirma que as espécies evoluem e que os mais adaptados sobrevivem e os menos perecem. Aí vem o Marx e diz que a história tem um motor em que os opressores forçam os oprimidos à rebelião e que isso faz mover a história. Depois vem o Freud e diz que temos uma besta fera dentro que é nossa psique lutando contra forças terríveis que afloram vez por outra em forma de patologias sociais e individuais conflitantes.

Depois vem os senhores da guerra dizer que precisamos derrotar nossos inimigos e nos convocam para a guerra que não solicitamos e não entendemos.

Mas antes nossos navios exploram outras terras e vamos levando nossas verdades universais no bojo de nosso avanço.

Então tudo que vemos a partir de nossas verdades universais passam a ser metáforas, embora os diferentes de nós digam que são metamorfoses, aí chamamos suas crenças de superstições, lendas, mitos, e somos capazes de destruir tudo que é diferente de nós, pois sabemos das verdades universais que eles não sabem e terão que aceitar as nossas, pois são as verdades universais.

As verdades universais permitem que façamos com os outros um monte de agressões em níveis que a gente nem sequer pode entender, pois aprendemos as verdades e sabemos que são verdades e que ninguém pode contrariar as verdades que sabemos e vamos preenchendo as lacunas das verdades com novas verdades até o infinito das verdades universais que garantem que tudo sabemos, pois bebemos na fonte das verdades universais, o local sagrado de todas as verdades universais.

Assim um sistema que começou com alguém brigando com deus se torna um sistema cognitivo em que cada um é o professor, mesmo o mais imbecil dos seguidores repete as verdades universais pautado numa forma de pensar que repete o mesmo movimento, linear e dicotômico, pois a dicotomia, a causa e o efeito são avatares dessa forma de pensar que se move por oposição, uma forma de oposição que é pautada exclusivamente do concordo discordo, incapaz de gerar qualquer alternativa, pois esse sistema simplório só precisa da aceitação ou da recusa que é também outra forma de aceitação de suas diretrizes.

E o império cognitivo vai ganhando força na medida em que destrói formas diversas de entender e se ligar com a vida e o mundo, que reduz qualquer mistério a uma superstição e segue promovendo racionalidade e emoção em quem toca.

Então esse império cognitivo assume tudo de forma ubíqua, a educação, a ciência, a indústria, as leis, a medicina, tudo é plasmado sobre a mesma égide fundamental das verdades universais e se consolida apagando qualquer alternativa, negando qualquer dissonância, ridicularizando qualquer voz e agora, apagando, cancelando, destruindo até mesmo as menores evidências de contradição.

Qualquer um que pense diferente de nós deve ser erradicado da face da terra, pois cada um de nós, filhos do império cognitivo, caminhamos já autonomamente e qualquer verdade que pronunciamos é filhote das verdades universais, pois são sua forma reduzida e inspirada.

Tudo vai sendo fagocitado pelas bocas que pronunciam as verdades universais e vai sendo ruminado e cuspido e de novo engolido pelas bocas novas que vão surgindo e vomitando as mesmas verdades universais. E o mundo vai se tornando o mesmo mundo, em toda parte, sem diferenças e só com desigualdades. As mesmas desigualdades impostas pelas verdades universais que sabem tudo que é certo, bom e justo. E essas verdades se tornam enfim autonômicas e vão pelo mundo afora e adentro colonizando tudo, plasmando tudo e todos na mesma massa de anomia e funcionalidade, de uma mentalidade instrumental e profundamente ausente de humanidade e enfim o homem passa a ser mesmo o centro do universo e se torna deus cumprindo seu destino na modernidade eurocêntrica que o gerou.

Isso nos traz à luta anticolonial para enfrentar o império cognitivo. Primeiro é preciso derrubar todos os vestígios das verdades universais e ridicularizar seus fundamentos.

Deus não vai sair do posto, a terra não gira em torno do sol e não pode ser redonda, não há tempo linear ou espaço geográfico improvável que possamos aprender. O homem não está no topo da cadeia alimentar diante de todas as outras criações de deus, mas é uma parte bem insignificante alias.

O trabalho, por sua vez, é um malefício que deve ser abandonado e as mãos produtivas da criança assumirão a frente libertadora, plantando seu próprio alimento, associando a outros seres na salvaguarda de nossa sobrevivência.

Retomaremos as medicinas ancestrais que felizmente ainda podem ser apreendidas e vamos sossegar o corpo num tempo imóvel que não mais irá para o futuro. Aceitamos a chuva sem proteção e passamos a brincar com os pingos que queimam a pele.

Paramos imediatamente de julgar os outros pautados por qualquer vestígio de verdades que ainda carregaremos por um tempo. Cada um é diferente, como um gato de outro gato e isso é muito bom de sentir.

Vamos calando nosso ego falador e sofredor na aceitação de tudo que vem até nós pela sorte de estarmos vivos e plenos. E ao aceitar nosso próximo, pois tudo que vive é nosso próximo, vamos descobrindo o amor incondicional, aquele que tudo aceita pois sabe que a vida é uma vasta rede de conexões em que tudo que é vivo está conectado e isso expande o mundo e a vida até o infinito.

Sabendo do infinito, também vamos sabendo da eternidade, de uma vida que é em si eterna já, pois que está conectada a uma extensão de outras vidas comunicantes que sentiremos, pois o sentimento é a outra forma cognitiva que sempre esteve aí, subliminar, rizomática, radicular, colaborativa, irmandade vital de uma bioera que faz com que o antropoceno, lugar do império cognitivo, seja não mais que uma saída provisória do curso vital em que cada um de nós e todos nós comungamos dos mesmos benefícios e dádivas doados por deus.

Só então ouviremos as vozes dissonantes que fazem da vida uma sinfonia desarmônica e repleta de ruídos cuja magnificência impulsiona a vida para todos os caminhos imprevisíveis, em que o caos rege como cada um dos nossos neurônios essa gigantesca orgia musical, capaz de conter todos os sons e ainda assim promover o conforto.

Magia, espiritualidade, intuição, fluxo, egrégora, etéreo, termos que agridem a racionalidade e o império cognitivo devem retornar ao nosso vocabulário com mais frequência, pois a linguagem é a forma com que o império se comunica e precisa ser subvertida.

A conexão amorosa deve surgir em sua plenitude, conexão amorosa sem posse ou privação, numa forma cuidadosa e demorada até superar o instante de liquides do amor atual, sem profundidade e sem atenção devida ao prazer, que é a forma com que deus manifesta a vida, o prazer intenso e sem culpas, castrações ou tabus.

Deixaremos então o indivíduo moderno no lugar dele no passado e vamos gerando o condivíduo, a complexidade e o caos, que é a ligação imprevista e inesperada ofertada de graça pela vida.

Outras formas de pensamento surgirão da fluência do sentimento, pensamento que vai se integrar ao sentimento abolindo a racionalidade e vai expandir toda a energia interna ao encontro da vasta energia egregoriana.

E é bem fácil explicar como isso pode ocorrer hoje em dia.

A ruptura imposta pelo império cognitivo ocorreu numa separação do homem dos propósitos de deus e essa desvinculação o isolou num mundo que era pra ser de vastidão para um mundo de acanhamento. Isolado, esse indivíduo passou para uma fase egoísta e frágil, favorecendo o surgimento do ego, que é o pensamento linear e dicotômico.

Separado da vida só lhe restaram as verdades universais por suprimento intelectual e contratual. Era o destino de thanatos, das forças da morte contra as forças vitais.

Agora precisa fazer o caminho inverso, de se reconectar. Para isso, deve procurar um propósito que é o de servir ao humano. E não servir o poder. Servir ao humano é uma tarefa bem fácil, pois toda a energia deve ser devotada a esse serviço, que é natural e nada obrigatório e está bem longe da boa intenção, que é servir ao poder, pois a boa intenção nos eleva e nos mantém num lugar de poder e privilégio.

O servir ao humano é delicado e invisível e ocorre no nosso propósito de reconectarmos às redes planetárias de vida. Esse serviço, na medida em que insistimos, pois não é fácil para nosso modo egoísta de manifestarmos nossa intenção, vai encontrando colaboradores inesperados. No princípio são aqueles que vão sentindo, misteriosamente, nosso propósito. Mas logo começam a aproximar outros seres, animais, vegetais, minerais e logo seres menos visíveis vão surgindo ao redor e logo os seres espirituais também vão se aproximando e formando a egrégora do serviço e então, assim, um momento você sente que se reconectou à rede da vida e tudo vai se revelando num sentimento leve, inconsútil, colaborativo sem os atributos do poder. É já o momento da sua libertação das formas modernas de apreensão do império cognitivo.

Sentindo-se parte do todo todas as aflições desaparecem e fica um sentimento de alegria e felicidade permanente, pois é o sentimento o novo modo de apreender o mundo e a vida e o sentimento é essa potência fluídica que se move com absoluta tranquilidade no caos da vida.

É imperativo recusar toda forma de privilégio e todas as manifestações do poder, por mais ínfimas que sejam, aceitando a simplicidade, a suficiência e a abundância que acontece quando fechamos o buraco da falta, que se encerra quando vai embora os últimos vestígios da soberba e da vaidade.

Os valores se alteram e todos os seres vivos se metamorfoseiam em humanos terra, uma nova expansão da percepção que não terá mais limites em que toda desigualdade se transforma em diferença respeitosa.

As verdades universais organizam-se em caprichosas arquiteturas rigidamente organizadas.

Na parte superior habita a epistemologia, que é hegemônica e se torna a visão de mundo. Ela gera instituições que são alimentadas de ideologia (família, escola, trabalho) e isso provoca o surgimento de teorias; teorias são simulacros das verdades universais e lhes conferem estatutos de legitimidade. Estando alinhadas, epistemologia e teorias carecem de se expressarem na realidade, na forma de experimentos concretos que se move como metodologias, um saber fazer das evidências das verdades universais.

Como deve ser um pai, como virar um professor, como se tornar um patrão. Mas também como é ser homem, mulher ou qualquer outro atributo convincente da hierarquia originária da epistemologia. Assim nascem os preconceitos, cuja aderência às verdades universais é consistente.

Quando os preconceitos assumem o controle da vida humana, as verdades universais se transformam em verdades individuais e já devem ser apagadas da história tornadas naturais, autonomizando cada indivíduo separadamente como um portador da verdade.

É já o reino de oneiros, dos sonhos voláteis que conduzem a história. Aí a realidade deve ser outra: o mundo quântico que se encontra no interior misterioso do átomo, em um nível subatômico. E ao mudar o contexto, podemos finalmente mudar as rotinas.

Entramos na esfera da quinta dimensão e todas as possibilidades se abrem, pois abrimos as portas da percepção.

O infinito e o eterno aguardam no interior mais profundo da matéria e ali é a morada da partícula de deus que só pode ser acessada pelas forças da vida, pelo amor incondicional e pela intuição fornecida pelo sentimento e seu fluxo generoso e incontrolável.

A pergunta que importa: o que liga os saltos quânticos no interior do átomo com os saltos quânticos que manifestam sempre metamorfoses e maravilhas nas culturas não coloniais?

A ayauaska sabe da quinta dimensão; o amor sabe das dobras quânticas; as tecelãs sabem das conexões infinitas; os xamãs sabem dos vôos sobre os abismos e das maravilhas da escolha que importa entre a dor e o nada, escolhem o nada, o desconhecido e abandonam toda forma de sofrimento.

Alimentamos essa nova percepção com a prece, a gratidão, o servir, o cuidar, a aceitação, a contemplação. O alimento está no ponto amplo da conexão em tudo que a fortaleça e anulando tudo que a enfraqueça. As bendições, as rezadeiras, as benzedeiras, os sinapismos, fortalecem as conexões, assim como os abraços.

A rede mecelial das conexões então se deixa perceber e se espalha pelas galáxias e pelas dimensões como o verdadeiro tecido da vida que tudo acolhe e tudo provém em sua forma lemniscata.


* Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB)


 

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1 comentário em “A luta anticolonial contra o império cognitivo”

  1. Pra quem vê com bons olhos, e prima pelo bom coração, uma ampla reflexão, um hino ou canção de guerra, dentro e fora de sítios das almas e expurgo, de pensamentos/sentimentos monolíticos e preconceitos!

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